Considerações feministas sobre aborto e espiritismo

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Foto: Lara Va/Wikimedi

Alice Pereira – Membra do coletivo EàE-RJ

Divaldo Franco publicou esses dias um artigo intitulado “Crime legal”[1], sobre a recente legalização do aborto na Argentina.

O título, claro, já julga e condena. Mas afinal, é “crime”?

Chegou o momento do debate que muitos espíritas temem, mas já temos maturidade para discussão.

A Argentina é o segundo país na América Latina a legalizar a interrupção voluntária da gravidez, sendo que o primeiro foi o Uruguai. Em diversos países da Europa, bem como na América do Norte e na China, esse processo já é legalizado. Nos EUA desde 1973, após o julgamento do caso Roe contra Wade[2] em que os juízes, pasmem, acataram o argumento de que a proibição era inconstitucional por violar o direito à privacidade. Aliás, a primeira clínica de aborto em Nova Iorque, por exemplo, foi coordenada por pastores e rabinos (fica aí a curiosidade: religião nem sempre condena a prática). Na França e na Inglaterra, o aborto fora legalizado mais ou menos na mesma época, fruto de lutas que vinham sendo travadas há tempos.

Todavia, o aborto não é advento do século XX. É uma prática tão antiga quanto a gravidez. Em “Calibã e a bruxa”[3], Silvia Federici demonstra que a inquisição e a caça às bruxas foram parcialmente motivadas pela Intenção de solapar o controle das mulheres sobre os próprios corpos. Perseguiu curandeiras, parteiras e mulheres mais velhas e pobres que detinham conhecimento sobre contracepção, gestação e parto. Prostituição também foi criminalizada nesse período. E nessa época várias leis foram criadas para regulamentar questões relativas à procriação, além de punir as mulheres que buscassem assistência para lidar com questões sexuais, afetivas e reprodutivas, o que alienou as mulheres de conhecimento que detinham. Semeou também a desconfiança entre elas, alienando umas das outras. Foi por volta do século XV que a Igreja Católica associou desejo sexual ao demônio, e como as bruxas supostamente adoravam o demônio, eram vistas luxuriosas. Elas levariam a danação à humanidade. Perseguição, tortura e morte de mulheres foram justificadas a partir dessas concepções. Tudo isso foi fundamental para o surgimento do patriarcado capitalista moderno.

A argumentação de Michel Foucault[4] é que a sexualidade não seria de fato reprimida, mas sim entra numa espiral de discursos científicos, políticos e jurídicos visando à normalização dos comportamentos sexuais. As leis proibindo o aborto fazem parte do mesmo arcabouço do controle de natalidade sob o guarda-chuva do que chamamos biopolítica, ou seja, as práticas e discursos que visam à gestão da vida e da população.

Às vezes biopolítica se mistura com discurso religioso e patriarcal para validar ou invalidar certos comportamentos sexuais, especialmente o controle sobre o corpo feminino, mesmo que hoje estejamos em uma sociedade supostamente mais secular e dotada de conhecimento científico e tecnológico para entender os processos bioquímicos da reprodução.

Voltando aqui à contemporaneidade, vemos como os discursos e posicionamentos ainda são permeados pelas crenças e valores religiosos, muitas vezes misóginos e moralistas.

No Brasil, a interrupção voluntária da gravidez é permitida em caso de risco à vida da mãe, estupro e anencefalia. Para outros casos, bem… Se você é pobre, vai fazer em algum lugar sujo, com profissionais irresponsáveis e sem nenhuma assistência jurídica ou psicológica. Ou então faz chá, usa um cabide, ou tenta outro método perigoso e desesperado. Se você tiver dinheiro, vai numa clínica um pouco melhor, mas acaba sendo algo vergonhoso. Nunca é uma decisão fácil, tem muita coisa em jogo, muita culpa e medo. Se você é mulher, já ouviu essas histórias. Se você é homem, talvez não tenha ouvido a respeito disso, você é tapado. Você conhece alguém (talvez várias pessoas) que já abortou e que não merece ser presa por isso. Merece acolhimento. E deveria ter tido política pública.

Concordo com aquela máxima: se homens engravidassem, aborto seria feito na farmácia.

A legalidade do aborto vem para solucionar uma questão de saúde pública: para reduzir o número de mortes e problemas de saúde graves gerados por abortos ilegais. Vem também permitir acesso à psicólogos, assistentes sociais, advogados e outros profissionais antes de se decidir. Vejam também que de acordo com a pesquisa conduzida aqui no Brasil, a maioria das mulheres que aborta é casada, já tem filhos e é cristã. Então esse suposto temor sobre legalização do aborto ser um passe livre para promiscuidade é infundado, é moralismo barato e tacanho. Não temos aqui um problema moral (afinal, ela é histórica e culturalmente contingente), porém, sim, um ético e político.

Eticamente, temos um ser já vivo e formado: a gestante. Esta corre perigo de vida bem real quando o aborto é inviabilizado ou criminalizado. Esta já é detentora de direitos e não um amálgama de células (a discussão se é vida ou não eu deixo para os filósofos, mas recomendo a leitura do Agamben sobre o assunto[5]). Se a gestante corre risco de vida, o direito ao aborto não é capricho, é imperativo. Se Kardec indicou para colocarmos a ciência em primeiro lugar, então ouçam as ciências humanas e compreendam a necessidade da descriminalização do aborto para segurança das mulheres. Isso não é contradição com o espiritismo. Contradição é pânico moral. Contradição é não respeitar o livre árbitro das encarnadas. Contradição é proferir julgamentos sem o aprofundamento teórico e prático que o assunto merece.

Será lei! Aborto legal já!

Referências:

[1] Publicado no jornal A Tarde, de Salvador, BA, na coluna “Opinião”, em 07/01/2021.

[2] ROE v. WADE. Direção: Ricki Stern e Anne Sundberg. Netflix. 2018.

[3] FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.

[4] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

[5] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: sovereign power and bare life. Edição Kindle. 1998.

5 COMENTÁRIOS

  1. Aborto não é método contraceptivo, ninguém faz aborto por esporte. Nos casos previstos pela lei brasileira, então, é impossível discordar. E a culpa cai sempre sobre a mulher. Mesmo que estuprada, abandonada, pauperizada, ninguém reclama do homem, que, via de regra, deixa toda a responsabilidade da contracepção sobre a mulher.

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