O poder, o amor e a dignidade do imaginário

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Elizabeth Hernandes* – EàE-DF

Comprei o livro “O que é religião”, porque vi o nome do magnífico Rubem Alves na capa e também porque não saio de um sebo sem levar pelo menos um livrinho de bolso. Acho até que dá azar passar por prateleiras cheias de histórias e sair de mãos abanando. Digo e provo: eu poderia ter tido o azar de nunca ter lido esse texto maravilhoso. Ou de perder o gostinho de me saber fluente nesse idioma onde se pode escrever “ter tido”.

O livro faz parte da coleção “Primeiros Passos”, que foi bem popular na década de 1980 e que hoje pode ser lida gratuitamente, na internet. Eu li vários, mas este eu não conhecia. Ele é tão… tão Rubem Alves.

O Que é Religião, da saudosa coleção Primeiros Passos.

Assim, sem pretensão, como quem não quer nada, ele nos apresenta filósofos como Camus, Hume, Feuerbach, Freud e…, valha-me Nossa Senhora(!), Karl Marx. Nunca tive uma aula tão clara sobre mais valia e “ópio do povo”. Já adianto, para quem não leu Marx nem Rubem Alves: não se trata de condenação da religiosidade. Até porque os filósofos não julgam e nem condenam nada e nem ninguém. Quem faz isso são os juízes, nos tribunais, e o pessoal dos comentários, na internet.

Muito interessante estar lendo este livrinho bem na data em que se divulgam dados do Censo 2022 sobre a religiosidade no Brasil. O país está menos católico, menos espiritualista e cada vez mais evangélico. Continuamos sincréticos e, queira Alá, voltemos a praticar a tolerância.

Nesse livrinho já antigo, mas ainda tão atual, fiquei sabendo que Rubem Alves, além de cronista cheio de doçura, foi pastor protestante e teólogo. Mas fiquei sabendo, também, que Alves é profundo conhecedor de Marx, pois só quem conhece bem consegue traduzir de modo simples, conceitos como “alienação” ou “mais valia”. Sobre alienação, explica Alves: trata-se de um processo objetivo, externo, de uma pessoa dar a outra algo que lhe pertence. E fiquemos todos aqui a lembrar das tantas coisas nossas que alienamos aos empregadores, inclusive quando não temos emprego ou quando nos tornamos “empreendedores”.

Ele descreve como todos nós, que vivemos no sistema capitalista, alienamos nossos corpos, desejos, almas e sonhos: “(…) Seu desejo passa a ser o desejo de outro. Ele trabalha para outro. (…) O objeto a ser produzido, não é uma decisão sua. (…) O trabalho não é atividade que dá prazer, mas atividade que dá sofrimento”. E continuando nessa linha ele afirma que também os capitalistas não são livres e todo o seu comportamento é moldado pela obediência à lei do lucro. Conclui um dos trechos iluminando o óbvio, explicando porque os trabalhadores não se revoltam (o suficiente) contra as iniquidades e crueldades do capitalismo: “Porque não há alternativas. Eles só possuem os seus corpos”. E esclarece sobre a “luta de classes”, contradição máxima do capitalismo: “o capitalismo cresce graças a uma condição que torna o conflito entre trabalhadores e patrões inevitável. Marx nunca pregou luta de classes. Achava tal situação detestável”.

E chegamos no delicioso “ópio do povo”: “Compreende-se que o que as pessoas têm, normalmente, em suas cabeças não seja conhecimento, não seja ciência, mas pura ideologia, fumaças, secreções, reflexos de um mundo absurdo. E é aqui que aparece a religião, em parte para iluminar os cantos escuros do conhecimento”.

Mas antes disso ele já havia citado Durkheim: “Não existe religião alguma que não seja falsa. Todas elas respondem, de formas diferentes, a condições dadas da existência humana”. Além de citar esses filosofões difíceis de ler, o doce Alves nos diz: “Não, não estou dizendo que a religião é apenas imaginação, apenas fantasia. Ao contrário, estou sugerindo que ela tem o poder, o amor e a dignidade do imaginário”. E joga na nossa cara: “Para os medievais, não havia fantasia alguma. Seu mundo era sólido, constituído por fatos comprovados por inúmeras evidências e além de quaisquer dúvidas. (…) Como eles, somos incapazes de reconhecer o que de fantasioso existe naquilo que julgamos sólido, terra firme”.

Num dos trechos do precioso livrinho –de 127 páginas, em formato de bolso–, ele fala que tudo foi entregue aos negociantes e políticos: a terra, os mares, os rios, as fábricas, os bancos, os lucros e os corpos das pessoas. Ainda assim eles continuam tendo almas e querendo ter a certeza de que a riqueza foi merecida, por isso buscam os sinais do favor divino e fazem confissões de piedade. Não por acaso, nas notas de dólares está escrito “In God we trust”. Mas… “também os operários e camponeses possuem almas e necessitam ouvir as canções dos céus a fim de suportar as tristezas da terra. E sobreviveu o sagrado também como religião dos oprimidos”.

E no último capítulo, onde lista sugestões para quem quiser se aprofundar no assunto, o irônico cronista começa com a Bíblia (Livro do Eclesiaste, 12, 12): “Aceita, meu filho, um conselho final: o uso dos livros não tem fim e o estudo em demasia é enfadonho”.

Eu sou religiosa e acredito em reencarnação. Minha religiosidade me forneceu “evidências” de que já queimei e também mandei queimar. Mas continuo em combustão e não quero, jamais, ser salva do enfado dos livros. Vade retro, Eclesiaste!

Sobre a autora: Elizabeth Hernandes é espírita à esquerda pelo Coletivo Espíritas à Esquerda, especialista em políticas públicas pela Enap e doutora em epidemiologia pela USP.

1 COMENTÁRIO

  1. Que humor ácido e “delicioso” de ler: uma síntese leve de temas relevantes. Resenha importante sobre o”livrinho” de Rubem Alves. Além disso, uma interessante provocação sobre o poder, o amor e a dignidade do imaginário. Viva a arte e a literatura!

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