Eduardo Ferreira* – EàE São Paulo
Sou Psicólogo e em função de um ensaio que teria de elaborar como crédito para meu Mestrado em Saúde Pública fui pesquisar in loco um médium que diz receber o Dr. Fritz. Antes, um brevíssimo histórico:
Nos anos 1950, José Pedro de Freitas, morador da cidade de Congonhas do Campo (MG), apelidado de Zé Arigó, começa a praticar cirurgias com canivetes, lâminas de barbear e facas de cozinha, entre outros objetos. Segundo muitos espíritas que presenciaram suas atividades, entre eles Waldo Vieira, Arigó era o mais poderoso médium que conheceram.
Ele incorporava Adolf Fritz, médico alemão que atuou na I Grande Guerra e morreu, antes de seu fim, em circunstâncias que divergem de acordo com as fontes. Em vinte anos de atividades, Arigó foi proeminente no espiritualismo brasileiro e teria atendido cerca de 4 milhões de pessoas, entre eles celebridades artísticas e políticas.
Posteriormente supostos médiuns disseram também incorporar dr. Fritz. Todos reencarnacionistas de denominações pertencentes ao ultra sincrético espiritualismo brasileiro (espiritismo, teosofia, antroposofia etc.). Entre eles estão:
- Edson Queiróz – médico, sua fama fez com que se candidatasse a deputado estadual. Encantado pela figura de Fernando Collor de Mello, escolheu o partido do ex-presidente corrupto para concorrer;
- Rubens Farias Jr. (dizia-se engenheiro, mas se descobriu que havia trancado matrícula no segundo ano) – processado por charlatanismo, exercício ilegal da medicina, enriquecimento ilícito, lavagem de dinheiro, sonegação de impostos, homicídio doloso, lesões corporais e omissão de socorro; e
- O infame João Teixeira de Faria (garimpeiro, autodenominado de “João de Deus”) – dispensa apresentações por ser, talvez, o mais profícuo estuprador em série da história nacional.
Dr. Fritz, quem diria, acabou no Arujá
Atualmente há outros médiuns que dizem receber o dr. Fritz (com e sem sotaque alemão). Alguns deles, quando indagados afirmam tratar-se do mesmo espírito que estreou com Zé Arigó. É o caso de João Pedro Rangel, da cidade de Arujá, no cinturão verde de São Paulo, que atua no templo exotérico (não espírita stricto sensu) que leva seu nome.
Apesar de não ser médico e de não conseguirmos descobrir se chegou a se graduar em algo, Rangel frequentou uma pós-graduação em medicina na Uningá do Paraná, ministrada pelo dr. Lair Ribeiro, de quem se tornou aplicado discípulo (e com quem o médium aparece em foto de rede social). Ribeiro é talvez o mais célebre teórico da conspiração e promoter de pseudociências (como PNL e ozonioterapia, entre outras bobagens) no Brasil. Talvez por suas crenças exóticas, chegou a ser várias vezes cotado para o Ministério da Saúde no governo Bolsonaro.
As cirurgias efetuadas por Rangel duram um dia inteiro (quartas e domingos) e muito de curioso é possível dizer sobre elas. Esse ensaio, entretanto, foca no que ocorre antes mesmo da incorporação: a palestra, dirigida a quem vai em busca de auxílio, a maioria homens e mulheres de mais de 50 anos. Nela, o articulado médium de 27 anos faz uma explanação ao público sobre a responsabilidade que cada um tem pela manutenção do invólucro corporal que Deus nos deu.
Até aí está tudo bem. O problema principia quando enumera dezenas de dicas que “eles (médicos tradicionais e a big pharma) não querem que você saiba”. Além de Lair Ribeiro, o médium cita de modo embaralhado Emmanuel, Nostradamus, Chico Xavier e Bezerra de Menezes, dentre outros. Diz coisas como “li centenas de artigos científicos, todos os dias eu leio algum, quem me conhece sabe que estou sempre lendo”, e no mesmo discurso emenda: “como o dr. Fritz sempre nos lembra…”.
