Feminismos com Elizabeth Hernandes – EàE-DF
Eu havia prometido escrever sobre a violência imposta a uma criança, por profissionais do judiciário, que deveriam atuar no interesse das vítimas. Mas eu não conseguia falar sobre o assunto. O lado racional dizia que nada mais havia a acrescentar, mas isso era apenas para disfarçar o horror do emocional, que não queria mais ver, ouvir, falar. Porque dói demais falar sobre uma criança abusada que não teve o acolhimento de quem deveria acolher, proteger e resgatar. Porque quando falo de meninas é sobre mim mesma, é sobre minhas filhas, é sobre todas as mulheres.
E sabe, Patriarcado, tem dias que a gente se cansa. Mesmo as mais combativas, as que se importam, as que não se resignam, as que não obedecem sempre, mesmo essas, têm seus dias de cansaço. E eu, que nem sou tudo isso, me sentia muito cansada nos últimos tempos. Cansada da Amazônia envenenada, dos ambientalistas trucidados, dos números da fome e da morte, das injustiças nunca resolvidas (quem mandou matar Marielle?). Cansada.
Mas em meio a esse imenso desânimo, minha filha, que está fora do Brasil, me manda uma mensagem e se diz horrorizada com o que aconteceu a uma jovem atriz que foi estuprada e que se viu na circunstância de levar adiante a gravidez, até o parto, após o qual deu, legalmente, a criança para adoção. Essa moça teve a intimidade violada por outros coestupradores, profissionais da mídia.
Mais uma que sofreu a violência de um estuprador e depois, a dos coestupradores. E aí, Patriarcado, não tem cansaço que me mantenha calada porque eu preciso, no mínimo, perguntar: até quando?
Até quando mulheres e meninas estarão indefesas diante de estupradores e coestupradores que as recebem no sistema de saúde e não lhes prestam os devidos cuidados; que as julgam no sistema judiciário ou as perseguem na mídia? Até quando a falsa moral religiosa, aquela da pátria-com-deus-pela-família-e-pela-liberdade continuará a deixar meninas e mulheres sem pátria, sem Deus, sem família e sem liberdade? Até quando?
O que leva alguns agentes do judiciário, do sistema de saúde e dos meios de comunicação a tratarem vítimas de abuso sexual como culpadas? O que os faz descumprir regras básicas dos códigos de ética que devem reger suas práticas?
E você ri na minha cara, Patriarcado, dizendo que eu sei muito bem o que é.
Sim, eu e muitos já sabemos.
O que leva essas pessoas a se tornarem coestupradoras é a moral tacanha, capitalista e igrejeira que move as cordas ocultas e desveladas de uma sociedade cruel. Uma sociedade fundada na cultura do estupro, da escravização e da produção de lucro a qualquer custo, principalmente da vida das mulheres.
Uma sociedade cheia de pessoas rezadeiras que levam o terço numa mão e a chibata na outra; que frequentam o centro espírita e falam com voz macia em defesa da vida, mas apenas falam. Na prática, votam duro contra a vida. Contra a vida das mulheres, do povo preto e de tudo que ameaça seus imaginários privilégios. São imaginários porque se trata de uma ilusão de segurança: ninguém está seguro onde as mulheres não estão seguras, onde os pretos são mortos estupidamente e a floresta e os povos originários são, sistemática e paulatinamente, destruídos.
Você, Patriarcado, não tem escrúpulos em usar qualquer tipo de ameaça: milícia, polícia, poder judiciário, sistema de saúde, exposição na mídia, fogo do inferno ou frio do umbral. E segue impune, matando e lesionando mulheres e meninas, todos os dias, seja no aspecto físico ou emocional.
E assim será –tudo pra você e nada pra nós– até perdermos o medo de confrontá-lo. Até a gente não se permitir nem mesmo se sentir muito cansada e emudecida de dor. Assim será até o dia em que, no âmbito religioso, ao invés da culpa, seja o amor a nossa força mobilizadora. Até o dia em que nos dispusermos a crer num Deus que concede livre arbítrio e aceitarmos o legítimo e humano direito de resolver, na vida material e concreta, as questões que são materiais e concretas.
Até quando?
Até que religiões aceitem a existência das mulheres e do seu direito de defender-se de todas as formas de violência, das práticas que atrasam a implantação do reino de amor e justiça prometido por Jesus.
Atenção, Patriarcado, nós continuaremos em luta por uma religiosidade que defenda, de forma concreta, o direito à vida e à liberdade.
Para que este “até quando?” se torne hoje, precisamos falar –em todos os lugares e nas casas religiosas– sobre o direito das mulheres à vida. Precisamos combater o moralismo que causa a morte de umas e torna coestupradores a outros.
Por hoje é só, Patriarcado. Mas saiba que nós estamos atentas e, quando uma de nós se cansa, há sempre uma filha que nos lembra do nosso dever maior para com Deus: o de amar ao próximo na medida em que amamos a nós mesmas. Sempre haverá uma filha que dirá: levanta, mãe, porque é sobre mim.
Parabéns, Elizabeth! Seu texto é primoroso. Estamos aguardando o desfecho dos casos citados no texto, reveladores da crueldade daqueles que tinham a obrigação legal de amparar e proteger meninas/mulheres, vítimas de violência, no nosso país. Com a palavra, os órgãos de controle e fiscalização da magistratura e do ministério público, em especial.
Beth, que texto! A dor dos últimos dias nos deixa perplexas, emudecidas e sem vida. Você conseguiu trazer a tona todo o meu sentimento e minha revolta com tudo que tem acontecido em nosso após. Tá duro demais ! Parabéns por colocar em palavras o que o Patriarcado faz a nós Mulheres!
Parabéns pelo texto, Beth! Um novo mundo não se faz sem cutucar certas feridas.
Que texto maravilhoso. Obrigadapor escrever. Me emocionei e me revoltei aqui. Estava com essa sensação entalada no peito.
Com dor e cansaço de vermos tantos crimes, injustiças, desmatamentos, catástrofes ambientais, espancamentos de vulneráveis… lista grande.
Mas vamos combinar de não morrer e segurar as mãos umas das outras.
Excelente texto!
Que texto! Pessoas que se expressam assim precisam ser escutadas e lidas.. Você colocou em palavras o sentimento de muitas pessoas. É incrível o que acontece ?
Parabéns, Elizabeth Hernandes, pelo seu texto!
Você conseguiu expressar de modo claro e autêntico o que tem nos deixado cansadas demais nesse país. Estaremos sempre na luta pelas mulheres, pelos pretos, pelos excluídos e invisíveis. Vamos sim de mãos dadas sempre para vencer este patriarcado.
Que lindo texto, realmente precisamos ser coerentes do discurso à atitude, trazer as palestras para o cotidiano da realidade atual.
Muito bom, Beth. Leitura difícil e necessária. Estamos juntas!
Parabéns, Beth! Pessoas como você são necessárias neste mundo. Você consegue expressar nossa indignação e nossas dores em palavras. E são dores também minhas, como homem, que se sente arrasado pelo o que foi e é feito nessas mulheres e meninas neste mundo patriarcal. E quem te conhece sabe bem que tua atuação vai além das palavras. Luta e age todo dia pela justiça social. Mesmo quando está cansada.
Parabéns pelo texto impecável, companheira de fé vê luta✊?