Gastão Cassel – EàE/SC
São frequentes os relatos de sessões mediúnicas, seja no kardecismo, na umbanda, no candomblé ou outras denominações, que têm presença importante de antigos escravizados (geralmente chamados de pretos velhos) e indígenas de diversos povos. E faz todo sentido que assim seja, pois cronologicamente foram os que nos antecederam, são o passado recente da história de nossas cidades, estados e país. Por incrível que pareça, tais espíritos muitas vezes são recebidos com preconceitos e estigmatizados como primitivos, culturalmente inferiores e até “selvagens”. O preconceito é decorrente da visão colonialista e elitista que pressupõem como “elevada” a cultura proveniente da Europa. Se nos despirmos do olhar colonialista, veremos que todos esses povos originários tinham rituais e práticas espirituais elevadas, relações estreitas com suas divindades e conjuntos de experiências culturais e éticas impressionantes. Mas o olhar colonial prefere ver a diferença como estranheza e primitivismo. Espaços como o Museu de Arte Pré-Colombiana, em Santiago, no Chile, são fartos em demonstrar que os povos nativos do continente tinham enorme produção cultural e práticas místicas e religiosas profundas e complexas, bem como sociedades com níveis de organização elevados. Povos que construíram, por exemplo, Machu Picchu, não podem ser considerados primitivos, a não ser pelo preconceito que vê virtude nos invasores que devastaram gentes e culturas em toda a América. Muitos desses povos desencarnados hoje dão sustentação espiritual a casas espíritas, são suportes indispensáveis à egrégora que conduz o trabalho de amparo à saúde. São espíritos comprometidos com o próximo, com o auxílio e a compaixão. São os povos originários que já foram maioria nessas terras e que trazem do plano espiritual muitos ensinamentos que revelam o quão evoluídos eram espiritualmente, não obstante seu sofrimento aqui na Terra, promovido pelos colonizadores que empunhavam armas e cruzes. Da mesma forma os escravizados representaram um enorme percentual da população que nos antecedeu. Essa população negra trouxe legados espirituais importantíssimos das culturas africanas, inclusive muçulmanas. Jamais renunciaram a suas práticas espirituais e culturais, mesmo que forçados a um sincretismo que, como disse a canção, é “tanto resistência como rendição”. O relacionamento com estes povos desencarnados exige de nós a compreensão da experiência terrena que tais povos tiveram. Na maior parte dos casos são histórias trágicas e violentas. A crueldade física e cultural a que foram submetidos os povos de origem africana escravizados no Brasil não pode ser relevada. Tão pouco os incontáveis massacres e dizimações de nações indígenas em toda a extensão do continente americano podem ser esquecidos. Os espíritos que hoje nos amparam viveram a crueldade na carne, e o mínimo que podemos e devemos fazer para respeitá-los e honrá-los é reconhecer a sua trajetória de dor e opressão. É verdade que espíritos não têm cor ou etnia, mas são constituídos e informados pelas suas experiências terrenas, pelo que aqui viveram, de forma que a lástima aqui sofrida os constitui de forma absoluta. Os chamados Pretos Velhos carregam ancestralidades africanas e práticas religiosas que precisavam ser escondidas no fundo das senzalas, ou manifestar-se abertamente nos quilombos libertários. Os indígenas foram – e ainda são – impiedosamente perseguidos e exterminados, algumas culturas completamente dizimadas. Tudo em nome da imposição de religiões e culturas tidas como “superiores” que se apresentavam em nome de Deus. Mais sagrado do que qualquer divindade é o direito que todas as pessoas têm de cultuar a sua. As práticas místicas dos povos originários são plenamente legítimas como todas as outras crenças não cristãs, como o budismo, o judaísmo, o islamismo, hinduísmo e tantas outras. O relacionamento com esta espiritualidade ancestral precisa partir do respeito aos que viveram aqui na Terra e agradecimento aos ensinamentos que podem nos oferecer em todas as dimensões. A celebração dessa espiritualidade ancestral precisa começar pelo reconhecimento de sua manifestação por meio dos povos originários remanescentes, pelo respeito à sua cultura, incluindo religiosidade e territórios. A espiritualidade indígena, além de resgatar traços históricos e culturais de sua sociedade, também nos remete à sua prática ritual que, através da rememoração dos mitos, fortalece a espiritualidade ancestral. Além do que, sua natureza telúrica aponta para um relacionamento profundo com a natureza e a preservação do Planeta. A prática do bem não é monopólio de nenhuma denominação religiosa, de nenhuma etnia, de nenhuma cultura, de nenhuma “civilização”. A prática da fraternidade, da solidariedade, da amorosidade, da compaixão são e devem ser universais. “Amai-vos uns aos outros” não faz nenhuma distinção. Há inúmeras palavras que significam Deus, com as mais diversas feições. “Sons diferentes para sonhos iguais”, disse um poeta. Homenagear a espiritualidade ancestral é defender aqui no presente os direitos dos povos originários que continuam sob ameaças colonizadoras incrementadas por interesses econômicos. É combater a herança maldita da escravidão, que se tornou o racismo estrutural de nossos dias. Os escravizados da América, os originários Yanomamis, Charruas, Quechuas, Incas, Mapuches, Guaranys, Teguelches, Tamoios, Tupis, Xoclengs e todos os povos originários da América estão em nós, entre nós e conosco. Saibamos honrá-los, respeitá-los e preservá-los.Núcleos Espíritas Populares – Uma proposta de renovação
Em 2023, o EàE deve colocar como uma de suas prioridades de ação-reflexão a implantação de Núcleos Espíritas Populares (NEPs), que é uma proposta de renovação e transformação radicais para atuação do movimento espírita.
