Uma homenagem a “Moor”

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Na foto Karl Marx (direita) e Friedrich Engels, com as filhas do primeiro. Da esquerda para a direita, Jenny, Laura e Eleanor. MARKA / UIG / GETTY IMAGES

Ontem, 14 de março de 2020, completaram-se 137 anos da morte de Karl Marx (1818-1883). Poder-se-iam aqui fazer loas merecidas aos seus inigualáveis textos sobre as relações entre trabalho e capital ou às suas críticas sempre mordazes aos que não conseguiam entender suas reflexões.

Não. A homenagem aqui é para o homem Marx, dentro das suas relações humanas mais íntimas: a família. Muito de falso e inescrupuloso se fala sobre essas relações familiares de Marx. Então, ouça-se o que diz Eleanor Marx, sua filha mais nova, sobre “Moor”, o pai e marido Karl.

Carta publicada na Revista Germinal: Marxismo e Educação em Debate (Salvador, v. 10, n. 1, mai. 2018).

Na foto Karl Marx (direita) e Friedrich Engels, com as filhas do primeiro. Da esquerda para a direita, Jenny, Laura e Eleanor. MARKA / UIG / GETTY IMAGES

Karl Marx (1)

Eleanor Marx-Aveling (2)

(Algumas notas casuais)

Meus amigos austríacos pedem-me que lhes envie algumas recordações de meu pai. Não poderiam ter me pedido nada mais difícil. Porém, os homens e mulheres austríacos estão sustentando uma luta tão bela pela causa por que Karl Marx viveu e trabalhou que não se pode dizer-lhes não. Por isso, tentarei mesmo mandar-lhes algumas notas casuais, esparsas, acerca de meu pai.

Muitas histórias estranhas têm sido contadas a respeito de Karl Marx, desde as de seus “milhões” (em libras esterlinas, evidentemente, pois nenhuma moeda inferior serviria), até a de ele ter sido subvencionado por Bismarck, a quem por hipótese teria visitado constantemente em Berlim durante o tempo da Internacional(!). Mas, afinal de contas, para os que conheceram Karl Marx nenhuma lenda é mais engraçada do que a que o descreve comumente como um homem casmurro, virulenta, inflexível, trovejando, nunca visto sorrindo, sentado sozinho e aparatado no Olimpo. Essa imagem da mais jovial e alegre alma que jamais respirou, de um homem fervilhante de humor e bom humor, cuja gargalhada cordial era contagiosa e irresistível, do mais delicado, meigo e compadecido dos companheiros, é um permanente portento – e divertimento – para os que o conheceram.

Em sua vida doméstica, assim como em colóquios com amigos, e até com meros conhecidos, creio poder se dizer que as principais características de Karl Marx eram seu ilimitado bom-humor e sua irrestrita compaixão. Sua delicadeza e paciência eram realmente sublimes. Um homem de temperamento menos brando teria muitas vezes ficado frenético com as interrupções constantes, as exigências contínuas a ele feitas por toda espécie de pessoas. Ter um refugiado da comuna – um rematado maçador antigo, por sinal – que retivera Marx durante três horas mortíferas, ao final lhe ser dito que o tempo estava correndo e ainda havia muito trabalho a fazer, respondido “Mon cher Marx, je vous excuse” é característico da cortesia e delicadeza de Marx.

Como com esse velho paulificante, também com qualquer homem ou mulher que ele julgava honesto (e ele dedicou seu tempo precioso a não poucos que melancolicamente abusaram da sua generosidade), Marx era sempre o mais amigável e gentil dos homens. Seu poder para “puxar” pelas pessoas, fazendo-as crer que estava interessado naquilo que lhes interessava, era maravilhoso. Tenho ouvido homens das mais diversas profissões e posições falar da capacidade especial dele para compreendê-los e aos seus assuntos. Quando ele acreditava na sinceridade de alguém, sua paciência era irrestrita.

Nenhuma pergunta era por demais trivial para ele responder, nenhum argumento demasiadamente infantil para merecer discussão séria. Seu tempo e sua vasta cultura estavam sempre a serviço de qualquer homem ou mulher que aparecesse ansioso por aprender.

