Nova coluna de Isabel Guimarães para a página “Espíritas à esquerda”. Nesse seu texto exclusivo para nossa página, Isabel discute a mansidão.
Quando os mansos herdarão a terra?
“Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.” Jesus, em Evangelho de Mateus, 5, 5
O discurso das bem-aventuranças para mim é a mais bela passagem do Evangelho, porque nela parece que Jesus quis resumir a totalidade de sua proposta revolucionária para as relações humanas ontem e hoje.
Destaco uma delas, por considerá-la muito pertinente ao cenário que se descortinou em nosso país nos últimos anos, gosto do termo descortinar porque remete a algo que estava oculto e se revela.
Escrever esse texto foi um grande desafio, demorei um tempo fora do meu padrão de escrita, achei muito difícil encontrar as palavras que traduzissem o que gostaria de transmitir, só muito tempo depois compreendi que estava resistindo, certamente a mesma resistência que muitos companheiros e companheiras espíritas, do campo da esquerda, talvez enfrentem, para falar do par de opostos: mansidão x violência.
Então optei por escrever um texto provocativo, muito mais para questionar do que para responder, só assim passei a me sentir menos desconfortável com o tema. Afinal somos chamados em toda a nossa formação, no espiritismo, a sermos mansos, brandos e pacíficos, a nos contrapormos firmemente a qualquer tipo de violência, então o dilema está posto, ele consiste em nos perguntarmos como encaminhar a luta da ideologia que sustenta nossa visão de mundo sem sermos violentos?
Afinal como lidar com um mundo conturbado, onde assistimos diariamente a aparente vitória dos violentos? Violência que se expressa na polícia, braço armado do estado, que agride negros e pobres; no estado, que não garante as mínimas condições e sobrevivência do povo e ainda desmonta as poucas políticas de bem-estar social de nosso país; no homem machista, que agride, violenta, silencia, coage e mata as mulheres; na violência urbana, que nos torna prisioneiros dos espaços seguros, obstruindo a nossa liberdade de ir e vir na hora e para onde quisermos; na degradação ambiental, com destruição de reservas vitais para a sustentabilidade da vida no planeta; nas guerras comercias e militares, que destroem famílias, deixam órfãs as crianças num rastro de destruição e terra arrasa; na fome de milhões de seres humanos morrendo de inanição, enquanto poucos vivem chafurdados em verdadeiras orgias alimentares; na degradação do corpo, seja pela promiscuidade sexual, seja pela ditadura de um padrão de beleza que mata e infelicita homens e mulheres; na homofobia, que grotescamente assassina, com requintes de crueldade, o outro que apenas busca ser o que é; nos religiosos mercadores da fé, que distorcem os ensinamentos de Jesus para caberem em suas ganância e fome de poder; nos empresários corruptos, que compram os políticos, e nos políticos, que se vendem aos empresários; e no racismo estrutural, que ignora 300 anos de escravidão e suas perversas sequelas para o povo negro. A pergunta é: como ser manso diante de tanta opressão, violência, perversidade e loucura? Como ser manso diante, da injustiça, da hipocrisia e do cinismo?
Talvez estejamos precisando compreender melhor o que é mansidão? De que mansidão falava Jesus quando lidava com uma sociedade na qual a violência também imperava? Sim, porque a cultura do Império Romano se caracterizava por sua dureza, crueldade, violência e pela instabilidade política e religiosa, e, por outro lado, os judeus, apesar de subjugados política e economicamente ao império Romano, seguiam suas tradições religiosas, que não se separavam da política e das normas sociais, a lei mosaica regia a vida do povo judeu. Leis essas extremamente rígidas e duras, em especial para as mulheres.
Então como Jesus exerceu a mansidão diante de um cenário de extrema violência? Ele defendeu ideias e agiu de forma absolutamente coerente com aquilo que defendia, aproveitando cada experiência da vida cotidiana para ensinar e agir contrapondo-se à injustiça, à hipocrisia e à violência reinantes no seio daquela sociedade. Porque a cada momento evolutivo, a sociedade se organiza e constrói sua dinâmica de acordo com o conjunto das individualidades dos seus membros, tendo como resultante uma estrutura social com seus avanços e retrocessos, com suas virtudes e perversidades.
Portanto não podemos utilizar a proposta de mansidão para justificar nossa passividade diante da injustiça, perversidade, opressão e hipocrisia. Jesus não pregou a violência armada mas atuou no campo das ideias, buscando encontrar nos corações humanos solo fértil para plantar as sementes de amor, de solidariedade de fraternidade para que a árvore do bem coletivo crescesse e desse frutos.
Jesus se armou de um ideal e com força, coragem e firmeza o defendeu até a morte, e nós até que ponto estamos defendendo nossas ideias? Até que ponto estamos sendo coerentes entre o que defendemos na oratória e na escrita e as nossas atitudes? Porque as ideias são sustentadas e nutridas pelas atitudes. São as ideias que mudam o mundo, porque ideias não morrem jamais, ela estão sempre se espalhando e fecundando corações até que se coagulam e se transformam em ação, e aí as mudanças ocorrem.
Todas as transformações das sociedades humanas, ocorreram porque indivíduos e grupos se colocaram à frente do seu tempo e enfrentaram suas mazelas, e todos, sem exceção, sofreram represálias dos que não desejavam as mudanças. Não confundir mansidão com passividade, porque expressar a indignação diante da injustiça não é ser violento, desmascarar a hipocrisia não é ser perverso, e foi isso que fez Jesus e podemos ter certeza que ele se insurgiu contra aquela ordem social vigente. Por que ele foi assassinado? Por que o crucificaram se ele não pegou em armas, não ofendeu ninguém, não tentou tomar o lugar de ninguém? Ele defendeu um ideal e agiu de acordo com esse ideal.
Talvez possamos nos inspirar em sua conduta, e aproveitarmos todos os espaços e oportunidades da vida cotidiana para exercitarmos nosso ideal, ainda que por conta dessa defesa sejamos desprezados por uns, incompreendidos por outros e até presos ou mortos por terceiros. Afinal que herança deixaremos para os mansos que herdarão a terra quando aqui não mais estivermos? Deixaremos a única coisa que não morre jamais, mataram Jesus, mas suas ideias atravessaram o tempo e alcançaram nossos corações. E, como diz a belíssima canção “Luzes da Ribalta”, composta pelo inesquecível Charles Chaplin (1889-1977), na versão de Antônio Almeida, “para que chorar o que passou, lamentar perdidas ilusões, se o ideal que sempre nos acalentou renascerá em outros corações”.