Sobre calopsitas, mulheres e espiritismo

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Autora: Mariléia Dionísio
Autora: Mariléia Dionísio

Este artigo, como indica o título, é sobre calopsitas, mulheres e espiritismo. E é possível estabelecer tal relação estranha inicialmente? Só lendo pra saber, né? E a relação começa lá atrás, muito lá atrás quando surgiram os primeiros animais e os primeiros seres humanos aqui no nosso planeta Terra. Mas não se preocupe, pois o salto de lá pra cá é grande e chega rápido a hoje, 2020, ano de pandemia.

Brasil, desigualdades de todos os tipos agravadas. Sofrimentos, inúmeros deles incluindo o desencarne (que poderia ter sido prorrogado) e o luto para 130 mil famílias (até o momento)[1]. Tristeza, tenho sentido uma tristeza profunda intercalada com sentimentos de impotência e indignação por um lado; esperança e resistência por outro, junto com a aprendizagem, dura.

Em meio a tudo isto, uma pequena alegria caseira: o piado bem baixinho como indício de que um filhotinho de calopsita havia nascido. Alegria que se transformou em força extra para parir este texto há dias sendo gestado sobre a dramática situação da mulher dentro de nossa sociedade, com ênfase na postura de espíritas.

Este filhotinho (que, espero, consiga sobreviver assim como os outros quatro que ainda não eclodiram dos ovos) é resultado de uma história composta por alguns capítulos e personagens.

Um dos capítulos que merece destaque corresponde aos episódios “entre tapas e beijos” que do sofá de meu ap’e’rtamento assistíamos praticamente todos os dias nesses oito anos do casalzinho de calopsitas. Na verdade, os “beijos” não eram beijos, mas cafunés que Derpina (a fêmea) fazia na cabeça de Derpi (o macho).

Normalmente, logo depois do almoço, ele abaixava a cabeça aos pouquinhos, tocando-a levemente e aguardava que ela, num gesto de carinho, passasse o bico gentilmente nas peninhas do pescoço/cabeça dele. E ela assim fez várias e várias e várias e várias vezes.

O enredo ganha uma singularidade: quando ele queria carinho e ela, por alguma razão que desconheço, não estava disposta, ele a bicava. Sim, batia até que ela fizesse o “carinho” ou cafuné que ele exigia unilateralmente. E se ela se negava e fugia, ele ia atrás, a perseguia, insistia até conseguir, com mais violência. Outro ponto: nunca vi Derpi retribuir carinho nos mesmos moldes.

“Ah, mas são animais”, você diria! Sim, são animais. E cada espécie animal tem comportamentos próprios desde que foram criados lá atrás e habitam este nosso mundo. Tem sido assim há milhares de anos. É a natureza, não é? Agem por instinto. Dentro do entendimento espírita (pelo menos do meu), são seres cada qual em uma determinada escala evolutiva e todos em desenvolvimento contínuo.

E nós, espíritas, será que alguma vez nos comportamos como Derpi e Derpina?

Será que, mesmo que já não sejamos simples animais, conseguimos agir como seres espirituais e perfectíveis que somos nos respeitando mutuamente aqui e agora sem precisar esperar “nosso lar” ou o “mundo regenerado”?

Será que as violências sofridas pelas mulheres dentro de seus próprios lares em várias formas (psicológica, física, moral e sexual, incluindo o estupro marital) são reconhecidas por nós como agressões que devem ser banidas?

Será que as violências das quais as mulheres têm sido vítimas ao longo da história são pautas nos grupos de estudo, reuniões, evangelização, juventude e palestras nas casas espíritas?

É tema de algum livro ou pesquisa que busca investigar as inter-relações ao longo das encarnações com alternância do espírito que violenta e é violentado em corpos ora de mulher ora de homem?

