Palavras, divisões e ódios

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Arte de Bansky, "Menino com avião de caça", pintado num muro em Tel Aviv, na Palestina ocupada.
Releituras kardecistas com Marcio Sales Saraiva.
 
Não é somente no espiritismo, mas em diversas visões espirituais de mundo, religiosas ou não, há necessidade de definir conceitos, escolher palavras e fazer interpretações. Os conflitos aparecem, claro, e devem ser tratados com razão e serenidade.

Arte de Bansky, “Menino com avião de caça”, pintado num muro em Tel Aviv, na Palestina ocupada.
Cada um irá ler um texto de acordo com sua bagagem existencial, de acordo com seus valores e crenças. Não existe uma leitura “neutra” ou isenta das paixões humanas, dos afetos e daquilo que cada um traz dentro de si.
Allan Kardec, em “O livro dos espíritos”, enfrentou a difícil tarefa de escolher conceitos e nomear coisas e processos que antes não tinham nomeação, incluindo correção de termos antes usados de outra maneira. Isso poderá gerar reações positivas, de aceitação e compreensão, mas também poderá despertar profundas críticas. Inovar conceitos e palavras não é fácil, pois não é somente uma operação linguística. É também um trabalho social e político.
Na questão 28, Kardec pergunta aos bons espíritos:
“Sendo o espírito, em si mesmo, alguma coisa, não seria mais exato, e menos sujeito a confusões, designar esses dois elementos gerais pelas expressões: matéria inerte e matéria inteligente?”
Homem moderno e impregnado dos valores do Iluminismo, Kardec deseja criar para o espiritismo conceitos objetivos, “exatos” e claros, evitando assim confusões e má-interpretações. Esta clareza é um dos princípios de boa ciência, algo que falta em diversos textos religiosos.
Os bons espíritos parecem compreender este objetivo cartesiano de Allan Kardec, mas fazem uma ponderação extremamente importante. Leiamos:
“As palavras pouco nos importam. Cabe a vós formular a vossa linguagem, de maneira a vos entenderdes. Vossas disputas provêm, quase sempre, de não vos entenderdes sobre as palavras. Porque a vossa linguagem é incompleta para as coisas que não vos tocam os sentidos.”
O que podemos aprender com essa pequena e rica resposta?
1) Cabe a nós, os seres humanos que estão vivendo na carne, formular a linguagem mais apropriada ao espiritismo, a linguagem capaz de criar entendimento. É tarefa nossa, mas estamos sempre pedindo aos espíritos para nos dar de bandeja, para nos dizer tudo.
2) Uma parcela significativa dos conflitos humanos —incluindo as divergências dentro do movimento espírita brasileiro— deve-se à falta de clareza na linguagem, inadequação e uso agressivo da mesma. É a nossa “falta de entendimento” sobre as palavras que se desdobram em brigas e, em casos extremos, ódios.
3) Mesmo que façamos um enorme esforço de criar uma linguagem adequada, precisa, clara e não violenta, ainda assim ela será incapaz de dizer tudo sobre as questões que estão fora da ordem dos sentidos humanos. Em outras palavras, as nossas palavras falham ao tentar descrever o que está além do ser, o que extrapola o campo da matéria bruta. E esta dificuldade enfrentará o espiritismo e a ciência, sempre que tentar ir além do que é palpável e concreto.
4) Com tudo isso, os espíritos dizem para Allan Kardec um remédio para toda a ansiedade sobre conceitos e nomeações: “as palavras pouco nos importam”. É um tapa na cara de nossa arrogância linguística. O fundamental, para os bons espíritos, é o conteúdo ético-moral da mensagem/texto e não as divergências de palavras, obsessão dos encarnados.
Sem dúvida, se nós dedicássemos especial atenção apenas para a questão 28 de “O livro dos espíritos”, não entraríamos em tantas disputas inúteis e buscaríamos aquilo que nos une para além das palavras. E o que está para além das palavras? Pense.
 
Imagem da postagem: Arte de Bansky, “Menino com avião de caça”, pintado num muro em Tel Aviv, na Palestina ocupada.

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