Edições antirracitas das obras de Kardec – o que pensar?

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Por Dora Incontri

Nesta semana, dia 18 de abril, foi publicada a segunda obra de Kardec, O Livro dos Espíritos numa edição antirracista, depois de no ano passado, ter sido lançado O Evangelho segundo o espiritismo, com esse mesmo subtítulo. Apresso-me a escrever esse artigo, para me contrapor às críticas raivosas (e até caluniosas) que estão sendo feitas a estas publicações, mesmo por espíritas que se afirmam progressistas.

Como todos sabem, sou da linhagem kardecista-herculanista e, portanto, jamais apoiaria qualquer coisa que viesse a ferir os princípios fundamentais do espiritismo – entretanto, são trechos mesmos das obras de Kardec que ferem esses princípios. E, como ele mesmo recomendou, é preciso usar o bisturi da crítica para limpar o espiritismo de ideias que pertenciam ao contexto histórico, europeu (leia-se eurocentrista), colonialista e racista que fazia parte da estrutura da sociedade em que ele viveu, atuou e foi influenciado por essas correntes.

Qualquer leitor contemporâneo, minimamente progressista e conectado com os problemas de racismo estrutural que observamos na sociedade brasileira e mundial, sente sucessivos incômodos na leitura das chamadas obras básicas de Kardec. O tempo inteiro há uma hierarquização de “raças”–termo que caiu em desuso, porque hoje consideramos que só existe uma raça, a humana. “Raças selvagens, primitivas”, entre elas estão negros, nativos de outras regiões do planeta, ou seja, aqueles que não pertencem ao “topo da civilização”, branca, europeia. Assim pensavam todos os europeus do século XIX. Assim pensava Kardec, assim pensavam os médiuns que com ele trabalhavam, assim pensavam muitos espíritos, que embora com algum conhecimento espiritual, ainda estavam impregnados dos preconceitos terrenos (coisa que também o próprio Kardec recomenda analisar).

Como a nossa história está manchada pela escravização e genocídio dos povos de origem africana e dos povos originários das Américas, e como o extermínio e a discriminação ainda estão dolorosamente vivos em nosso país do século XXI, essas teses de hierarquia racial, que eram consideradas científicas no século XIX, nos constrangem tremendamente e, claro, desrespeitam e ferem os negros, indígenas e todas as pessoas sensíveis a essa temática.

Em 2008, o Ministério Público da Bahia já chamou atenção para trechos das obras de Kardec que sugeriam discriminação e racismo e 9 editoras espíritas, entre elas a FEB, assinaram um compromisso de publicarem notas de contextualização dessas passagens. Alguém já viu essas notas? Mesmo existindo, estão escondidas, envergonhadas. Aliás, ninguém lê nota de rodapé.

Mas o tema exige debate, reparação histórica, atenção de todos e todas, para que o racismo não continue se perpetuando na sociedade brasileira, incluindo-se os centros espíritas, majoritariamente dirigidos por uma elite branca (e recentemente em grande parte de extrema-direita, com quase nenhuma sensibilidade social).

Então, sim, é preciso que se faça uma edição estampada na capa, como antirracista, é preciso que os comentários às passagens problemáticas saiam de um lugar imperceptível para um foco mais nítido. As duas edições feitas pelo Coletivo Espíritas à Esquerda têm exatamente essa intenção, e fazem isso sem nenhuma adulteração do texto original.

Cito o impecável prefácio, que está na presente publicação do Livro dos Espíritos:

 “…o objetivo primacial do projeto da Coleção Antirracista de Kardec é a reparação do sofrimento que negras e negros vivem diariamente nas instituições espíritas, quando, em seus grupos de estudos, palestras e eventos, deparam-se com as passagens racistas da literatura espírita que os diminui, humilha e violenta. E, como consequência dessa forma historicamente racista de entender as diferenças étnicas e culturais, negras e negros costumam, na maioria das instituições espíritas, participar apenas como subalternos, coadjuvantes, apoio às atividades operacionais e principalmente como beneficiários de obras assistencialistas, sendo raro vê-los ocupando cargos de direção nessas instituições. E esse projeto, portanto, é também, além de uma proposta de reparação, uma forma de estimular e instrumentalizar todas as pessoas para o debate antirracista dentro do movimento espírita, considerando as consequências do racismo institucional nele presentes.”

E mais adiante, sem jogar o bebê junto com a água suja, o prefácio ainda afirma que os erros históricos que devemos corrigir e criticar não invalidam o espiritismo como um todo, mesmo porque o que deve prevalecer é a proposição ética da fraternidade humana.

“Se já se admite no movimento espírita os erros de cosmologia e biologia de suas obras, conforme prescrição do próprio Kardec sobre a evolução do conhecimento espírita, é nossa obrigação reconhecer os fragmentos racistas em seus textos. Tais erros históricos não desmerecem toda a doutrina espírita, pois os princípios do espiritismo expostos em seus textos, quando bem compreendidos e praticados, destruirão “os estúpidos preconceitos de cor” (o que está entre aspas é citação de Kardec).”

Diante disso, não consigo entender por que a oposição agressiva de alguns espíritas, comparando indevidamente essa edição antirracista à adulteração feita no Evangelho segundo o Espiritismo por alguns membros da Federação Espírita do Estado de São Paulo, na década de 70, do século passado, e que foi, com toda justiça, combatida por Herculano Pires. Aquela era de fato uma mudança nos textos de Kardec – aliás, por sugestão de Chico Xavier, que foi chamado por Herculano a vir a público pedir desculpas e se desdizer. E era uma mudança absolutamente tosca. Por exemplo, ao invés de se usar a expressão “espíritos maus”, mudava-se para “espíritos menos bons”. Não se tratava de um debate social e político urgente como o racismo. (Toda essa história está no livro Na Hora do Testemunho, de Herculano Pires.)

