Novo texto exclusivo de Isabel Guimarães para a página “Espíritas à esquerda” com provocações instigantes sobre gêneros no movimento espírita. É nossa coluna dialogando com Isabel Guimarães.
Machismo no espiritismo
Falar sobre machismo no movimento espirita parece ser ainda um tabu para muitos adeptos. No entanto, as mulheres espiritas necessitam assumir o protagonismo dessa discussão como provocadoras de reflexões e críticas ao modelo machista presente no espiritismo, que tem entre seus postulados a afirmação que espíritos não têm sexo e encarnam no corpo físico que melhor serve aos seus propósitos evolutivos. Trazer à luz aquilo que está nas sombras é debater criticamente a invisibilidade das mulheres na direção dos centros espíritas e sua quase ausência entre os palestrantes nos grandes eventos espiritas sejam eles locais ou nacionais.
Minha inquietação sobre o tema em tela começou porque me chamaram a atenção duas coisas: primeiro, a maciça presença de mulheres nos centros espiritas em relação à presença de homens, em palestras, grupos de estudo e demais atividades a esmagadora maioria de frequentadores e trabalhadores é do sexo feminino; em segundo lugar, observando material de divulgação de eventos espiritas locais e nacionais percebo a ausência de palestrantes mulheres e, mesmo quando presentes, elas são em quantidade infinitamente menor que os homens.
A questão posta que precisamos discutir e responder é: o que ocorre no trajeto da participação das mulheres no movimento espirita que provoca essa lógica inversa? Muitas mulheres fazendo os centros espiritas existirem de fato e poucas presentes nos espaços de poder que dão o tom e a direção do movimento.
A moral que sustenta o espiritismo é a moral cristã, a base é a ética proposta por Jesus, que foi profundamente revolucionária na época em que esteve encarnado na terra e o é até hoje. Sua proposta não tem nada de machista, bem ao contrário, em um época em que as mulheres não tinham valor, ele andava com elas, tinha discípulas e, em várias passagens narradas nos Evangelhos, ele se dirigia às mulheres sem distinção em relação aos homens, porém nos centros espíritas parece que o machismo fortemente presente no Velho Testamento e nos escritos de Paulo de Tarso atuam com mais força que o seu legado, quando se tratam das desigualdades de gênero.
Começando pela Gênesis e a história da “maçã” que Eva, inadvertidamente, experimenta da árvore do conhecimento e Adão a acompanha, mas, questionado por Deus, ele responde que foi a mulher que o levou a experimentar o fruto proibido, ou seja, desde Adão que os homens tendem a culpar a mulher por suas escolhas que dão errado, esse roteiro é conhecido por 11 entre 10 mulheres. É comum ver homens culpando as mulheres por seus fracassos, inclusive na cama e até as responsabilizando pelo ato de violência do estupro por exemplo. Até que ponto essa cultura judaico-cristã, extremamente machista, está impregnada no modelo de organização centrado na falta de equidade entre gêneros que o espiritismo adota em sua prática?
Na carta que Paulo escreveu ao jovem pastor Timóteo (I Timóteo 2, 11 a 15) sobre como ordenar um culto, lemos: “A mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição. Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão. Salvar-se-á, porém, dando à luz filhos, se permanecer com modéstia na fé, no amor e na santificação.”
São muitos os exemplos bíblicos de situações que evidenciam o sentimento de superioridade dos homens em relação às mulheres, sentimento esse que está na gênese da cultura machista, profundamente arraigada em todas as religiões cristãs, e no movimento espírita não é diferente.
Talvez algumas ou muitas pessoas considerem que no espiritismo não existe machismo, talvez tragam exemplos de centros comandados por mulheres, e de mulheres que fazem palestras em grandes eventos, mas, vejam, não vamos cair no reducionismo que leva as pessoas a interpretar um fenômeno coletivo apenas a partir de sua experiência pessoal ou a partir das exceções. Sim, existem centros espíritas comandados por mulheres. Sim, existem mulheres que conseguiram se destacar como palestrantes, entretanto chamo atenção à proporcionalidade entre a quantidade delas no movimento e as que conseguem ocupar esses lugares.
Parece ser muito mais fácil para os homens alcançarem espaços de poder no movimento espírita e quando digo poder não é no sentindo de mando, mas no sentido de se fazer ouvir e contribuir na direção do movimento. Conheço mulheres que são profundas conhecedoras do espiritismo e outras que são médiuns excepcionais, mas não alcançam o mesmo destaque dos homens na mesma condição.
Quando falamos de machismo no espiritismo, não podemos deixar de destacar o quanto as próprias mulheres acabam contribuindo para a perpetuação desse estado. Faço palestras e ministro aulas em centros há muito tempo, e algo que sempre me chamou atenção é como em momentos que proponho dinâmicas de grupo e divido a turma procurando sempre distribuir os homens presentes, sempre minoria, para que tenha pelo menos um em cada grupo, o que ocorre é que, na hora de os grupos apresentarem o resultado da atividade solicitada, a escolha do relator ou relatora, apesar de os grupos terem mais mulheres do que homens, o mais comum é que o único homem do grupo seja escolhido para representá-los.
É perceptível que o machismos está tão impregnado, faz parte de forma tão poderosa na vida cotidiana, que aquelas mulheres não percebem que, ao passarem a representação de um grupo composto por maioria feminina para um homem, estão fazendo por acreditarem em sua inferioridade, por acreditarem que um homem fará melhor do que qualquer uma delas, por acreditarem que o homem sabe mais do que elas. Podemos enumerar outras razões, mas essas são suficientes para ilustrar o quanto é necessário fomentar a discussão em torno do machismo no espaço religioso, pois é quase certo que as mulheres, ao procederam assim, não estão conscientes de sua contribuição para fortalecer o machismo e a exclusão das mulheres nos espaços de poder e direção do movimento espírita.
Esse é um tema muito complexo e espinhoso, não tenho pretensão de, nessas poucas linhas, esgotar todos os aspectos da questão, acredito que terei que escrever outros textos em torno dessa temática, mas espero que esse artigo inicial, seja provocador de um debate mais amplo, no qual homens e mulheres espíritas possam refletir, discutir e propor caminhos para desconstrução do machismo e construção de um movimento que contemple as habilidades e competências do espírito, independente do gênero que esteja utilizando nesta encarnação.
Vale destacar que o propósito de trazer este tema para discussão não tem como objetivo uma guerra ou disputa entre gêneros, mas evidenciar uma prática comum que muitas vezes passa despercebida pela naturalização da cultura machista que está impregnada em todos os espaços, inclusive e principalmente nos espaços de pratica religiosa. A ideia é evidenciar e trazer para o campo da discussão consciente e responsável, tendo como meta a elaboração de uma nova ordem espiritual, onde não caiba mais o machismo, fruto da ignorância e do atraso.
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