Como base introdutória para uma reflexão conjunta dos espíritas progressistas, o EàE participou do V Encontro Nacional da CEPABrasil, ocorrido em Santos, SP, entre os dias 4 e 6 de novembro de 2022, com o texto “Núcleos Espíritas Populares: uma proposta de renovação”, no qual esboça algumas premissas e propõe alguns caminhos para essa transformação do movimento espírita.
Esse texto completo foi apresentado virtualmente e está disponível no canal do YouTube do EàE, no seguinte endereço:
O texto completo para leitura pode ser baixado no seguinte endereço:
[download id=”1603″ template=”NÚCLEOS ESPÍRITAS POPULARES – BAIXE AQUI”]
Segue abaixo o resumo do texto:
“Esse discurso pretende apresentar uma proposta de renovação do movimento espírita e, mesmo que diminuta, da sociedade em que ele se insere. E esse propósito é buscado por meio do uso da beleza teatral do texto de Eurípedes, servindo ao mesmo tempo como forma, desenhando um cenário de fundo para a discussão, e como conteúdo reflexivo, pois a tragédia bacante conduz o seu leitor a uma paráfrase possível da realidade espírita por meio do drama vivido por suas personagens. Se Eurípedes, em sua maturidade encanecida e ao escrever sua última e impactante obra, foi capaz de refletir sobre os deuses gregos e questionar a religião, a condição social das mulheres e o poder do estado sobre a vida privada, é também possível que o movimento espírita brasileiro, após seus mais de cento e cinquenta anos, seja capaz de refletir sobre seu caminho, seus méritos, seus desvios e atalhos e propor saídas para os problemas que tem enfrentado na realidade em que atualmente se encontra. Com esse propósito e esse pano de fundo, parte-se das reflexões e práticas históricas de Paulo Freire e das Comunidades Eclesiais de Base para propor uma nova forma de atuação do movimento espírita, voltada para um trabalho popular de conscientização e de promoção da transformação social. Esse novo caminho é nomeado nesse discurso de Núcleo Espírita Popular (NEP). Não sendo mais possível pensar num movimento espírita que, por meio da atividade alienante e da caridade esmoler, contribui para manter os graves problemas sociais, contrariando tudo o que está proposto nos ensinos de Jesus e dos espíritos que auxiliaram Kardec, faz-se necessário ultrapassar esse estágio de fideísmo inócuo, focado exclusivamente na escatologia idealista e na soteriologia subjetiva, para avançar sobre a ideia central do Reino apresentada por Jesus quando se propôs a trazer para mulheres e homens a possibilidade da construção duma nova sociedade justa e fraterna, uma sociedade que não é desse mundo de opressão e indignidade. Para isso, faz-se também necessário pensar não apenas no objetivo principal, que é a continuidade da luta pela construção do Reino, mas refletir e propor caminhos objetivos para esse movimento ao mesmo tempo profundo e arriscado, haja vista a enorme resistência que será contraposta, como penteus contemporâneos, por todos os que se conservam em seus privilégios sociais, mormente dentro do próprio movimento espírita. Entretanto, essa é a tragédia a que está destinado o espiritismo, como um mensageiro de Dioniso, resgatar a originalidade revolucionária daquilo que foi trazido pelo homem nazareno, atuando como um educador das propostas dessa nova sociedade, conscientizando mulheres e homens do povo de seu papel histórico, social e político.”
Ao público espírita: contra o terrorismo, a violência e o vandalismo
Breve balanço de 2022
Foi um ano difícil para todos. Isso é inegável. O país chega ao final desse ano com quase 700 mil mortos pelo vírus da pandemia e pelo verme genocida que se despede do poder. Muita dor, sofrimento, desespero e morte no caminho. Um caminho que já seria difícil sem o inominável no poder e que se tornou, por conta de sua imoralidade e inépcia, insuportável. Ou seja, um caminho que já seria difícil de qualquer maneira, por conta da pandemia, ficou insuportável por causa do miliciano.
Mas a parte do país que ainda consegue se indignar e lutar conseguiu, pela força da democracia, enxotar esse traste humano e tirar a quadrilha miliciana do poder.
Manifesto
E os espíritas progressistas tiveram importante papel nesse percurso, pois estiveram engajados continuamente na campanha eleitoral mais importante da história recente do Brasil, uma eleição que não foi apenas um embate de ideias e propostas, mas foi um embate entre amor e ódio, fraternidade e perversidade, cultura e ignorância, diversidade e discriminação, liberdade e autoritarismo, em suma, entre a civilização e a barbárie. E uma das formas de atuação foi o “Manifesto dos espíritas contra a reeleição do atual presidente”, proposto conjuntamente pelo EàE, ABPE e Ágora, que teve imensa adesão dos espíritas e grande repercussão na imprensa progressista. Além disso, a esquerda espírita esteve presente nas ruas durante todo o ano em manifestações e eventos de campanha contra a necropolítica do governo que se encerra. Os registros dessa intensa participação estão nas redes sociais do EàE.
