Texto muito bom de Thiago Lima, para o Jornal GGN, que trata das elucubrações acerca do “mundo de regeneração” tão anunciado nesses tempos de pandemia por médiuns, místicos e assemelhados. Vale a leitura.
A pandemia da covid-19 e o espiritismo: há um mundo de regeneração por vir?
Thiago Lima da Silva – Jornal GGN (texto original e integral aqui).
A crise do novo coronavírus tem convidado o mundo todo à reflexão. Com os espíritas isso não tem sido diferente. A gravidade desta pandemia é tamanha, tanto em termos de extensão global quanto de intensidade, que muitas pessoas têm interpretado esta etapa que vivemos como um possível salto da Terra na escala planetária apontada por Allan Kardec. Estaríamos deixando um mundo de expiação e provas para entrar num mundo de regeneração. Embora isso pareça alentador, devemos refletir mais profundamente antes de concluirmos algo do tipo. Há algo que indica que o mundo já está se tornando um lugar melhor? Pode ser que sim; pode ser que não. O resultado dependerá das ações concretas das pessoas.
Desde que o mundo é mundo existem catástrofes de grandes proporções. A mais famosa, entre os cristãos pelo menos, é certamente o episódio bíblico do dilúvio. Além desse, para o qual não há comprovação científica, existem outros devidamente comprovados. A peste bubônica, que pode ter matado entre 70 e 200 milhões de pessoas no século XIV, e a gripe espanhola, que ceifou entre 50 e 100 milhões de encarnados há 100 anos, são dois exemplos de doenças que geraram mortandade intensa. Entre elas, diversos episódios de Fomes Coletivas, daquelas que geram morte por inanição, poderiam ser registrados. Catástrofes político-militares também caberiam no registro, desde as guerras mundiais do século passado até as “armas biológicas” utilizadas pelos europeus para exterminar os povos nativos das Américas há mais de 200 anos. Nestas, diversos tipos de vírus, como os da gripe e da varíola, foram propositalmente introduzidos no Novo Mundo para forçar o desencarne de populações que não possuíam os anticorpos para se defenderem das infecções. Esses episódios demonstraram que a Terra era um mundo de expiação e provas, ou de regeneração?
No livro “Há um mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins”, os antropólogos Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro refletem sobre algumas vezes em que o mundo já acabou e algumas em que ele vem se acabando[i]. Por exemplo, o mundo dos maias já acabou, mas o mundo de outros indígenas nativos das Américas vem acabando há mais de 500 anos. Há meio milênio os índios que habitam o solo onde hoje é o Brasil vêm se confrontando com o contínuo desmoronamento dos elementos que compõe a sua cosmovisão, e muitos ainda seguem na luta para “adiar o fim do mundo”, como argumenta ambientalista Ailton Krenak[ii]. Para outra parte substantiva das pessoas do globo –possivelmente aquela parte que irá se interessar por ler este texto–, aquelas que vivem numa sociedade capitalista e marcada pela globalização, o mundo começou a acabar com a revolução industrial, no século XIX, que acelerou brutalmente não apenas a emissão de gases nocivos ao equilíbrio da temperatura no planeta, mas também a extração de recursos naturais em escalas cada vez maiores. É um processo que não apenas gera “expulsões” da vida biológica em todas as suas formas, como sustenta a socióloga holandesa Saskia Sassen[iii], mas também a alteração dos regimes climáticos que regem a Terra há milênios. Pela primeira vez na História há uma era geológica denominada a partir da ação do ser humano, isto é, o Antropoceno. Isso quer dizer que, para o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da Organização Meteorológica Mundial e da Organização das Nações Unidas, o principal fator que afeta negativamente o clima no planeta (regime de chuvas e de secas, altas e baixas nas temperaturas, correntes oceânicas, procriação de animais selvagens, germinação de sementes etc.) são as atividades econômicas e sociais do ser humano a partir de uma lógica industrial, extrativista e de globalização, lógica esta que é dinamizada pelo capitalismo. As experiências socialistas, por sua vez, não demonstraram ser muito diferentes no que toca à preservação do meio ambiente. Na verdade, a competição da Guerra Fria estimulava a ampliação da produção industrial nas mais altas escalas ao invés de apresentar alternativas para proteger o planeta.
É possível dizer, em qualquer um desses fins de mundo, que estávamos numa fase de expiação e provas ou no limiar da regeneração planetária? Faça um esforço empático e se imagine vivendo essas catástrofes. Qual seria sua opinião?
