Gastão Cassel – Jornalista – EàE SC
É estrondoso o sucesso do podcast A Mulher da Casa Abandonada, criado pelo jornalista Francisco Felitti e produzido pela equipe Folha de São Paulo, disponível nos principais tocadores de podcast. A audiência já ultrapassou quatro milhões de ouvintes com uma média de audiência de 2 milhões de plays por episódio — números sem precedentes no cenário de podcasts do Brasil. Em comparação, programas desse formato, bem sucedidos, costumam ter audiência entre 60 mil e 80 mil pessoas.
A Mulher da Casa Abandonada é a recuperação da história de um crime de grande repercussão há cerca de 20 anos, quando o casal Margarida e Renê Bonetti, foram acusados e processados nos Estados Unidos por manter uma funcionária doméstica brasileira, negra, em condições análogas à escravidão. A produção se desenvolve a partir do momento que o autor fica sabendo que a mulher misteriosa que mora sozinha num casarão abandonado no bairro mais caro de São Paulo é a criminosa que foi foragida do FBI.
O grande sucesso do podcast se sustenta sobre três pilares bem claros: o jornalismo, a literatura e a exploração dos recursos de áudio. O autor combina os três elementos com grande maestria, gerando interesse, curiosidade e muito prazer em ouvir. Todos os elementos se encaixam com perfeição gerando um produto que, sem perder seu caráter informativo e de denúncia social, ganha contornos lúdicos. Ouve-se o podcast como quem ouve uma novela, uma história ou um romance.
Escravidão 2022
A grande questão é que o autor e narrador, a partir de um fato bem específico coloca luz sobre um problema social real e recorrente. Em 2022, só no primeiro semestre, 1.178 trabalhadores foram resgatados pelo Ministério do Trabalho de condições análogas à escravidão no Brasil. Registro e direitos trabalhistas, nem pensar.
As histórias são sempre semelhantes e os relatos envolvem condições sub-humanas, má (ou falta de) alimentação, alojamentos precários e remunerações ridículas que, normalmente, não cobrem “dívidas” contraídas com o próprio empregador. A maioria dos casos está na construção civil, agronegócio e na industria têxtil.
A publicação do podcast deflagrou um grande número de denúncias de casos de trabalho análogo ao escravo no âmbito doméstico. Desde que o programa foi ao ar, o número de denúncias de trabalho doméstico análogo à escravidão no Brasil teve um aumento de 67%, conforme dados divulgados pelo Ministério Público do Trabalho em um levantamento realizado a pedido de Felitti.
Segundo o próprio Ministério do Trabalho, a escravidão doméstica é a mais difícil de ser fiscalizada, por acontecer no interior de domicílios.
Da família
O que chama atenção é o argumento que os cometedores desse tipo de crime usam para se justificar. Sempre mencionam que as pessoas não recebiam salário e outros direitos por terem uma relação familiar. São “como da família” discorrerem Margarida Bonetti ou o professor universitário Dalton César Milagres Rigueira, de Patos de Minas, que mantiveram suas “familiares” em condições sub-humanas por décadas.
O argumento de que “são da família” é uma mistura de sordidez, desfaçatez e hipocrisia. Reivindicam laços porque invariavelmente tais pessoas fazem parte do “patrimônio” da família e até costumam ser passados de geração para geração como mostram os dois casos sobre os quais recaiu a investigação do podcast.
No próprio episódio de apresentação do podcast Felitti comenta que o “são da família” é uma verdadeira teses sociológica sobre a elite brasileira. É evidente que a sociedade brasileira ainda está ligada ao pior de sua história, que a elite endinheirada ainda não se conformou com o fim da escravidão e cultiva o desejo de ter sobre quem exercer sua suposta superioridade.
Não por acaso o trabalho doméstico é tão precarizado. Quem não lembra da revolta da classe média quando foi instituído o direito ao FGTS aos trabalhadores domésticos? Não por acaso, a maioria dos empregos domésticos são destinados a mulheres negras, que tão bem representam a figura servil desejada pela elite branca.
Jornalismo
O trabalho de Chico Felitti. é um exemplo de bom jornalismo. Seu trabalho de investigação e apuração e minucioso. Leva às últimas consequências o compromisso de ouvir todas as versões e colocá-las lado a lado de forma crítica e referenciado pela objetividade dos fatos. Destaca-se a paciência e a habilidade com que ele confronta a “mulher da casa abandonada” expondo as provas dos processos e as evidências que ela tenta negar em sua versão. Realizando a primeira entrevista que a acusada dá em toda a histórias do processo, ele dá a ela o direito e o espaço à sua versão, mas não abre mão de expor as contradições. Não como julgamento, e sim como exercício de elucidação da objetividade.
A observação sobre o comportamento do repórter diante da pessoal acusada de um crime é fundamental de ser analisada, porque há uma sacralização do “ouvir os dois lados” que não considera que o serviço completo do repórter não é apenas ouvir todos os lados, mas justapor as versões com os dados objetivos, com as provas processuais e com a materialidade das coisas. Felitti agiu com rigor e perfeição.
É surpreendente que agora me dei conta da barbárie