O mais grave de todo esse episódio atual é que a gritaria em torno da edição antirracista foi tão grande, que muita gente veio me dizer que as obras de Kardec estão sendo modificadas. Ficou essa mentira no ar. Por isso também resolvi escrever esse texto.

E parabenizo o Coletivo Espíritas à Esquerda, com quem a Associação Brasileira de Pedagogia Espírita tem feito várias parcerias, pela coragem, pelo bom senso e por atender uma das muitas urgências que temos, para uma releitura crítica e serena das obras de Kardec.

ARTIGO ORIGINALMENTE PUBLICADO NO SITE DA
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PEDAGOGIA ESPÍRITA.

6 COMENTÁRIOS

  1. Olá pessoal!

    Sou admirador da Dora Incontri há muitos anos. Na atualidade é uma das maiores intelectuais, se não a maior, do movimento espírita (minha singela opinião). Escreve divinamente bem! Uma lucidez extraordinária! Sou realmente admirador!

    Admiro também a coragem, o entusiasmo e a seriedade com que vocês abraçaram uma causa de Esquerda e tornaram-na importante ponto de debate para o combalido movimento espírita.

    Assistindo uma fala da Dora Incontri, em um desses debates que estão no site, realmente não tem como compreender um espiritismo que não seja progressista. “Espiritismo capitalista”? Não tem o menor cabimento.

    Por isso, com respeito aos esforços de vocês, vou dissentir sobre essas produções antirracistas. Acredito que essas publicações poderiam apresentar melhores resultados, se vocês tivessem lançado os apontamentos antirracistas junto com estudos, reflexões, artigos de cada um dos inúmeros intelectuais de esquerda que fazem parte deste sério e grandioso movimento que vocês criaram, sem, porém, mexer nas obras de Kardec.

    Sei que é muito fácil criticar estando de fora, mas não o faço “condenando”, porém entendo que há uma inversão na lógica da proposta: primeiro deveria vir a doutrina espírita, depois o posicionamento político, se é que isso seja possível. Sei também que vocês enfrentaram um povo truculento, agressivo, com atitudes nada espíritas, pelo contrário, totalmente materialistas, místicos, sofistas defendendo uma causa que já foi traduzida em verso e prosa, do pensamento de Freud, sobre o comportamento de “manada”.

    Enfim, se quiserem “brigar” comigo, podem brigar. Depois de tantos anos pelejando no movimento espírita, não tenho mais interesse em “brigar” com ninguém, ainda que admire e seja fã de uma boa troca de ideias. Aliás, minhas ideias não foram escritas em “pedra”, estou sempre aberto ao aprendizado, ao entendimento com o contraditório, só não abro mão do meu progressismo, algo que tem saído bem caro nessa vida! 🙂

    Parabéns pelo reforço da Dora Incontri junto ao pensamento de vocês! Sigo, um pouco afastado, mas não muito, acompanhando e vibrando para que essa fase truculenta seja vencida com a luz da razão.

    Um abraço,

    vlad

  2. Eu jamais “ brigaria” com uma pessoa que escreve tão bem, expressando pontos de discordância por meio de propostas concretas e de modo respeitoso. Faço parte do Coletivo EàE e agradeço a sua contribuição ao debate antirracista.

  3. O espiritismo nasceu em uma sociedade branca e racista como até hoje século XXI continua estruturalmente racista, às vezes até mesmo homofobica. Vejo poucos negros frequentando os centros espíritas, ou mesmo se declarando espíritas. Temos uma população em sua maioria negra, como pode haver esta discrepância? Não lembro já ter visto um negro dirigindo trabalhos em uma casa espírita. Nós considerados espíritas à esquerda, temos não só o dever mas a responsabilidade de incrementar esta mudança. OO Evangelho segundo o espiritismo e o Livro dos Espiritos antirracista é apenas o começo.

  4. Obrigado, Elizabeth e Daniel, pela atenção!

    Que vocês continuem firmes e resolutos diante de seus objetivos, combatendo o bom combate!

    Um abração!

  5. No Centro Chico Xavier, de Bagé/RS, que pertenço e faço parte, participam todos tipo de pessoa, negro, homoafetivos, e outros ditos gêneros, sem qualquer tipo de discriminação, até mesmo de outros credos, e todos são tratados e se consideram irmãos. O Centro, inclusive, é dirigido por um irmão negro, há muitos anos, pessoa de altíssimo grau de irmandade e moral. O espiritismo deve ser tratado como uma religião ou filosofia de vida e conduta sem qualquer tipo de discriminação e, ao meu ver, não existe e nem pode existir espíritas de esquerda, de direita ou qualquer outra forma ou conduta política, pois no plano espiritual, onde todos iremos, não existem essas formas criadas pelos humanos encarnados, da terra.

  6. Ao ler as obras da sistematização e outras tantas de apoio à doutrina Espírita, é certo que esbarramos em conceitos, termos e tudo mais que remetem a um contexto racista e ao patriarcado. Eu penso como o Vladimir Alexei. Acredito que o esclarecimento deveria estar presente, nem que fosse em notas de rodapé. O suporte para compreensão da mudança da forma e do entendimento, não do conteúdo. Ajudaria, sim. Acredito que o despropósito é do Movimento Espírita. Entendo que tais mudanças deve colaborar definitivamente como um instrumento de inclusão, cujos textos devem passam a ser mais mais assertivos com o pensamento de Jesus, nosso melhor modelo. Mas, carecemos, ainda, de comentários explicativos.

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