Lives e aulões
E o EàE contribuiu nesse ano de 2022 com diversas edições de seus programas ao vivo nas redes sociais, trazendo personalidades e temas para o debate político, social e espírita. Esteve também presente com textos e reflexões sobre essas questões, buscando levá-las ao movimento espírita para que a realidade seja o principal tema de suas instituições, pois o EàE entende que não é possível pensar o espírito imortal sem a necessária reflexão sobre sua condição material de vida na Terra.
Encontro Nacional
Nesse ano, o EàE conseguiu realizar, após a grave crise da pandemia de covid-19, o II Encontro Nacional da Esquerda Espírita. O encontro ocorreu na cidade de São Paulo, no dia 10 de julho, na sede do Sindicato dos Bancários de SP. No evento, que também foi transmitido ao vivo pelas redes sociais, estiveram presentes como palestrantes a Dora Incontri, o Thiago Torres, conhecido como Chavoso da USP, a deputada federal Luiza Erundina (PSOL-SP), e os professores Juliana Magalhães e Alysson Mascaro. Durante o encontro da esquerda espírita, ouvimos e debatemos sobre política, sociedade, espiritualidade e eleições.
Clube do Livro
Em 2022, o EàE, em parceria com a Associação Brasileira de Pedagogia Espírita (ABPE) e a Editora Comenius, lançou o Clube do Livro Espiritismo e Sociedade, com livros de autores espíritas progressistas que estavam ausentes das prateleiras das livrarias espíritas. Lançamos uma nova tradução de “Socialismos e espiritismo”, de Léon Denis; lançamos pioneiramente, após longos quase 70 anos, a obra “Os espiritualistas perante a paz e o marxismo”, de Eusínio Gaston Lavigne, cuja publicação de suas obras espíritas é exclusiva do EàE; publicamos também uma nova tradução de “Conceito espírita do socialismo”, de Cosme Mariño; e uma nova edição de “Dialética e metapsíquica”, de Humberto Mariotti. Ainda há novos livros espíritas progressistas a serem publicados dentro dessa coleção pioneira.
ESE antirracista
Em novembro, no Dia da Consciência Negra, o EàE lançou o primeiro livro de seu projeto antirracista: “O evangelho segundo o espiritismo – Edição antirracista”. Uma obra, gratuita, que veio romper o longo silêncio do movimento espírita sobre as questões étnicas e sobre o racismo presente nas obras kardecistas. Foi um projeto corajoso e abraçado por todos dentro do EàE, sendo conduzido com o cuidado necessário que a questão exige. Houve choro e ranger de dentes, mas houve também, em sua maioria, manifestações de apoio e de felicitações ao trabalho de enfrentamento do racismo feito pelo EàE dentro do movimento espírita.
Estudos
Além de tudo isso, o EàE deu prosseguimento a seus grupos de estudos de espiritismo progressista e aprofundou suas reflexões sobre os Núcleos Espíritas Populares, uma proposta de transformação radical de atuação do movimento espírita.
O ano de 2023, que já surge cheio de esperança e alegria, será mais um ano de muito trabalho para o EàE. Há muitas novidades vindo por aí que vão, certamente, chacoalhar ainda mais o movimento espírita. Porque o EàE existe para isso.
Venha fazer parte desse movimento que agrega os espíritas progressistas e ajudar nas reflexões, nos projetos e na execução de suas propostas.
É preciso enfrentar a teocracia
Manifesto Espírita sobre a eleição presidencial em 1º turno
A Mulher da Casa Abandonada e a miséria moral da elite escravagista
Gastão Cassel – Jornalista – EàE SC
É estrondoso o sucesso do podcast A Mulher da Casa Abandonada, criado pelo jornalista Francisco Felitti e produzido pela equipe Folha de São Paulo, disponível nos principais tocadores de podcast. A audiência já ultrapassou quatro milhões de ouvintes com uma média de audiência de 2 milhões de plays por episódio — números sem precedentes no cenário de podcasts do Brasil. Em comparação, programas desse formato, bem sucedidos, costumam ter audiência entre 60 mil e 80 mil pessoas. A Mulher da Casa Abandonada é a recuperação da história de um crime de grande repercussão há cerca de 20 anos, quando o casal Margarida e Renê Bonetti, foram acusados e processados nos Estados Unidos por manter uma funcionária doméstica brasileira, negra, em condições análogas à escravidão. A produção se desenvolve a partir do momento que o autor fica sabendo que a mulher misteriosa que mora sozinha num casarão abandonado no bairro mais caro de São Paulo é a criminosa que foi foragida do FBI. O grande sucesso do podcast se sustenta sobre três pilares bem claros: o jornalismo, a literatura e a exploração dos recursos de áudio. O autor combina os três elementos com grande maestria, gerando interesse, curiosidade e muito prazer em ouvir. Todos os elementos se encaixam com perfeição gerando um produto que, sem perder seu caráter informativo e de denúncia social, ganha contornos lúdicos. Ouve-se o podcast como quem ouve uma novela, uma história ou um romance.Escravidão 2022
