O criacionismo espírita é evolucionista

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"A criação de animais", de Jacopo Tintoretto, pintada em 1550.

Releituras kardecistas – com Marcio Sales Saraiva

“A criação de animais”, de Jacopo Tintoretto, pintada em 1550.

O espiritismo, tal como formulado por Allan Kardec, é deísta, criacionista e monista.

Deísta porque ele pressupõe uma divindade criadora, causa primeira de todas as coisas. Essa divindade não é uma pessoa, um “pai” ou “mãe”, mas é sim o design inteligente do universo. E é dessa divindade que tudo emana, portanto, o dualismo (espírito e matéria) é algo aparente e transitório, pois “tudo está em tudo” (questão 33 de “O livro dos espíritos”) e aquilo que chamamos matéria é apenas energia (“espírito”) em estado modificado. Em síntese, tudo tem a mesma origem divina, tudo é uma derivação da energia causal primária. O dualismo é um fenômeno transitório e causado por uma “cisão” aparente.

Penso, por exemplo, que em 1986, quando o químico criacionista Charles Taxon inventou o conceito de “complexidade especificada”, proveniente da teoria da informação, alegando que mensagens transmitidas pelo DNA na célula eram especificadas por uma inteligência, ou seja, originaram-se de um agente inteligente, talvez ele estivesse falando do espírito que renasce emboscado no corpo de tal maneira que formam uma unidade transcendente-imanente, “uma só carne”. E assim sendo, o dualismo é um fenômeno aparente, pois o corpo físico seria a expressão dessa energia-espírito inteligente que participa de construção deste desde o código genético. Seria então a “alma”, a sede do que chamamos “problemas genéticos”? Seria a genética uma derivação ou um epifenômeno do espírito? Por hoje, não vamos entrar nisso.

Retomando nossa questão, quando falamos que o espiritismo é criacionista, alguns podem confundi-lo com o criacionismo bíblico literal de sete dias e que teria acontecido alguns milhares de anos antes de Jesus. Longe de Allan Kardec esse tipo de criacionismo dogmático e irracional, por outro lado, o evolucionismo defendido pelo espiritismo é compreendido como um fenômeno que se dá no mundo físico-espiritual, envolvendo não somente as formas, mas também a cognição e os valores éticos e morais, as virtudes.

Dito de outra forma, o evolucionismo de Charles Darwin e Alfred Wallace (ambos anglicanos, ainda que o primeiro fosse agnóstico e o segundo espiritualista teísta) estaria correto em essência, mas incompleto, posto que o darwinismo não identificava uma origem criadora, um ponto de começo ou um projetista inteligente. Para o espiritismo, este ponto de começo está em Deus, visto que “o universo não pode fazer-se a si mesmo” (questão 37). Portanto, evolução e criação se conjugam no espiritismo kardecista ao invés de se excluírem, tal como acontece em muitos debates públicos envolvendo fundamentalistas religiosos de um lado e cientistas ateus ou agnósticos de outro. O kardecismo segue pelo caminho do meio, tal como informaram os bons espíritos.

Esse tema não é novo e nem foi inventado por Allan Kardec e isso deveria ser óbvio para todas as pessoas, especialmente para quem se diz espírita. Na verdade, desde o século IV a.C. o filósofo Platão propôs um “demiurgo”, um sábio e bom criador, primeira causa do cosmos (que organizará o caos). Aristóteles também defendeu algo semelhante, um criador-designer do cosmos que ele chamou de “motor imóvel”. Depois dele, o filósofo romano Cícero defendeu que um “poder divino deve ser encontrado no princípio de uma razão que permeia toda a natureza”. Na mesma linha, argumentou Tomás de Aquino, na Idade Média, e William Paley, em 1808, usando a analogia do Deus-relojoeiro que criou o relógio-mundo e deixou que ele livremente funcionasse.

Também o evolucionismo teísta vem ganhando adeptos dentro do cristianismo católico e protestante. Destaco aqui os nomes de Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), Ronald Fisher (1890-1962) e Theodosius Dobzhansky (1900-1975), além de cientistas que ainda estão trabalhando sobre essa questão como Kenneth R. Miller, John Haught, Michael Dowd e Francis Collins. Todos podem ser lidos pelos espíritas preocupados em conhecer mais e melhor nossas origens e a divindade.

Para concluir, se “O livro dos espíritos” de Allan Kardec —e percebam que estou usando somente esta obra como referência em todos esses pequenos artigos— fosse mais lido e bem estudado, debatido abertamente, sem medo de críticas e autocríticas, o movimento espírita brasileiro ganharia muito em qualidade e sobriedade. Que os mais progressistas continuem avançando através do estudo, do bom senso e do amor-caridade.

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