De modo que não sabemos ao certo o que teria vindo do além, o que é opinião pessoal do médium ou coisa da cabeça do seu mentor encarnado Lair Ribeiro.
Esse é o problema recorrente nas hostes espiritualistas nesses sombrios tempos de retrocesso político e social em que vivemos: expoentes da causa espiritual, investidos de popularidade conferida pelo renome conquistado, proferem discursos reacionários, alheios a qualquer doutrina espiritual, sem distinguir o que provém de mentores espirituais e o que é produto de preconceitos e ignorância pessoais. Suas ou de suas admirações desse plano mesmo.
Desinformação e contrainformação
Vejamos o que diz Rangel em suas palestras sobre coisas já desmistificadas pela ciência:
- “Andar descalço de preferência na terra substitui muitos remédios e fortalece o organismo. É o mesmo princípio da manta de aterramento, que gera inúmeros benefícios contra os prejuízos gerados pelas torres de transmissão de energia, como melhora do sono, redução do estresse, melhora da circulação, redução de inflamação e alívio de dores de cabeça e dos músculos” (há quem creia nisso, mas é uma questão de fé. A premissa dessa “lógica”, uma energia protetora vinda da terra, não possui nenhuma comprovação científica. Por isso, é sabotador da saúde pública dizer que pode substituir remédios);
- “O ozônio é um dos melhores anti-infecciosos, anti-inflamatórios e analgésicos que podemos usar” (como dissemos, ele é um aluno aplicado de Lair Ribeiro. Se não o fosse saberia que uma “terapia” que se propõe a ser panaceia que cura de gripe a câncer só pode ser embuste. O ozônio também não tem comprovação científica, mas comprovadamente já causou lesões na pele, problemas respiratórios, nos olhos e reações alérgicas por seu uso indiscriminado); e
- “Não há medicamento que não possa ser substituído por itens encontrados na natureza ou por suplementos alimentares. Por que não divulgam isso? Porque não precisa de receita e nenhum laboratório farmacêutico possui a exclusividade de suas fórmulas” (na maioria das vezes inócuos, os suplementos podem também fazer muito mal. De acordo com a Anvisa, muitos deles contêm ingredientes inseguros ou substâncias que não podem ser consumidas sem acompanhamento médico. Seus efeitos colaterais: levam à toxicidade (particularmente no fígado), disfunções metabólicas, danos cardiovasculares, alterações do sistema nervoso e, em certos casos, à morte. Já, alegar que medicamento pode ser substituído por elementos naturais não procede. Há muitas críticas pertinentes às big pharmas e sua sede insaciável por lucros, porém, o fato é que a ciência farmacêutica busca na natureza agentes curativos, os refina e potencializa de uma maneira impossível de se encontrar in natura).
Nada é tão ruim que não possa piorar. A seguir as cerejas no bolo indigesto do discurso do médium:
- “Você quer desenvolver câncer e Alzheimer? Quer filho com autismo? Se vacine. Eu não me vacinei e não desenvolvo nenhuma patologia. Basta uma alimentação saudável e produtos naturais para males específicos” (ele se refere a toda e qualquer vacina. É mentira, já inúmeras vezes desmentida por fontes fidedignas, além de um perigosíssimo contrassenso); e
- “Eu não contraí covid porque tomei ivermectina. Está provado cientificamente que covid pode ser curada com ivermectina” (além de não atuar contra nada que não sejam parasitas e vermes, o desvio de seu uso pode levar à morte ou, na melhor das hipóteses, a surtos de piolhos e sarnas, como o ocorrido recentemente em quatro municípios de Santa Catarina. A razão é simples e curiosa: o uso indiscriminado de ivermectina para outras patologias acaba por fortalecer a resistência de parasitas a esse produto).
A falácia do “respeitem minha opinião”
Apesar de ninguém de sua plateia questioná-lo, o médium antecipa sua resposta aos que dele podem discordar com uma espécie de mantra já surrado nesses tempos de despudor negacionista, uma falácia lógica em que classifica qualquer possível contestação como desrespeito ao direito à opinião: “Se não concordar comigo tudo bem, temos direito de discordar, de pensar diferente. Eu respeito quem pensa diferente e creio que devam respeitar a minha opinião também”.
