Que fez São Tomás de Aquino diante de Karl Marx

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Nesse texto de 2009, Grimaldo Zachariadhes, mestre em história social e pesquisador do trabalho social feito pela Companhia de Jesus no Brasil no século XX, inspirado pela palestra de Hélder Câmara na Universidade de Chicago em 1974, trata das relações entre o pensamento cristão e o marxismo. Uma ótima e profunda reflexão principalmente àqueles que veem com desconfiança insubstanciada as relações entre o materialismo marxista e o espiritualismo cristão.

Grimaldo Carneiro Zachariadhes – Revista Lua Nova (texto original e completo aqui)

RESUMO

O artigo aborda o diálogo de setores da Igreja Católica com o pensamento marxista. É privilegiado neste trabalho o Centro de Estudos e Ação Social (Ceas), uma instituição fundada pelos jesuítas na Bahia. Procurarei demonstrar como esta instituição da Companhia de Jesus reinterpretou o marxismo com base na sua visão cristã, contribuindo para a construção de um novo pensamento social católico no Brasil, durante a segunda metade do século XX.

INTRODUÇÃO

Que faria São Tomás de Aquino, o comentador de Aristóteles, diante de Karl Marx? Este foi o título de uma palestra realizada na Universidade de Chicago, no dia 29 de outubro de 1974, pelo então arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara, para a comemoração do 7º centenário da morte de São Tomás de Aquino. O sacerdote, nesta ocasião, fez um desafio para a universidade americana: que fizesse com o pensador Karl Marx o que São Tomás fizera com Aristóteles, ou seja, reinterpretasse-o, retirando dele aquilo que era positivo. E aos que poderiam se negar a fazê-lo, alegando que Marx era “materialista, ateísta militante, agitador, subversivo, anticristão”, ele lembrava que quando um homem:

“empolga milhões de criaturas humanas, sobretudo de jovens; quando um homem inspira a vida e a morte de grande parte da humanidade, e faz poderosos da terra tremer de ódio e de medo, este homem merece que o estudemos, como certamente o estudaria quem enfrentou Aristóteles e dele soube destacar tudo o que havia de certo” (Câmara, 1975, p. 53).

Este artigo pretende analisar o Que fez São Tomás de Aquino diante de Karl Marx, isto é, como se deu este diálogo entre católicos – especialmente os jesuítas – e marxistas, principalmente durante a segunda metade do século XX, no Brasil. Vou privilegiar neste texto o Centro de Estudos e Ação Social (Ceas) e buscar compreender como esta instituição, fundada pela Companhia de Jesus, promoveu este diálogo e como reinterpretou o marxismo com base na sua visão cristã, utilizando como fontes principalmente a sua revista intitulada Cadernos do Ceas.

O CONFLITO ABERTO

Em 1937, Pio XI publicava a encíclica Divini Redemptoris, na qual demonstrava aos católicos sua preocupação com o comunismo ateu, reafirmando as condenações feitas pelos seus predecessores e por ele mesmo em outros momentos. O Papa se preocupava com o crescimento dos comunistas e alertava aos “veneráveis Irmãos” que “não se deixem enganar! O comunismo é intrinsecamente perverso e não se pode admitir em campo nenhum a colaboração com ele”. Lembrava que nos países aonde os comunistas chegaram ao poder se manifestava “o ódio dos ‘sem-Deus'” contra os cristãos (Pio XI, 1937, p. 53).

Esta afirmação papal expressava muito bem as preocupações da Igreja Católica em relação aos comunistas naquele momento. A posição do clero era de enfrentamento aos comunistas, que eram vistos como inimigos que deveriam ser combatidos. Além da crítica ao ateísmo dos comunistas, os religiosos discordavam da solução que era proposta por eles nas questões sociais. A Igreja Católica, preocupada com as condições de pobreza dos trabalhadores e também com a influência dos comunistas sobre eles, começou a formular um pensamento social católico. O clero procurava construir uma alternativa para o socialismo e para o liberalismo econômico que era visto, também, como um mal e responsável pela penúria dos trabalhadores.

Em 1891, o Papa Leão XIII publicou a encíclica Rerum Novarum. A partir desta obra, a Igreja Católica começou a formular oficialmente sua Doutrina Social, que serviria de direção para a atuação do clero e dos católicos nas questões sociais. Leão XIII afirmava que pretendia vir em “auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida”. O Papa constatava que “o que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços”. Para o diagnóstico do problema, porém, Leão XIII colocava a solução nas mãos dos patrões, pois, a eles competia a responsabilidade pelos operários, garantindo-lhes “plena satisfação” nas condições materiais (Leão XIII, 1891, pp. 10-23).

O Papa Pio XI, ao comemorar os 40 anos da Rerum Novarum, lembrava que, em certas regiões do mundo, os trabalhadores ainda estavam relegados “à ínfima condição e sem a mínima esperança de se verem jamais senhores de um pedaço de terra; se não se empregam remédios oportunos e eficazes, ficarão perpetuamente na condição de proletários” (Pio XI, 1931, p. 39). No entanto, esse remédio tem que de ser “segundo os princípios de um são corporativismo, que reconheça e respeite os vários graus da hierarquia social” (Pio XI, 1937, p. 33). A Doutrina Social Católica defendida pelo clero era assistencialista, paternalista e propunha como solução para os problemas socioeconômicos, uma conciliação entre as classes. E isso era proposto também pela hierarquia brasileira.

Alguns bispos paulistas pediam aos “cristãos abastados” iniciativas para a solução do flagelo social da tuberculose em nome “da piedade cristã em favor dos nossos queridos pobres e doentes” (“Pastoral Coletiva do Episcopado Paulista sobre alguns erros contra a fé e a moral”, 1941, p. 898). Não contém nenhuma referência neste documento à responsabilidade do Estado perante o flagelo da população ou de melhorias na Saúde Pública; defende-se apenas a ajuda dos ricos aos mais pobres. Um manifesto assinado pelos principais bispos do Brasil, que deveria servir de orientação de conduta aos católicos, defendia como solução para os problemas sociais, a assistência, pois constitui:

“Quando bem organizada e aplicada, um elemento de desafogo de milhares criaturas que, de outra forma, nas circunstâncias presentes, não encontrariam outra maneira de reajustamento nem outros meios imediatos para atender às necessidades urgentes de sua vida, na defesa da saúde, da educação, da alimentação, da moradia e da higiene” (“Manifesto do Episcopado Brasileiro sobre a Ação Social”, 1946, p. 479).

Estas manifestações do episcopado despolitizavam os problemas sociais. Os sacerdotes revelavam uma análise simplista da realidade brasileira e superestimavam o alcance real da assistência social, além de uma visão paternalista das relações sociais. A hierarquia não percebia que sem reformas que resolvessem as causas da pobreza, toda solução teria um alcance restrito. O clero via como causa dos problemas sociais menos as estruturas do que a falta de religiosidade da sociedade; os conflitos não estariam principalmente no sistema capitalista, mas sim nos corações dos homens. O Papa Pio XI questionava se não tinha sido a cobiça “que arrastou o mundo ao extremo que todos vemos e todos deploramos?” (Pio XI, 1932, p. 579).

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Publicado no Facebook em 29/4/2020.

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