A grande questão é que o autor e narrador, a partir de um fato bem específico coloca luz sobre um problema social real e recorrente. Em 2022, só no primeiro semestre, 1.178 trabalhadores foram resgatados pelo Ministério do Trabalho de condições análogas à escravidão no Brasil. Registro e direitos trabalhistas, nem pensar. As histórias são sempre semelhantes e os relatos envolvem condições sub-humanas, má (ou falta de) alimentação, alojamentos precários e remunerações ridículas que, normalmente, não cobrem “dívidas” contraídas com o próprio empregador. A maioria dos casos está na construção civil, agronegócio e na industria têxtil. A publicação do podcast deflagrou um grande número de denúncias de casos de trabalho análogo ao escravo no âmbito doméstico. Desde que o programa foi ao ar, o número de denúncias de trabalho doméstico análogo à escravidão no Brasil teve um aumento de 67%, conforme dados divulgados pelo Ministério Público do Trabalho em um levantamento realizado a pedido de Felitti. Segundo o próprio Ministério do Trabalho, a escravidão doméstica é a mais difícil de ser fiscalizada, por acontecer no interior de domicílios.Da família
O que chama atenção é o argumento que os cometedores desse tipo de crime usam para se justificar. Sempre mencionam que as pessoas não recebiam salário e outros direitos por terem uma relação familiar. São “como da família” discorrerem Margarida Bonetti ou o professor universitário Dalton César Milagres Rigueira, de Patos de Minas, que mantiveram suas “familiares” em condições sub-humanas por décadas. O argumento de que “são da família” é uma mistura de sordidez, desfaçatez e hipocrisia. Reivindicam laços porque invariavelmente tais pessoas fazem parte do “patrimônio” da família e até costumam ser passados de geração para geração como mostram os dois casos sobre os quais recaiu a investigação do podcast. No próprio episódio de apresentação do podcast Felitti comenta que o “são da família” é uma verdadeira teses sociológica sobre a elite brasileira. É evidente que a sociedade brasileira ainda está ligada ao pior de sua história, que a elite endinheirada ainda não se conformou com o fim da escravidão e cultiva o desejo de ter sobre quem exercer sua suposta superioridade. Não por acaso o trabalho doméstico é tão precarizado. Quem não lembra da revolta da classe média quando foi instituído o direito ao FGTS aos trabalhadores domésticos? Não por acaso, a maioria dos empregos domésticos são destinados a mulheres negras, que tão bem representam a figura servil desejada pela elite branca.Jornalismo
O trabalho de Chico Felitti. é um exemplo de bom jornalismo. Seu trabalho de investigação e apuração e minucioso. Leva às últimas consequências o compromisso de ouvir todas as versões e colocá-las lado a lado de forma crítica e referenciado pela objetividade dos fatos. Destaca-se a paciência e a habilidade com que ele confronta a “mulher da casa abandonada” expondo as provas dos processos e as evidências que ela tenta negar em sua versão. Realizando a primeira entrevista que a acusada dá em toda a histórias do processo, ele dá a ela o direito e o espaço à sua versão, mas não abre mão de expor as contradições. Não como julgamento, e sim como exercício de elucidação da objetividade. A observação sobre o comportamento do repórter diante da pessoal acusada de um crime é fundamental de ser analisada, porque há uma sacralização do “ouvir os dois lados” que não considera que o serviço completo do repórter não é apenas ouvir todos os lados, mas justapor as versões com os dados objetivos, com as provas processuais e com a materialidade das coisas. Felitti agiu com rigor e perfeição.II Encontro Nacional da Esquerda Espírita, São Paulo, 10/07/2022: eu fui
Feminismos com Susete Campos
Relato de Susete Campos, que acompanha o Coletivo Espíritas à Esquerda desde o I Encontro Nacional em 2019, em Salvador “Em tempos de tempestades Diversas adversidades Eu me equilibro e requebro É que eu sou tal qual a vara Bamba de bambu-taquara Eu envergo mas não quebro” (Lenine) Lá em 2019, quando aconteceu o primeiro encontro dos EàE, imaginávamos que esses anos seguintes seriam difíceis, mas foram piores que o anúncio do pesadelo. Tudo que já foi um dia, deixou de sê-lo. Veio a pandemia –solidão, doença e morte. Despedidas e enterros. A perversidade travestida de governo nos horrorizou diariamente com absurdos, violências, desrespeitos, malfeitos, malandragens, crueldades. Não houve um dia sequer em que o mal não se descortinasse à nossa frente e sem que nos perguntássemos até quando. Mas como não há mal que se imponha para sempre, resistimos. Tivemos importantes vitórias na justiça. A operação lava-jato, agora conhecida como farsa-jato, ruiu junto com seus heróis fajutos. Estamos nos preparando para um novo tempo de esperança. Envergamos, mas não quebramos. Paralelamente, o movimento de espíritas progressistas floresceu. Com a criação de vários coletivos, foi produzida uma vasta lista de materiais de estudo no formato de lives, reuniões online, publicação de novos livros. Foi como uma onda resgatando companheiros e companheiras de ideais, pessoas desiludidas com o que se transformou as casas espíritas sob a égide da FEB. Envergamos, mas não quebramos. Em agosto de 2020, o grupo EàE-DF criou o grupo de estudo Léon Denis com reuniões quinzenais. O primeiro tema estudado foi a Teologia da Libertação (Leonardo Boff e Frei Betto) com foco na metodologia de ensino de Paulo Freire e nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB). Passamos pela obra de Léon Denis, Socialismo e espiritismo, e atualmente estamos