*

* *

Era em suas relações com os filhos, porém, que Marx talvez fosse mais fascinante. Por certo, nunca crianças tiveram um companheiro de brincadeiras mais encantador. Minha mais remota lembrança dele é de quando eu tinha cerca de três anos, e “Moor” (o velho apelido de casa escapou-me) me levava nos ombros em volta do nosso pequeno jardim em Grafton Terrace, pondo flores “campainha” nos meus cachos castanhos. “Moor” era reconhecidamente um cavalo esplêndido. Antes disso – não me lembro mas ouvi contar – minhas irmãs e o irmãozinho – cuja a morte logo após meu nascimento foi uma dor que afligiu meus pais a vida inteira – “atrelavam” “Moor” a cadeiras, em que eles montavam e ele tinha de puxar… Pessoalmente – talvez por não ter irmãs de minha idade – eu preferia “Moor” como cavalo de sela. Sentada em seus ombros, agarrando-me em sua vasta cabeleira então negra, mas com salpico grisalho, dei magníficos passeios em nosso jardinzinho e pelos campos – agora cheios de prédios – que rodeavam nossa casa em Grafton Terrace.

Uma palavra quanto ao apelido “Moor”. Em casa, todos tínhamos apelidos. (Os leitores de “O capital” saberão como Marx era bom em pôr apelidos.) “Moor” era o nome comum, quase oficial, pelo qual Marx era chamado não só por nós, como por todos os amigos mais íntimos. Mas ele era também nosso “Challey” (originalmente, creio eu, uma corruptela de Charles) e “Old Nick”. Minha mãe era sempre nossa “Mohme”. Nossa velha e querida amiga Hélène Demuth – a amiga de uma vida inteira de meus pais –, após uma série de nomes, tornou-se a nossa “Nym”. Engels, depois de 1870, tornou-se nosso “General”. Uma amiga muito intima – Lina Schoeler – nossa “Velha Toupeira”. Minha irmã Jenny era “Qui Qui, Imperador da China” e “Di”. Minha irmã Laura (Madame Lafargue), “a Hotentote” e “Kakadou”. Eu era “Tussy” – um nome que ficou – e “Quo, Quo, Sucessor do Imperador da China”, e por muito tempo o “Getwerg Alberich” (dos Niebelungen Lied).

Contudo, embora “Moor” fosse excelente cavalo, ele possuía uma outra qualidade ainda mais alta. Era um contador de histórias ímpar, sem rival. Ouvi minhas tias dizerem que em pequeno ele era um terrível tirano para as irmãs, a quem “guiara” ao longo do Markusberg em Trier, a toda velocidade, como cavalos dele, e, o que é pior, insistia em que comessem os “bolinhos” que ele fazia com massa suja e mãos ainda mais sujas. Elas, porém, aguentavam tudo sem murmurar, para poderem ouvir as histórias que Karl lhes contaria depois como recompensa por sua virtude. E assim, muitos anos depois, Marx contava histórias para os filhos. A minhas irmãs – eu era então muito pequena – contava histórias quando saiam caminhando, e elas eram medidas em quilômetros e não em capítulos. “Conta mais um quilômetro”, era o grito das duas meninas. De minha parte, dos muitos contos maravilhosos que “Moor” me contou, o mais notável, o mais delicioso, foi “Hans Roeckle”. Durou meses e meses; era uma série completa de histórias. Que pena ninguém estar ali escrevendo aqueles contos tão cheios de poesia, de espírito, de humor! Hans Rockle era um mágico à moda de Hoffmann, que possuía uma loja de brinquedos e vivia sempre “pronto” a loja dele estava cheia de coisas mais extraordinárias – homens e mulheres de madeira, gigantes e anões, reis e rainhas, trabalhadores e patrões, animais e pássaros tão numerosos como os que Noé colocou em sua Arca, mesas e cadeiras, carruagens, caixas de toda espécie de tamanho. E embora fosse mágico, Hans nunca conseguia satisfazer suas obrigações para com o diabo ou o açougueiro, e portanto – muito a contragosto – era obrigado constantemente a vender seus brinquedos – sempre acabando de volta à loja de Hans Roeckle. Algumas dessas aventuras eram tão horrendas, tão horríveis quanto qualquer uma de Hoffmann; algumas eram cômicas; todas eram narradas com inesgotável verve, espírito e humor. E “Moor” também lia para os filhos. Foi assim que para mim, como antes para as minhas irmãs, leu na íntegra Homero, os Niebelungen Lied, Gudrun, Dom Quixote, as Mil e Uma Noites etc. Quanto a Shakespeare, era a Bíblia de nossa casa, raramente fora de nossas mãos e de nossos lábios. Aos seis anos, eu já conhecia de cor cenas inteiras de Shakespeare.

