Afinal, onde está o limite entre o bem e o mal? Nos espaços religiosos em geral e nos centros espíritas em particular, quando questionados, os frequentadores de templos religiosos são unânimes em afirmar que a compaixão, a solidariedade e a bondade são qualidades a serem cultivadas e praticadas. A questão a ser feita é: por que somos ainda tão maus uns com os outros? O que acontece com os seres humanos para terem atitudes tão sectárias, ofensivas, grosseiras, agressivas, violentas e destrutivas uns com os outros?
Questionados os cristãos do século XXI sobre o que é Deus, responderão que é amor supremo, bondade suprema e misericórdia suprema, entretanto, mesmo tendo inúmeros exemplos de seres humanos altruístas que nos ensinam lições de bondade e gentileza, expressando em atos, palavras e atitudes o amor e a bondade, a maioria segue entorpecida na ignorância, sem consciência da sua essência divina.
A bondade pode ser rastreada no coração humano, desde tempos imemoriais, quando seres humanos foram capazes de se contrapor ao pensamento hegemônico do momento histórico, colocando, muitas vezes, a liberdade e a vida em risco, transcendendo a estreita percepção egoica e estendendo as mãos a quem precisava.
Diante do cenário do mundo contemporâneo, de sociedades altamente complexas, é preciso fazer uma reflexão profunda a respeito da bondade e da maldade. Entre 1885 e 1886, o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) escreveu uma das obras mais importantes da sua vida e talvez uma das mais importantes do século XIX. “Além do bem e do mal” é uma obra na qual Nietzsche questiona os critérios que definem bem e mal, quais são nossos critérios para valorar algo? Quais são nossos valores hoje? Afinal, nossa essência é boa ou má? Nascemos bons e nos tornamos maus ou o meio vai nos moldando? Colocando freios aos nossos maus instintos? Ou será que não nascemos nem bons nem maus, apenas dotados de instintos? De onde surgiram os conceitos de bondade e compaixão?
Nesse ponto, precisamos quebrar certos tabus incrustados no movimento espirita, diferenciando religião e religiosidade. O quanto a religião com seus dogmas e controles do comportamento é limitadora da autossuperação dos seres humanos?
Nós espiritas nos colocamos como seguidores de uma religião sem dogmas, em que o pecado não existiria e a evolução do espirito depende de seu esforço em melhorar-se a cada encarnação. Entretanto, observamos que hegemonicamente os espiritas substituíram dogmas de outras religiões, os chamando por outros nomes, mas que tem o mesmo efeito limitador da expansão da consciência para níveis mais elevados.
Então o inferno se chama umbral; o pecado, lei de causa e efeito; o castigo divino se chama carma; os obsessores substituem o diabo dos evangélicos; e a reverência a determinados espíritos, encarnados ou desencarnados, se iguala à reverência aos santos da igreja católica.
Assim, vamos engessando comportamentos, amarrados a valores e verdades imutáveis, criticando qualquer um que ouse pensar fora da caixinha, nos abstendo de reflexões críticas que impulsionem a transcendência para a construção de uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária.
Os valores são criados por nós e por isso dependem do tempo e do espaço e são, portanto, mutáveis. Essa compreensão básica é fundamental para dar conta das grandes questões postas ao espírito no século XXI. Afinal, quando sairemos do maniqueísmo e atravessaremos a ponte do bem e do mal ao encontro da bondade genuína, aquela que não é fruto da barganha com o Criador, que não é fruto do medo do fogo do inferno ou do carma negativo?
Onde está a raiz do mal? Talvez na nossa vã tentativa de destruir no outro aquilo que não suportamos em nós, talvez no comportamento de manada no qual somos escravos da expectativa do outro, talvez no dogmatismo religioso que engessa e retira toda espontaneidade, talvez na ignorância a nosso próprio respeito, talvez no extremo egoísmo que ainda predomina no coração da maioria dos habitantes da terra, talvez tudo isso junto, porque a resposta à questão do bem e do mal não é simplicista, se reveste de alta complexidade, porém, certamente não vamos encontrar respostas no dogmatismo, no sectarismo e na alienação do enfrentamento aos desafios da nossa sociedade. Nós criamos tudo que chamamos de mal e só nós podemos mudar este cenário.
Jesus nos dá um caminho quando conta a parábola do bom samaritano (Lucas 10:30-37). Ele conta essa parábola em reposta ao questionamento de quem é o nosso próximo a quem devemos amar como a nós mesmos? Aqui cabe identificar a origem e perfil das personagens dessa passagem do Evangelho. A história tem quatro personagens principais: o homem que é atacado por bandidos em uma estrada e deixado agonizante, um sacerdote, um levita e um samaritano. Naquela época, sacerdotes e levitas eram considerados homens de Deus e os samaritanos párias, pois não se reconheciam judeus nem seguiam suas leis e religião. Entretanto, tanto o sacerdote quanto o levita foram incapazes de terem compaixão pelo homem atacado por bandidos, passaram direto e foram certamente orar ao seu Deus se achando melhores do que o samaritano, mas foi esse último que teve compaixão, não quis saber se aquele que precisava de ajuda era pobre ou rico, judeu ou samaritano, ele simplesmente interrompeu seu caminho e se dispôs a ajudar quem precisava. Enfim, a bondade se manifesta independente da religião, cor, classe social, gênero, orientação sexual, lugar na sociedade, bandido ou cidadão dentro da lei. Jesus deixa a dica e faz o convite com a pergunta que fecha a parábola: quem vocês acham que fez a vontade de Deus? E a resposta: aquele que agiu com compaixão para com seu próximo.
Oremos por um mundo com menos sacerdotes e levitas e mais samaritanos.
Essa foi a coluna Dialogando com Isabel Guimarães
Publicado no Facebook em 23 de maio, 2019.
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