Pois bem, há algo que indica que o mundo atual –no qual escrevo e você lê– já está se tornando um lugar melhor? Por um lado, vemos redes de solidariedade se formando entre pessoas para enfrentar a doença e lidar com seu melhor tratamento por enquanto: o isolamento social. Certamente, é algo bonito de se ver. Notamos também que a natureza pode estar aproveitando a redução da atividade econômica e da mobilidade social para respirar e se renovar –embora saibamos que processos profundos de recuperação da natureza devem ser medidos em anos e não em dias. Por outro lado, notamos que os governos dos países não têm sido tão solidários quanto poderiam. As grandes potências não cooperam entre si para organizar uma solução para crise e, enquanto isso, os países em desenvolvimento vão sofrendo com a ausência de equipamentos, profissionais de saúde e de recursos financeiros.
Nosso país, o Brasil, é um caso emblemático. Possuímos um presidente que promove aglomerações justamente quando os principais cientistas do mundo recomendam o isolamento social. Vemos um esforço sistemático para manter igrejas e templos abertos, quando o recomendável seria incentivar as pessoas a ficarem em casa. Os alertas de desmatamento na Amazônia atingem nível recorde atualmente e, quando a polícia federal agiu para coibir as operações ilegais, o governo tratou de imobilizá-la. Quanto aos trabalhadores e trabalhadoras que perderam sua renda devido à inevitável retração econômica decorrente dos processos de quarentena, estes penam para conseguir o mínimo de ajuda financeira do governo federal. Ao mesmo tempo, os trabalhadores que possuem carteira assinada são submetidos a negociações assimétricas de redução salarial. Ainda, o projeto da tal carteira de trabalho ‘verde e amarela’, aquela na qual o trabalhador registrado teria menos direitos trabalhistas, avança no congresso justamente quando a proteção dos direitos deveria ser reforçada. Quer dizer, parece ser muito cedo para apontar que a Terra entrou numa fase de regeneração.
Como demonstrado, o mundo já passou por outras catástrofes e fins. Mas o que será dele dependerá das ações de nós, encarnados. As mensagens que nos chegam pelos médiuns podem ser alentadoras e nos encherem de esperança, mas não deveriam ser tomadas como certezas. Deveriam, sim, nos inspirar a revisar nossos princípios e a estimular, em nós, a tal da reforma íntima que expurgue nossos traços de egoísmo –o principal dos males, segundo Kardec. Além disso, se estamos falando de transição planetária, a depuração do egoísmo não pode ser individual. Ela deve se reverter em ações coletivas e tanto mais amplas quanto possíveis, em associações, comunidades, cidades, estados etc. etc. Isso implicará, do nosso ponto de vista, na revisão do sistema capitalista e das desigualdades que gera[iv]. Na prática, significaria revisão dos sistemas tributários e o fortalecimento do financiamento das estruturas de saúde pública, por exemplo. Implicará também no fortalecimento da concepção de direitos humanos, por meio de políticas e de financiamento que possibilitem, de fato, a elevação das condições para que o ser humano e suas comunidades atinjam seu potencial. E isso deveria significar, entre outras coisas, que passasse a ser inaceitável que qualquer pessoa ou comunidade sofresse com a fome, com a falta de higiene, com doenças facilmente preveníveis, com a falta de educação, com a falta de igualdade de gênero e de segurança física e emocional. Precisaremos ampliar as “Fronteiras da justiça”, como defende a filósofa estadunidense Martha Nussbaum[v], e este terá de ser, necessariamente, um processo político. E o que é um processo político? É aquele em que se disputa não apenas qual visão de mundo pautará o comportamento humano por meio dos princípios que carrega, mas também pelos instrumentos institucionais de que o estado dispõe para fazer valer esta visão de mundo[vi].
Para os espíritas progressistas, portanto, a construção de um mundo de regeneração passará, necessariamente, pela assunção de responsabilidades e pelo agir concreto e prático de construção de um novo mundo. Se as almas que aqui desembarcarem na esteira desta crise forem mais elevadas, ótimo, pois encontrarão condições melhores para desenvolverem seu potencial. E, se forem mais das mesmas almas, ótimo também, pois coletivamente teremos mais meios para auxiliá-las a encontrar um caminho de desenvolvimento. O importante, de um modo ou de outro, é trabalhar para acontecer.
*Thiago Lima da Silva é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba e membro da Associação de Estudos e Pesquisas Espíritas de João Pessoa.
Notas:
[i] DANOWSKI, D,. CASTRO, E. V. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fns. Florianópolis, Instituto Socioambiental, 2014.
[ii] KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[iii] SASSEN, S. Expulsões. Brutalidade e Complexidade na Economia Global. . Paz & Terra. 2016.
[iv] DOWBOR, L. A era do capital improdutivo – a nova arquitetura do poder: dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta. São Paulo: Outras Palavras & Autonomia Literária, 2017.
[v] NUSSBAUM, M. C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. Tradução de Susana de Castro. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
Publicado no Facebook em 18/4/2020.
Gostei do conteúdo 🙂 Queria saber mais, como faço?