Viver, morrer e renascer até a plenitude

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Releituras kardecistas com Marcio Sales Saraiva

Aprendemos no espiritismo que o corpo humano é composto de três dimensões entrelaçadas: o corpo físico (matéria orgânica), o corpo perispiritual (outras escolas chamam de corpo energético ou corpo astral) e o espírito. A ligação entre o espírito e o corpo físico se dá pelo corpo perispiritual ou períspirito. Pense, apenas como alegoria, na casca do ovo como sendo seu corpo físico, na clara como o períspirito e na gema como espírito. Somos uma trindade regida pelo espírito imortal.

Em todos os elementos orgânicos do nosso planeta, encontramos o que o espiritismo chama de “princípio vital” ou “fluido vital”. É um tipo de energia que mantém a atividade desses corpos, incluindo o corpo perispiritual. Na ausência dessa energia, desse princípio vital, cessa a vida orgânica e os movimentos. Quando morremos ou quando morre um animal ou uma planta, o princípio vital dissipou-se na natureza, retornou ao “fluido cósmico universal”, retornou para a energia cósmica que sustenta a vida do universo.

Esse princípio vital é importante para compreendermos os passes espíritas, as curas espirituais, as questões alimentares, os fenômenos mediúnicos etc., mas concentro-me aqui na questão da morte.

A morte é, nos seres orgânicos, como nós, “exaustão dos órgãos” (questão 68 de “O livro dos espíritos”). Esgotou-se o princípio vital daquela maquinaria orgânica, exceção feita ao suicídio direto que faremos comentários em outra oportunidade. Isto é, morreu porque a máquina escangalhou, “a vida se esvai” (68-a). É quando o espírito (com seu corpo perispiritual) se desliga do corpo físico, da matéria, e “a matéria inerte se decompõe e vai formar novos seres; o princípio vital retorna à massa” (questão 70).

Kardec faz um comentário interessante, dentro do contexto da segunda metade do século XIX:

“Temos uma imagem mais exata da vida e da morte num aparelho elétrico. Esse aparelho recebe a eletricidade e a conserva em estado potencial, como todos os corpos da natureza. Os fenômenos elétricos, porém, não se manifestam enquanto o fluido não for posto em movimento por uma causa especial, e só então se poderá dizer que o aparelho está vivo. Cessando a causa da atividade, o fenômeno cessa: o aparelho volta ao estado de inércia. Os corpos orgânicos seriam, assim, como pilhas ou aparelhos elétricos nos quais a atividade do fluido produz o fenômeno da vida: a cessação dessa atividade ocasiona a morte.”

Acabou a pilha, acabou a luz, o corpo se apaga. É a morte em sua dimensão material. Um fenômeno absolutamente natural, mas que é carregado de simbolismos culturais, arquetípicos, religiosos e afetivos profundos.

Durante muito tempo, no mundo ocidental, duas interpretações prevaleceram diante da morte. A primeira, materialista e posterior à Idade Média, dizia que tudo se acaba com a morte do corpo físico, pois nada existe além disso. A outra, religiosa, dizia que a alma seria julgada e iria ao céu ou ao inferno (se for católico, ainda poderia apelar para o purgatório). Claro que, dentro do campo religioso cristão, há inúmeras questiúnculas teológicas que não quero me deter aqui.

O espiritismo traz uma concepção nova para o ocidente cristão, ainda que já velha conhecida dos orientais e até mesmo de algumas interpretações bíblicas dos primeiros séculos (que foram considerado heréticas). A morte do corpo físico não é o fim da vida, mas sua continuidade em outra dimensão e que, mais tarde, essa mesma e única vida iria encarnar-se em novo corpo para dar sequência ao seu progresso espiritual até a plenitude, a perfeita iluminação, a libertação da “roda de samsara” das reencarnações físicas, até ser “um com Cristo”.

A morte existe, para o espiritismo, como fenômeno orgânico, mas não como totalidade da vida, posto que a vida continua, o espírito abandona o exausto corpo material para depois retomar sua jornada na direção da divindade, do sistema, do infinito. E esse é apenas um dos sentidos em que o espiritismo traz uma visão de mundo consoladora e avessa ao desespero, ainda que respeitadora de toda a dor e luto, processos psicológicos fundamentais de qualquer “perda” ou separação, pois a alma precisa de tempo, sempre.

Como espíritas, choramos a morte como quem se despede de alguém que viajará por longo tempo e que, o mais provável, não poderá fazer contato direto conosco. É um processo doloroso, sem dúvidas, mas não é o fim da história. Ao conhecermos o espiritismo e compreendermos suas pesquisas, seus dados empíricos e suas evidências, educamo-nos diante da morte –como dizia Herculano Pires– e podemos até repetir com Francisco de Assis, “ó, irmã morte”, posto que o pânico perdeu o sentido. Sabemos que a vida continua.

Em outras palavras, o estudo sério do espiritismo nos faz entender aquilo que Jesus falou –e foi anotado pelo evangelista Lucas (20:38)– quando disse: “Deus não é Deus de mortos, mas sim de vivos, pois para Ele todos vivem”. Tudo é vida. Nada morre definitivamente, mas tudo se transforma, certamente. E o corpo físico na terra se transmutará e alimentará outras formas de vida, pois nada se perde, enquanto o espírito segue sua caminhada, por vezes tropeçando e caindo, mas recomeçando e avançando sempre.

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