Em meu sexto aniversário “Moor” presenteou-me com minha primeira novela – o imortal Pedro Simplório. Essa foi acompanhada por um curso inteiro de Marryat e Cooper. E meu pai de fato lia cada um dos contos a medida que eu os lia e discutia-os seriamente com sua garotinha. E quando essa garotinha, inflamada pelos contos marítimos de Marryat, declarou que iria ser um “Capitão do Posto” (sei lá o que isso seria) e consultou o pai se não lhe seria possível “vestir-se como menino” e “fugir para alistar-se em um navio de guerra”, ele lhe garantiu que a ideia poderia muito bem ser seguida, mas só que não deveriam contar a ninguém até os planos estarem bem amadurecidos. Antes dos planos poderem amadurecer, contudo, pegara a mania de Scott, e a menina ouviu, para seu horror, que ela mesma em parte pertencia ao detestado clã dos Campbell. Em seguida, houve planos para sublevar os Highlands e para reviver “os quarenta e cinco”. Devo acrescentar que Scott era um autor a quem Marx repetidamente voltava, que admirava e conhecia tão bem quanto a Balzac e Fielding. E enquanto conversávamos sobre esses e muitos livros, ele ia indicando a essa menina, que se mostrava completamente inconsciente ao fato, onde procurar o que havia de melhor nos livros, ensinando-a – embora ela nunca imaginasse que estivesse sendo ensinada, ao que se teria oposto – a tentar e a pensar, a tentar e a entender por si mesma.

E da mesma forma, esse “amargo” e “exasperado” homem falava de “política” e “religião” com a meninazinha. Quão bem me recordo, quando tinha talvez cinco ou seis anos, ter sentido certos escrúpulos religiosos e (tínhamos estado em uma igreja católica romana para escutar a linda música) confiando-os, naturalmente, a “Moor”, como ele calmamente deixou tudo tão claro e certo para mim que desse momento até hoje nenhuma dúvida jamais voltou a passar por meu pensamento. Lembro-me, agora, de ele me contar a história – não acho que poderia ter sido contada assim antes ou depois – do carpinteiro a quem os ricos mataram, e de dizer inúmeras vezes: “Afinal de contas podemos perdoar muita coisa ao cristianismo por nos ter ensinado o culto da criança.”

E o próprio Marx poderia ter dito “deixem as criancinhas vir a mim”, porque onde quer que ele fosse também surgiam crianças. Se se sentava na charneca em Hampstead – um vasto espaço aberto no norte de Londres, perto de nossa antiga casa –, se descansava em um banco num dos parques, dentro em pouco um bando de crianças estava reunido em volta dele nos termos mais íntimos e amigáveis com o homem grande de cabelos e barba longos e os bondosos olhos castanhos. Crianças completamente estranhas vinham assim a ele, paravam-no na rua… uma vez, recordo-me, um pequeno escolar de uns dez anos bem sem cerimônia deteve o temível “chefe da Internacional” no Parque Maitland e pediu-lhe para “barganhar canivetes”. Após uma pequena explicação indispensável de que “barganhar” era o termo escolar para “trocar”, os dois canivetes apareceram e foram comprados. O do menino tinha só uma lâmina e o do homem duas, mas estas estavam inegavelmente cegas. Após muito debate, foi feita a barganha: O terrível “chefe da Internacional” acrescentou uma moeda, levando em conta que suas lâminas estavam cegas.

Como me lembro bem da paciência e doçura infinitas com que, tendo a guerra norte-americana e os Livros Azuis substituído temporariamente Marryat e Scott, ele respondia a todas as perguntas e nunca se queixava de uma interrupção. No entanto, não deve ter sido pouco transtorno crianças pequenas tagarelando enquanto ele trabalhava em seu grande livro. À criança, porém, jamais era dado ensejo de perceber que podia estar atrapalhando. Nessa época, também, lembro, tive absoluta convicção de que Abraão Lincoln precisava urgentemente de meus concelhos sobre a guerra, e escrevia cartas extensas dirigidas a ele, todas as quais, está claro, “Moor” tinha de ler e por no correio. Muitos, muitos anos depois, ele mostrou-me aquelas cartas infantis que guardara porque o tinham divertido muito.