estudando a obra de Herculano Pires, O Reino. Fazer parte dos grupos de WhatsApp desse pessoal, ler e discutir, em reuniões quinzenais, também tem sido uma forma de resistir. Mas queremos mais. Inspirados por Paulo Freire, é preciso esperançar, agindo. Queremos levar adiante nossos projetos, junto com todos e todas que se somam e sonham com um mundo mais justo e fraterno, o Reino anunciado por Jesus. Envergamos, mas não quebramos. Com adiamento de mais de dois anos por conta da pandemia, finalmente em 10 de julho, em São Paulo, aconteceu o II Encontro Nacional da Esquerda Espírita, com os seguintes temas para reflexão e debate “Política e eleições” e “Conjuntura política brasileira”. Calor humano, reflexão, escuta ativa, assim foi nosso dia. O objetivo desse texto é fazer um registro do conteúdo das palestras, para que essas falas possam trazer conhecimento, reflexão e inspiração para agir.Dora Incontri
Dora Incontri (educadora, jornalista, poetisa e escritora) nos dá conta que o movimento progressista espírita começou há, pelo menos, vinte anos (ver a obra Cristianismo libertador, de Alysson Mascaro, publicado em 2002), pavimentando esse pensamento em diálogo aberto com o mundo contemporâneo, com as ciências, com a filosofia e com as teorias sociais. Nada de embalar o espiritismo em garrafas de água fluidificada, pelo contrário, conduzi-lo para a ação em busca da melhoria da sociedade. E sim, devemos recuperar a prática mediúnica, hoje restrita aos centros espíritas. Todos nós podemos fazê-la em nossas casas, inclusive. Dois desafios são trazidos para nossa reflexão: 1) Fazer a luta social sem perdermos a dimensão da espiritualidade. É a transcendência que nos garante que haverá um futuro melhor. O caminho é de equilíbrio e junção. Dentro do centro espírita deve-se falar de política, não partidária, de questões sociais, estrutura da sociedade, introduzir educação sociopolítica para os seus frequentadores. Precisamos entender o mundo para atuar nele. 2) Necessidade de união entre os progressistas. Podemos discutir ideias de forma respeitosa, divergir sem sermos radicais. O caminho consistente para o debate sério são os estudos. Precisamos vencer esses desafios para contribuirmos com a transformação do mundo tornando-o mais justo e mais pacífico. Diálogo interreligioso e educação em suas dimensões crítica, espiritual, cognitiva e afetiva são caminhos consistentes para transformar nosso mundo no reino anunciado. Apesar da inegável importância de Kardec, é necessário reconhecer as limitações históricas do seu tempo e as contradições em sua obra. E como lidar com os fascistas, com a extrema-direita? De forma respeitosa sempre, sem nos igualarmos aos discursos de ódio, pois alguns deles poderão ser tocados e, um dia, todos deixarão de sê-lo. Dois pilares da doutrina: o da fé raciocinada e o de que ciência e religião não podem se opor, devendo a religião se orientar com base na ciência e, se preciso, ajustar-se a ela em suas evoluções e revisões.Thiago Torres, o “Chavoso da USP”
Thiago Torres, o “Chavoso da USP” (22 anos, estudante de ciências sociais da USP, morador da Brasilândia, zona norte da cidade de São Paulo, com 200.000 seguidores no Instagram). Foi uma grata surpresa conhecer a história desse jovem estudante, que acredita que a educação é o principal instrumento para romper barreiras entre a periferia e a universidade. De espírito inquieto, criado na periferia com formação evangélica, cedo começou a frequentar o movimento espírita e a estudar, por conta própria, as obras básicas de Kardec. De início percebeu a diferença das pessoas da periferia com os frequentadores do centro. Identificou-se com a dinâmica do funcionamento da mocidade, aberta ao diálogo para construir conhecimento e, por outro lado, se incomodou com as falas conservadoras e moralistas de dirigentes, que lhe pareceram elitistas, racistas e problemáticas como é o caso do tema reencarnação, usado como dogma para explicar tudo, inclusive as desigualdades sociais e outras atrocidades. Pelo conhecimento adquirido, passou a enxergar o distanciamento dos fundamentos de Kardec com o espiritismo de Chico Xavier. Destaca as contradições do livro Nosso Lar, com lugares, colônias, umbral, cidades espirituais, tudo pré-determinado para cada tipo de espírito que desencarna. Se a ciência, na época de Kardec, tinha traços racistas, esses traços influenciaram a obra kardecista, na qual os espíritos superiores são sempre de origem branca e europeia, e os seguidores sempre pessoas da classe média (advogados, médicos etc.). Conheceu a umbanda, onde sentiu o ambiente mais acolhedor, sem moralismo e conservadorismo. Optou por permanecer no espiritismo por entender tratar-se de uma filosofia espiritualista, portanto, aberta ao debate e à crítica, com espaços a serem ocupados. Como ciência, o espiritismo deveria estar em constante construção e a orientação de Kardec foi seguir a ciência. Nesse contexto, considera que o espiritismo deveria seguir a ciência que defende a descriminalização do aborto como uma questão de saúde pública. A exemplo da condenação do aborto, o espiritismo não incorporou os debates contemporâneos das ciências, em especial as ciências sociais e biológicas, o que denota seu