A página “Espíritas à esquerda” anuncia uma nova coluna periódica de opinião sobre filosofia e espiritismo: agora também teremos entre nós, de forma regular, os textos maravilhosos da nossa querida Juliana Paula Magalhães. Juliana é paulistana, doutoranda e mestra em filosofia e teoria geral do direito pela Faculdade de Direito da USP e bacharela em direito pela mesma instituição. É também autora da obra “Marxismo, humanismo e direito: Althusser e Garaudy”, publicada pela Editora Ideias & Letras.
Sua coluna de opinião na nossa página se chamará “Espiritismo, filosofia e sociedade”. Bem vinda, Juliana!
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Kardec: ciência, mediunidade e transformação social
O recém-lançado filme “Kardec: a história por trás do nome” é uma brilhante obra cinematográfica, bastante fiel aos fundamentos do legado do mestre lionês. Um importante interregno da vida do professor Rivail –que passou a adotar o pseudônimo Allan Kardec ao ter conhecimento de uma encarnação anterior como sacerdote druida– é retratado, demonstrando a verve de educador e de intelectual combativo do fundador do espiritismo.
Interessante notar que a estreia ocorreu em momento extremamente oportuno da história nacional e mundial. Em um período no qual conservadorismo e reacionarismo campeiam, o filme apresenta com primor o espírito iluminista e científico de Kardec. Coincidentemente, 16 de maio de 2019 foi o dia seguinte às históricas manifestações pela educação em nosso país e o filme inicia justamente apresentando o professor Rivail indignado com os rumos que a educação estava tomando na França, sob o governo de Napoleão III.
O espiritismo, diferentemente do que muitos pensam, não se trata de um movimento iniciado por um caráter religioso, mas sim eminentemente científico. O cético Rivail ficou bastante intrigado com os fenômenos das “mesas girantes”, na época bastante comuns nos salões franceses. De início, ele acreditou tratar-se de pura prestidigitação, no entanto, ao investigar com cuidado, percebeu que as mesas, na realidade, eram comandadas por inteligências desencarnadas, mediante o concurso de médiuns. Daí surgiu todo o edifício teórico do espiritismo.
O rigor científico de Kardec em suas pesquisas era notável e não deixava espaço para embustes e fanatismos. O culto aos médiuns e as tolas crendices –tão comuns, infelizmente, no movimento espírita brasileiro– não pertenciam ao horizonte do mestre lionês. A comunicação de espíritos por meio de apenas um médium não era suficiente para embasar os avanços teóricos da codificação espírita. Kardec recorria a diversos médiuns, das mais diferentes idades e formações e em localidades distintas, indagando as mesmas questões e obtendo as mesmas respostas e esse era um critério importante, ao lado do cuidado metodológico, para que os textos fossem publicados.
Em uma época anterior às descobertas de Freud, Kardec pode, em certa medida, ser considerado uma espécie de precursor da psicanálise, por se dedicar ao estudo de manifestações obtidas de maneira inconsciente. Enquanto a psicanálise limita sua abordagem ao horizonte materialista, a perspectiva espírita avança no estudo das manifestações de inteligências desencarnadas, sem desconsiderar os aspectos psíquicos dos médiuns. Por outro lado, na época, Kardec ainda não dispunha do ferramental teórico da psicanálise, o que, em alguma medida, impossibilitou que ainda maiores avanços fossem obtidos. A partir daí já podemos perceber a fecundidade e a importância fundamental de um diálogo entre espiritismo e psicanálise, o qual, contudo, em geral, é negligenciado.
O movimento espírita, cuja maior expansão ocorreu no Brasil, mostrou-se, em larga medida, marcado por atavismos religiosos, por uma veneração aos médiuns, por argumentos de autoridade, e por indivíduos que buscam promoção pessoal às custas do espiritismo, buscando vender uma imagem de “seres espiritualizados” e privilegiados, narrando constante contato com espíritos superiores, satisfazendo, dessa maneira, o próprio orgulho ao se sentirem superiores aos demais. Há ainda aqueles que procuram vantagens de ordem material, disfarçados de beneméritos, de médiuns ou de intelectuais, vivendo às custas do espiritismo, mercantilizando a mediunidade e os ensinamentos espíritas.
Nesse cenário de horrores, o resgate da cientificidade que sempre pautou as atitudes de Kardec é indispensável. É necessário que o estudo das manifestações espíritas seja feito com rigor e cuidado. O edifício teórico do espiritismo precisa se consolidar e avançar cada vez mais, tanto em seu aspecto científico quanto filosófico, pois, como dizia Kardec, “fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade”.
A transformação social é um horizonte que igualmente deve pautar os caminhos do espiritismo, haja vista que os incômodos diante das desigualdades e das injustiças sociais estiveram presentes no pensamento espírita desde sua origem. O filme é muito feliz ao mostrar a preocupação social de Kardec. Contemporâneo de Karl Marx, o célebre descobridor do materialismo histórico, Rivail descortinou para nós o continente da espiritualidade, demonstrando que, ao lado das determinações materiais, a realidade espiritual também exerce influência considerável nos rumos da humanidade terrena. Espiritismo e marxismo, embora com ferramentas distintas, apontam para o mesmo norte de ruptura com as explorações e opressões que se apresentam em nosso mundo.
Há um belo diálogo no filme, no qual uma das jovens médiuns que colaboravam com Kardec lhe diz: “não se pode apagar uma luz que já foi acesa”. Trata-se de uma sublime verdade. Contudo, diante dos rumos que a grande massa dos espíritas tem tomado na atualidade, é forçoso constatar que o combustível dessa luz talvez não tenha condições de vir do movimento espírita, mas de cientistas, filósofos, intelectuais e lutadores das causas sociais tão céticos quanto o professor Rivail…
Publicado no Facebook em 24 de maio, 2019.
Coluna Espiritismo, filosofia e sociedade por Juliana Paula Magalhães