E assim, através dos anos da infância e da juventude, “Moor” foi um amigo ideal. Em casa, todos éramos bons camaradas e ele sempre o mais dedicado e mais bem humorado. Mesmo durante os anos de sofrimento, quando padecia continuamente de dores, devido aos carbúnculos, mesmo até o fim…

*

* *

Escrevinhei estas poucas reminiscências descosidas, mas mesmo assim ficariam incompletas se não acrescentasse uma palavra sobre a minha mãe. Não é exagero afirmar que Karl Marx nunca poderia ter sido o que foi sem Jenny von Westphalen. Nunca ouve dias de duas pessoas – ambas notáveis – tão unidas, tão completamente uma da outra. De beleza extraordinária – uma beleza de que ele se orgulhava e alegrava até o fim, e que merecera a admiração de homens como Heine, Herwegh e Lassalle –, de intelecto e espirito tão brilhantes quanto sua beleza, Jenny von Westphalen foi uma mulher entre milhões. Como rapaz e mocinha – ele mal fizera 17, ela 21 – ficaram noivos, e como ocorreu com Jacó em relação a Raquel, ele serviu sete anos antes de se casarem. Depois, através dos anos seguintes de tempestades e tensão, de exílio, pobreza áspera, calúnia, luta intrépida e batalha porfiada, esses dois, com sua fiel e leal amiga Hélène Demuth, enfrentaram o mundo, nunca titubeando, nunca recuando, sempre no posto do dever e do perigo. Em verdade, poderia ele dizer dela nas palavras de Browning:

“Portanto,  ela é minha noiva imortal.

A sorte não pode mudar meu amor,

Nem o tempo debilitá-lo…”

E eu, às vezes, penso que quase tão forte entre eles como foi o vínculo de seu devotamento à causa dos trabalhadores foi também o seu imenso senso de humor. Garanto que nunca duas pessoas apreciaram melhor uma brincadeira do que aqueles dois. Repetidas vezes – especialmente se a ocasião exigia compostura e seriedade – vi-os rir até as lagrimas correrem pelas faces a baixo, e mesmo as pessoas dispostas a ficar chocadas ante tamanha jovialidade intempestiva não podiam deixar de rir com eles. E quão amiúde vi-os sem se atreverem a olhar um para o outro, cada um sabendo que um mero vislumbre trocado resultaria em risadas incontroláveis! Ver os dois com os olhos fixos em qualquer coisa que não fosse o outro, parecendo, a todos, dois escolares, sufocando com o riso reprimido que acabava, a despeito de todos os esforços, arrebentando, é uma recordação que eu não trocaria por todos os milhões que as vezes atribuem a minha herança. Sim, malgrado todo o sentimento, as lutas, os desapontamentos, eles eram uma dupla alegre e o acirrado Júpiter Tonitruante uma ficção da imaginação burguesa. E se nos anos de luta houve muitas desilusões, se depararam com a ingratidão de estranhos, tiveram o que a poucos é dado – amigos sinceros. Onde é conhecido o nome de Marx, também é o de Friedrich Engels. E aqueles que conheceram Marx em seu lar também se lembram do nome da mais nobre das mulheres que jamais viveu, o nome honrado de Hélène Demuth.

Aos estudiosos da natureza humana, não parecera estranho que esse homem, que foi um tal lutador, fosse ao mesmo tempo o mais dedicado e meigo dos homens. Entenderão que ele pôde odiar tão ferozmente só porque soube amar profundamente; que se sua caneta cortante podia certamente prender uma alma no inferno como o próprio Dante, foi por ele ser tão sincero e terno; que se seu humor sarcástico podia morder como ácido corrosivo, esse mesmo humor podia ser igualmente um lenitivo para os aflitos e os em dificuldade.

Minha mãe morreu em dezembro de 1881. Quinze meses depois, ele, que nunca estivera separado dela em vida, reuniu-se-lhe na morte. Após a febre espasmódica da vida, eles dormem bem. Se ela foi uma mulher ideal, ele – bem, ele “foi um homem, considere-o no todo, não veremos igual jamais”.

Notas:

  1. Transcrito de FROM, Erick. Conceito Marxista de Homem. 6a Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
  2. Personalidade do movimento operário inglês e internacional, filha mais nova de Marx, companheira do socialista inglês Eduard Aveling. Participou da Federação Democrática liderada por Henry Hyndman no início dos anos 1880. Junto com Eduard Aveling e William Morris participou da formação da Liga Socialista, tendo publicado, no Commonwal – jornal mensal da entidade – vários artigos e comentários sobre a questão feminina e outras questões. Foi uma ativa militante sindical, e em 1889 participou, como delegada, da fundação da Segunda Internacional. Após a morte de Engels dedicou-se à tarefa de organizar os manuscritos de Marx. Suicidou-se em 31 de março de 1898 com a idade de 43 anos. Marxist Internet Archive. Disponível em:

https://www.marxists.org/portugues/eleanor/index.htm. Acesso em 21/05/2018.

Publicado no Facebook em 15/3/2020

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