religiosismo. Pontos importantes da sua fala: – Reencarnação para justificar desigualdades e anestesiar consciências; – Crença cega no conteúdo das mensagens recebidas por espíritos ditos “superiores”; – Uso da filosofia espírita, pela classe dominante, para oprimir, manipular e controlar a população mais pobre e vulnerável. “Tudo que acontece é por vontade de Deus”, “você escolheu suas provas e então deve aceitá-las sem questionar”; – Nem tudo vai ser resolvido no amor e no diálogo. O nazismo só foi derrotado por um outro exército; – A condição de pobreza é responsabilidade da classe dominante e devemos reduzir a culpa do pobre; – A classe média tem seus direitos garantidos. A população pobre não tem; – Ter casa, emprego, saúde, educação é direito. Ter jatinhos, iate, mansões é privilégio; – Reforma íntima que ignora a necessidade de reformas sociais não é reforma; e – A ideia da caridade do branco/rico “salvando” o negro/pobre deve ser problematizada; caridade é necessária, mas jamais suficiente. Melhor substituir caridade por justiça social.Luiza Erundina
Luiza Erundina, deputada federal. Em sua exposição, a deputada apresentou uma leitura do atual cenário político do país e nos alertou que haverá tentativa de golpe. A política é a única ferramenta para transformar a realidade social. A esperança é revolucionária, desde que acompanhada de ação.Juliana Magalhães
Juliana Magalhães, bacharela e doutora em direito. Distanciamento da prática espírita com os fundamentos de Kardec. Espiritismo deveria ser um agente de transformação social, daí sua visão crítica do movimento no Brasil, do sistema capitalista e, consequentemente, seu interesse e estudo aprofundado do marxismo. A sociedade capitalista é uma imensa coleção de mercadoria, em que estão separados os trabalhadores de um lado e proprietários dos meios de produção de outro. É o direito que vai garantir a propriedade privada. Questão: “Qual o grau de liberdade que o trabalhador tem, de fato, no capitalismo?” Razão da religião: “Deus dá o frio conforme o cobertor”. É o ópio do povo, funcionando tanto como um lenitivo ou como algo para alienar. No capitalismo, a religião assume o papel coadjuvante de fazer com que as pessoas não exerçam o papel de crítica mais avançada (conformismo). No Brasil, o movimento espírita fecha os olhos para a realidade do mundo, incorpora o reacionarismo que baliza o seu pensamento, distorcendo o próprio Kardec e legitimando as injustiças sociais numa sociedade de exploração. A ideologia do capitalismo é que vai normalizar os pobres sem-teto, sem-terra. Caridade assistencialista não transforma o mundo. Naturalizar as desigualdades é anticiência. Kardec, como herdeiro do iluminismo, buscava distanciar o aspecto religioso, era crítico de rituais, hierarquias, amuletos e qualquer distinção entre as pessoas. Era defensor da ciência e da razão. Aristóteles: “Toda justiça é social”. Só se é justo na pólis. Eu só posso ser justo numa pólis justa. Daí a incoerência de espíritas condenarem movimentos sociais como o MST e MTST, que reivindicam o básico: terra e teto. Capitalismo é um patriarcado, produtor de mercadorias, é racista, homofóbico, tudo contrário à ética de Jesus, que nasceu de uma mulher e viveu uma vida material. Do que adianta falar de amor ao próximo, de caridade, se há oposição às conquistas sociais no discurso reacionário que os espíritas abraçaram? É possível pensar criticamente a sociedade e transformá-la.Alysson Mascaro
Alysson Mascaro, jurista marxista, escritor. A religião tem um papel histórico na defesa do mundo –aristocrático, feudal, burguês– para fins de dominação. Iluminismo (século XVIII): insurgência da burguesia em defesa do uso da razão, “luzes da razão contra as trevas da fé”. Nessa época deveriam ter sido extintas as religiões por falta de materialidade suficiente para sua justificativa. Ou seja, há 250 anos a humanidade já possuía material teórico para superar as religiões. Ao invés de extinguir a religião, a própria burguesia a reconfigurou sob as formas do orgulho protestante, do catolicismo reacionário (misticismos) e do esoterismo (de onde surge o espiritismo). No início do sec. XX, o imperialismo ideológico estadunidense se manifestou com as igrejas pentecostais e neopentecostais, criadas num caldo político originalmente protestante. Esse modelo serve de combate a todo progressismo que impede que lutas e conquistas sociais aconteçam (EUA não tem saúde pública, por exemplo). A religião nos EUA funciona como trava ideológica. A ideologia do imperialismo religioso americano pentecostal e neopentecostal prosperou no Brasil e hoje a religião evangélica representa quase a metade da nossa população. A religião funciona como instrumento para bloquear as lutas e avanços sociais. As populações desgraçadas morrem para enriquecer o 0,1% de ricos do mundo e um dos gatilhos imediatos disso é a religião. Quanto mais o capitalismo se impõe com todas as suas contradições, mais o povo se torna religioso. O sistema precisa de uma massa oprimida e dócil para o interesse de sua exploração. A religião tem um papel estrutural que tem sido cumprido há 200 anos, que é reacionário, na medida que faz acreditar que tudo é vontade divina, que o presidente tal é enviado