O 180 foi acionado por você alguma vez como gesto de caridade para uma mulher em sofrimento? Conseguiu orientar uma companheira fragilizada a buscar proteção e amparo nos órgãos do estado? Meteu sua colher ressignificando na prática o dito popular ao defender a vida de uma mulher? Participou de alguma ação para garantir que a Lei Maria da Penha fosse implementada? Lutou pela abertura de delegacias especializadas em sua cidade? Está se sentindo ofendidx com tais perguntas? Mais uma: votou em um determinado ser espiritual (você sabe a quem me refiro) que faz apologia do estupro, tem ódio a mulheres e foi eleito por milhões de brasileirxs que o apoiam e/ou se omitem em cumplicidade?

Derpina e Derpi formavam um casal de calopsitas adultas e viviam em dupla. Não participavam de uma sociedade (des)organizada como as nossas e nenhum dos dois estava na fase infantil.

Quantas meninas, mulheres em sua infância agredida, espíritas ou não, foram obrigadas a fazer cafuné, carinho e sexo?

Os números e estatísticas são assustadores. Temos tido coragem de olhar de frente para cada número e ver ali um ser espiritual –encarnado e vivenciando a fase infantil, adulta ou velhice– que carrega em sua jornada esta tragédia?

Você se sente responsável como parte de uma sociedade que joga tantas meninas em situações de vulnerabilidade quando negam a suas famílias condições dignas de emprego, escola, alimentação, saúde, cultura, esporte, lazer, moradia, por fim, proteção e segurança?

“Amar ao próximo” também pode significar individual –para você– e coletivamente –para as pessoas que participam da sua casa espírita– um “basta” à violência cometida contra as mulheres e, principalmente, aquelas que têm sido mais penalizadas como as mulheres pobres, as negras, as periféricas, as indígenas, as trabalhadoras em ocupações desvalorizadas e precarizadas, as portadoras de necessidades especiais, as mulheres do campo, enfim, as “minorias”, embora quantitativamente maiorias?

Quantas vezes situações de violência aconteceram desde que animais e seres espirituais encarnados como nós habitamos este planeta? Normal? Crime? …?

É a natureza? Agimos por instinto? Somos diferentes dos animais? Em quê?

Derpina e Derpi se acasalavam e, junto a outros fatores, como consequência, tiveram mais uma ninhada, desta vez com 5 ovinhos. Para minha tristeza, Derpina ficou doente e morreu um dia antes da

eclosão do 1º ovinho.

Nunca esquecerei a data: 7 e 8 de setembro, dias da Independência do Brasil e da cidade de Vitória. Fiquei triste por Derpina e sigo em luto pela morte de 130 mil brasileiros, pelo desmanche do nosso país que continua dependente se não mais de Portugal e do império inglês, agora do capital/rentista transnacional conjugado com subserviência ao império estadunidense.

Derpi, o pai e agora “viúvo”, segue no choco e espero consiga cuidar bem dos filhotinhos que vingarem. Pai-mãe ou pãe. A natureza lhe dá oportunidades. De maneira menos romantizada, a vida e a sociedade nossa de cada dia tem transformado muitas mulheres em “mãe-e-pai”. Pais negligenciam e abandonam as mulheres-mães e os filhos-órfãos, mas, raramente os “pais-abortadores” são assim denominados e criminalizados por isto.

Na história das calopsitas, não entrou o capítulo do aborto nem a fase de perseguição e acusação de serem criminosos. Não se pode dizer o mesmo da menina de 10 anos de São Mateus/ES, perseguida e chamada de criminosa por cidadãos do “bem”, “cristãos” e “espíritas”.

Confesso que, como a grande maioria dos espíritas, eu também entendia e defendia que a vida é dádiva de Deus, só a Ele cabe dar e tirar de acordo com seu amor, justiça e sabedoria infinitos. Continuo defendendo.

Mas junto a isto, refletindo sobre as inúmeras violências pelas quais as mulheres passam cotidianamente em uma sociedade estruturalmente desumana e injusta, relendo textos kardequianos, estudando junto a outrxscompanheirxs espíritas progressistas, revi meu entendimento e posição há alguns anos. Talvez isto signifique algo a você, ou não.