O médium está errado.
Ninguém pode proferir opiniões que, ao mesmo tempo que não se sustentam, colocam em risco a vida. É como induzir ao suicídio. Um crime.
Trata-se do mesmo uso, como recurso retórico, da falácia da liberdade de expressão que os golpistas depredadores e defecadores da Praça dos Três Poderes em janeiro de 2023 usaram: “nós temos direito de duvidar do voto eletrônico e pedir intervenção militar”.
Não.
É crime instigar gente armada ou desarmada contra o estado democrático de direito, assim como é criminoso falar para crédulos sugestionáveis e em idade vulnerável que a vacina faz mal, entre outras sandices.
No momento em que escrevo, há vários médiuns fazendo cirurgias, usando ou não o nome de Fritz. Alguns dos quais também falam barbaridades e, se questionados, esquecerão sua intromissão indevida no terreno da ciência e se escudarão no preceito da liberdade religiosa. Os gestores públicos em saúde devem começar a se voltar para esta questão de modo mais atento, e não esperar até que um desses sujeitos se torne um estuprador, como o nefando João de Deus. O crime começa bem antes. Começa quando, por exemplo, sugere-se usar ivermectina para fins diversos daquele para o qual foi criada, e, assim, torná-la mais perniciosa à saúde que um corte com canivete enferrujado.
Se fosse excluída a palestra pseudocientífica e dito expressamente (e não foi) a cada um dos atendidos que não devem abandonar o seu médico e a medicina tradicional, já seria um avanço. Afinal, a religião, exerceria a função que o psicólogo B. F. Skinner (1904-1990) chamava de reforçador social; nesse caso, na ajuda ao tratamento de saúde. Ainda assim, uma cirurgia espiritual deve ser vista com o máximo de cautela e cuidados, já que um “procedimento médico espiritual”, sem um processo comunicacional expresso e claro, pode fazer um paciente sugestionável se autoiludir diante de uma melhora fortuita em seu quadro e concluir que está curado, abandonando o tratamento convencional, que, embora possa ser mais invasivo ou doloroso, é de fato comprovadamente eficaz.
Medicina é medicina, fé é fé. A complementação da primeira pela segunda só faz bem. No entanto, o estabelecimento e a manutenção dos limites entre ambos é uma conquista civilizatória. Por outro lado, a democracia não é o regime em que cada um faz ou fala o que quer. Trata-se de uma forma de governar em que deve imperar a corresponsabilidade tanto entre poderes quanto entre instituições e cidadãos.
A liberdade religiosa é um feito que a humanidade custou a alcançar e luta para manter. Jamais poderia ser utilizada como esconderijo de curandeiros ou sabotadores da ciência.
*Sobre o autor: Eduardo Ferreira é psicólogo, psicanalista, sociólogo, mestre em Políticas Públicas da Saúde pela FGV-SP e em Sociolinguística pela PUC-SP.
Notas:
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- Todas as declarações que atribuo a Rangel são literais e ele as repete para quem quiser ouvir no mínimo duas vezes por mês. Mais que isso: ele se orgulha de “revelá-las”;
- Todos os comentários sobre os demais médiuns e sobre Lair Ribeiro são de conhecimento público e podem ser conferidos em órgãos de imprensa, na internet, na Assembleia Legislativa de Pernambuco e no Judiciário de São Paulo e Rio de Janeiro.
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Sensacional e esclarecedor esse texto 👏🏻👏🏻
Artigo muito útil. Eu particularmente conheço alguns que agem dessa forma, mas também conheço outros que trabalham com congruência.
Existe um centro espírita em Fortaleza (Ceará), que desenvolve um trabalho de Cirurgias Espirituais.
Lá é falado explicitamente e por escrito, que não se deve abandonar a medicina material, pois esse feito na casa espírita é um tratamento complementar.
E ao meu ver não falam esses tipos de baboseiras que foram ditas no artigo.