de Deus, que nenhuma folha cai sem ordem divina, que todas as mensagens psicografadas do espírito tal é verdadeira e por aí vai. Ou seja, todos os movimentos religiosos servem a esse reacionarismo. A experiência católica da Teologia da Libertação com as Comunidades Eclesiais de Base (CEB) mostrou-se como a única tentativa notável de uma religião implantar uma visão progressista e que teve alcance das massas. No entanto, o movimento foi abafado por decisão do Vaticano. A própria trajetória progressista no campo das religiões tem um teto muito baixo. O afeto, que é gestado nas massas para que elas se aproximem da religião, é um afeto conservador, tendente ao reacionarismo. Pela tradição das religiões, os sofrimentos são explicáveis por causas ocultas de tal forma que o impulso não é de transformação e sim de consolação. Daí a necessidade de avançar progressivamente dentro das religiões que querem apenas consolar para manter o que aí está. O aspecto religioso do espiritismo impede seu desenvolvimento progressista. A tutela religiosa não permite avançar o progressismo nas religiões. Com o surgimento de novos grupos religiosos progressistas há que se estabelecer um horizonte em favor da racionalidade da ciência e um horizonte no qual as lutas sociais se apresentem como a sua diretriz e sua dinâmica. É chegado o tempo da ciência, da ciência da transformação social.Finalizando
E depois de todos esses conteúdos, houve a plenária para discutir os rumos da esquerda espírita que deve ser o mote de relatos futuros. Apenas para começo de conversa, as mulheres progressistas apresentaram um manifesto pela descriminalização do aborto. Envergamos, mas não quebramos.Mulheres espíritas pelo direito de decidir
A Plenária do Segundo Encontro Nacional recebeu o primeiro manifesto das Mulheres Espíritas pelo Direito de Decidir.
O tema do aborto começou a ser discutido entre um grupo de mulheres do Coletivo Espíritas à Esquerda após a repercussão do artigo “Desprezado Patriarcado, até quando”, na coluna Feminismos. A discussão ensejou outra publicação, “Ouvindo as Mulheres: aborto e movimento espírita”. Em seguida, um grupo de mulheres do núcleo regional do Distrito Federal organizou um debate on line “Diálogos sobre o aborto – sob o enfoque Espírita”, em 30 de junho de 2022 (infelizmente, não ficou gravado). O evento on line contou com a participação de representantes dos diversos núcleos estaduais e teve, como encaminhamento, a criação do Coletivo Mulheres Espíritas pelo Direito de Decidir. O Coletivo das mulheres elaborou um manifesto, apresentado e aprovado na plenária do Segundo Encontro Nacional da Esquerda Espírita. A seguir, apresenta-se a íntegra do Manifesto. O tema aborto é criminalizado na sociedade e no movimento espírita tradicional, a partir de premissas que atendem a uma perspectiva de controle do corpo da mulher, fato já amplamente descrito em estudos científicos validados. O espírito que, em dada existência, toma um corpo feminino, estabelece com este uma relação na qual irá construir conhecimentos específicos, a partir de condições socialmente determinadas, sendo, uma das mais determinantes, a condição de gênero. Este espírito está encarnado para intervir na realidade do mundo material, em conformidade com suas escolhas. Por vivermos em uma sociedade que estabelece padrões de comportamento e delimita espaços às mulheres, existir nessa condição é um constante desafio à alma. Há papéis sociais estabelecidos às mulheres como zelar pela moralidade, guardar recato, resignar-se, acolher de forma incondicional, cuidar de todos e produzir filhos. Embora seja lugar comum a ideia de que ter filhos seja destino de todos os espíritos encarnados como mulheres, a fatalidade não é uma premissa da Doutrina Espírita, conforme se vê nas obras da Codificação, como o Livro dos Espíritos (LE). Ser mãe, em princípio, é uma condição biológica e não um dever. O Espírito, ora encarnado em corpo feminino, tem livre arbítrio para escolher – ser ou não ser mãe – a partir de motivações próprias, não cabendo a ninguém – Estado, Igreja ou Centro Espírita – determinar essa decisão. É necessário falar, abertamente, acerca do aborto, no ambiente espírita, relembrando que a alma é livre para decidir acerca de seus caminhos durante a existência física.843: “Pois que tem a liberdade de pensar, tem a de agir. Sem o livre-arbítrio o homem seria uma máquina”. (LE).
Também é urgente reviver a prática explicitada no Evangelho Segundo o Espiritismo, acerca da indulgência para com todos e todas.ESSE – Cap. 10 – A Indulgência – (…) A indulgência jamais se preocupa com os maus atos alheios, a menos que seja para prestar um serviço, mas ainda assim com o cuidado de os atenuar tanto quanto possível. Não faz observações chocantes, nem traz censuras nos lábios, mas apenas conselhos, quase sempre velados. Quando criticais, que dedução se deve tirar das vossas palavras? A de que vós, que censurais, não praticastes o que condenais, e valeis mais do que o culpado. Oh, homens! Quando passareis a julgar os vossos próprios corações, os vossos próprios pensamentos e os vossos próprios atos, sem vos ocupardes do que fazem os vossos irmãos? Quando fitareis os vossos olhos severos somente sobre vós mesmos?