Passei a considerar também que, por mais que na questão 358 de “O livro dos espíritos” se encontre a afirmação ampla e geral “existe sempre crime quanto transgredis a lei de Deus”, em nenhuma outra passagem se aponta que cabe a nós, seres humanos, criminalizar quem vivencia a complexa experiência do aborto provocado. Ao contrário. O que se espera de nós é que criemos condições sociais gerais de vida digna para que toda e qualquer mulher-mãe-por-ser seja capaz de levar adiante sua decisão seja ela qual for, como ser espiritual que é responsável pelos seus atos, sujeito a “erros e acertos” numa infinita caminhada de aprendizagem e superação.

Outro ponto que merece destacar é que a codificação está repleta de situações nas quais nós, seres espirituais criados simples e ignorantes porém perfectíveis, agimos com base em “falhas”, “erros”, “desconhecimento”, “injustiça”, “maldade”, “perversidade”, “atrocidade”, enfim, uma gama de posturas negativas, sobretudo nestas fases iniciais, tendo em vista o longo tempo de evolução espiritual, e em várias áreas da vida individual e social. Nem por isto há grupos “pró-vida espíritas” criminalizando os “transgressores da lei de Deus”, sabidamente em sua maioria homens ricos, brancos, das elites e heteronormativos.

Pior, no caso de mulheres ricas e brancas que escolhem o aborto provocado, podem fazê-lo em clínicas protegidas pela justiça dos homens, de maneira segura evitando complicações e morte. Estas privilegiadas não são nem perseguidas nem vistas como criminosas. Que postura espírita é esta?

Por fim, entre calopsitas, mulheres e espiritismo neste quase conto, apresento uma última relação-capítulo conjugados: machismo e uma homenagem.

Na espécie das calopsitas, somente o macho tem características que permitem a ele assoviar. Pois não é que Derpi aprendeu um repertório incrível de MPB? Seria cômico se não fosse trágico que na nossa sociedade patriarcal e machista, a maior parte de tudo que a humanidade conseguiu desenvolver é atribuído de antemão aos homens e não às mulheres. Não deixa de ser uma violência e preconceito na maior parte das vezes que recebo alguém em casa, ao ouvir o assobio, perguntar já com uma resposta antecipada afirmando que foi meu marido quem o ensinou. Não, não foi. Nem preciso dizer quem fui, né?

A homenagem vai para as 130 mil famílias enlutadas ao resgatar a letra de uma das canções que Derpi assobia, letra tão necessária por seu caráter revigorador nestes momentos duros que todos vivemos de pandemia e fascismo tupiniquim. Também, representadas simbolicamente por Derpina, homenagem para as mulheres espíritas com a esperança de que, de algum modo, este texto contribua um pouquinho para nos tornarmos mulheres e espíritas melhores. Segue a letra da música:

“Há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração. Toda vez que o adulto balança, ele vem pra me dar a mão. Há um passado no meu presente, um sol bem quente lá no meu quintal. Toda vez que a bruxa me assombra, o menino me dá a mão. E me fala de coisas bonitas que eu acredito que não deixarão de existir: amizade, palavra, respeito, caráter, bondade, alegria e amor. Pois não posso, não devo, não quero viver como toda essa gente insiste em viver. E não posso aceitar sossegado qualquer sacanagem ser coisa normal. Bola de meia, bola de gude. O solidário não quer solidão. Toda vez que a tristeza me alcança o menino me dá a mão. Há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração. Toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão.” (querido Milton).

Mariléia, mãe, cidadã brasileira e do universo.

Nota:

[1] O número oficial de mortos por covid-19 no Brasil já ultrapassou a trágica marca de 140 mil.

Publicado no Facebook em 26 de Setembro de 2020.

Ref / Link: https://jornalcriticaespirita.files.wordpress.com/…/cri…

Autora: Mariléia Dionísio

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