Acolher hoje, acolher amanhã, acolher sempre: eis o que se espera dos espíritas. A Caridade, pilar da Doutrina, chama atenção para as irmãs que chegam às casas espíritas suplicando auxílio e conforto, seja da ordem material ou espiritual.886. Qual o verdadeiro sentido da palavra caridade, como a entendia Jesus?
“Benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas.”
Além de acolher é necessário compreender os desafios das formas atuais de organização das famílias e do exercício da sexualidade, superando a visão medieval de sexo como “pecado” ou ato fisiológico destinado apenas à procriação. Sobre a sexualidade, também a ciência – instituição respeitada no âmbito da Doutrina Espírita –oferece resultados de pesquisa acerca de sua influência sobre a saúde física e emocional. Entender esse fenômeno e esclarecer as pessoas sobre o exercício de uma sexualidade responsável – bem como sobre abusos sexuais – é importante na prevenção de uma concepção indesejada. Se punir o aborto não o evita, tampouco execrar a se xualidade contribui para seu exercício saudável. Fora do ambiente da religiosidade, há as questões de saúde pública, abordadas nas áreas das Ciências da Saúde, notadamente nas áreas da Epidemiologia e Saúde Coletiva. Com a criminalização do aborto, as mulheres, especialmente as pretas e pobres, não têm acesso a cuidados no sistema público e, aquelas que conseguem atendimento privado, podem vir a sofrer discriminação, violência obstétrica ou ainda ter sua intimidade violada. Sem acesso aberto ao Sistema de Saúde, os abortos são subnotificados, prejudicando os registros epidemiológicos e impedindo a mensuração correta do fenômeno da interrupção de gravidez, suas associações causais, intercorrências e desfechos. Ou seja, não se conhece, com rigor científico, as razões que levam mulheres e meninas a abortarem ou o que falhou em seus planos reprodutivos. Podem ser mulheres que não têm acesso regular a métodos contraceptivos; que não saibam usá-los da forma correta; que estejam em situação crônica de violência sexual ou ainda convivendo com companheiros que recusam a contracepção. Tratar o aborto como questão de saúde pública, além de proteger a vida das mulheres, pode prevenir a ocorrência de mais abortos. A Organização Mundial de Saúde estabelece diretrizes sobre o aborto, na perspectiva de proteger a saúde de qualquer pessoa que possa engravidar. Segundo a OMS, cerca de 25 milhões de abortos inseguros são realizados anualmente, o que resulta em altos percentuais de complicações pós-operatórias, hospitalizações e mortes. No Brasil o aborto é considerado crime, na maioria das situações e, por isso, muitas mulheres interrompem a gravidez usando métodos inadequados e perigosos. Além disso, evitam procurar ajuda médica até que as complicações se tornem muito graves. Estima-se que metade dos abortos, no País, resulta em internação posterior e que quase todas essas internações poderiam ser evitadas. A Organização Mundial da Saúde calcula que apenas 2% a 5% das mulheres fazem aborto com medicamentos confiáveis, sem necessidade de intervenção posterior. Criminalizar o aborto traz intercorrências evitáveis nas condições de saúde dos indivíduos, risco de vida e ônus para o Sistema. A maternidade somente será de livre decisão para as mulheres se, além das condições materiais e sociais, elas puderem ter acesso a meios de planejamento reprodutivo e também ao aborto legal, seguro e gratuito, livres do controle de natalidade exercido pelo Estado e por instituições religiosas. Pelos motivos expostos neste Manifesto, entendemos a necessidade de parar de tratar o aborto sob a ótica do moralismo religioso. Ele deve ser visto como parte de uma ampla Política de Saúde, entendendo-se saúde como bem estar físico, moral, social e espiritual. Nós, mulheres espíritas progressistas, entendemos que a vida deve ser preservada em primeiro lugar, principalmente, a vida das mulheres. Reconhecemos a existência de mulheres que, por inúmeras razões, decidem abortar. Elas são nossas irmãs ou somos nós mesmas, em diferentes momentos de nossas vidas. Nessa situação, as mulheres necessitam de acolhimento e não de dedos apontados ou anátemas. Em um estado laico, o aborto é competência da área da Saúde Pública e somos a favor da sua descriminalização. Aos espíritas compete não julgar e sim, acolher, a mulher que os procura em busca de alívio para suas dores. Também não cabe, aos espíritas, definir para que local irá a alma da mulher que aborta, após o encerramento de sua vida física e sim esclarecer que novas oportunidades de servir surgirão e que ela terá apoio social, emocional e espiritual para que esteja pronta para assumir os encargos de sua jornada. Assim, a proposta das Mulheres Espíritas pelo Direito de Decidir, a esta plenária, é:- Discutir sexualidade, contracepção, saúde das mulheres e aborto, sem anatematização ou tabus, no âmbito das casas espíritas,
- Acolher e esclarecer todas as mulheres que nos procurarem num momento em que estejam atormentadas pela dor de uma gravidez indesejada, sem julgá-las e sem ter a arrogância de querer influenciar nas suas decisões, reconhecendo seu livre arbítrio.