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Dr. Fritz: do canivete à ivermectina

Eduardo Ferreira* – EàE São Paulo

Sou Psicólogo e em função de um ensaio que teria de elaborar como crédito para meu Mestrado em Saúde Pública fui pesquisar in loco um médium que diz receber o Dr. Fritz. Antes, um brevíssimo histórico: Nos anos 1950, José Pedro de Freitas, morador da cidade de Congonhas do Campo (MG), apelidado de Zé Arigó, começa a praticar cirurgias com canivetes, lâminas de barbear e facas de cozinha, entre outros objetos. Segundo muitos espíritas que presenciaram suas atividades, entre eles Waldo Vieira, Arigó era o mais poderoso médium que conheceram. Ele incorporava Adolf Fritz, médico alemão que atuou na I Grande Guerra e morreu, antes de seu fim, em circunstâncias que divergem de acordo com as fontes. Em vinte anos de atividades, Arigó foi proeminente no espiritualismo brasileiro e teria atendido cerca de 4 milhões de pessoas, entre eles celebridades artísticas e políticas. Posteriormente supostos médiuns disseram também incorporar dr. Fritz. Todos reencarnacionistas de denominações pertencentes ao ultra sincrético espiritualismo brasileiro (espiritismo, teosofia, antroposofia etc.). Entre eles estão:
  • Edson Queiróz – médico, sua fama fez com que se candidatasse a deputado estadual. Encantado pela figura de Fernando Collor de Mello, escolheu o partido do ex-presidente corrupto para concorrer;
  • Rubens Farias Jr. (dizia-se engenheiro, mas se descobriu que havia trancado matrícula no segundo ano) – processado por charlatanismo, exercício ilegal da medicina, enriquecimento ilícito, lavagem de dinheiro, sonegação de impostos, homicídio doloso, lesões corporais e omissão de socorro; e
  • O infame João Teixeira de Faria (garimpeiro, autodenominado de “João de Deus”) – dispensa apresentações por ser, talvez, o mais profícuo estuprador em série da história nacional.

Dr. Fritz, quem diria, acabou no Arujá

Atualmente há outros médiuns que dizem receber o dr. Fritz (com e sem sotaque alemão). Alguns deles, quando indagados afirmam tratar-se do mesmo espírito que estreou com Zé Arigó. É o caso de João Pedro Rangel, da cidade de Arujá, no cinturão verde de São Paulo, que atua no templo exotérico (não espírita stricto sensu) que leva seu nome. Apesar de não ser médico e de não conseguirmos descobrir se chegou a se graduar em algo, Rangel frequentou uma pós-graduação em medicina na Uningá do Paraná, ministrada pelo dr. Lair Ribeiro, de quem se tornou aplicado discípulo (e com quem o médium aparece em foto de rede social). Ribeiro é talvez o mais célebre teórico da conspiração e promoter de pseudociências (como PNL e ozonioterapia, entre outras bobagens) no Brasil. Talvez por suas crenças exóticas, chegou a ser várias vezes cotado para o Ministério da Saúde no governo Bolsonaro. As cirurgias efetuadas por Rangel duram um dia inteiro (quartas e domingos) e muito de curioso é possível dizer sobre elas. Esse ensaio, entretanto, foca no que ocorre antes mesmo da incorporação: a palestra, dirigida a quem vai em busca de auxílio, a maioria homens e mulheres de mais de 50 anos. Nela, o articulado médium de 27 anos faz uma explanação ao público sobre a responsabilidade que cada um tem pela manutenção do invólucro corporal que Deus nos deu. Até aí está tudo bem. O problema principia quando enumera dezenas de dicas que “eles (médicos tradicionais e a big pharma) não querem que você saiba”. Além de Lair Ribeiro, o médium cita de modo embaralhado Emmanuel, Nostradamus, Chico Xavier e Bezerra de Menezes, dentre outros. Diz coisas como “li centenas de artigos científicos, todos os dias eu leio algum, quem me conhece sabe que estou sempre lendo”, e no mesmo discurso emenda: “como o dr. Fritz sempre nos lembra…”. De modo que não sabemos ao certo o que teria vindo do além, o que é opinião pessoal do médium ou coisa da cabeça do seu mentor encarnado Lair Ribeiro. Esse é o problema recorrente nas hostes espiritualistas nesses sombrios tempos de retrocesso político e social em que vivemos: expoentes da causa espiritual, investidos de popularidade conferida pelo renome conquistado, proferem discursos reacionários, alheios a qualquer doutrina espiritual, sem distinguir o que provém de mentores espirituais e o que é produto de preconceitos e ignorância pessoais. Suas ou de suas admirações desse plano mesmo.

Desinformação e contrainformação

Vejamos o que diz Rangel em suas palestras sobre coisas já desmistificadas pela ciência:
  • Andar descalço de preferência na terra substitui muitos remédios e fortalece o organismo. É o mesmo princípio da manta de aterramento, que gera inúmeros benefícios contra os prejuízos gerados pelas torres de transmissão de energia, como melhora do sono, redução do estresse, melhora da circulação, redução de inflamação e alívio de dores de cabeça e dos músculos” (há quem creia nisso, mas é uma questão de fé. A premissa dessa “lógica”, uma energia protetora vinda da terra, não possui nenhuma comprovação científica. Por isso, é sabotador da saúde pública dizer que pode substituir remédios);
  • O ozônio é um dos melhores anti-infecciosos, anti-inflamatórios e analgésicos que podemos usar” (como dissemos, ele é um aluno aplicado de Lair Ribeiro. Se não o fosse saberia que uma “terapia” que se propõe a ser panaceia que cura de gripe a câncer só pode ser embuste. O ozônio também não tem comprovação científica, mas comprovadamente já causou lesões na pele, problemas respiratórios, nos olhos e reações alérgicas por seu uso indiscriminado); e
  • Não há medicamento que não possa ser substituído por itens encontrados na natureza ou por suplementos alimentares. Por que não divulgam isso? Porque não precisa de receita e nenhum laboratório farmacêutico possui a exclusividade de suas fórmulas” (na maioria das vezes inócuos, os suplementos podem também fazer muito mal. De acordo com a Anvisa, muitos deles contêm ingredientes inseguros ou substâncias que não podem ser consumidas sem acompanhamento médico. Seus efeitos colaterais: levam à toxicidade (particularmente no fígado), disfunções metabólicas, danos cardiovasculares, alterações do sistema nervoso e, em certos casos, à morte. Já, alegar que medicamento pode ser substituído por elementos naturais não procede. Há muitas críticas pertinentes às big pharmas e sua sede insaciável por lucros, porém, o fato é que a ciência farmacêutica busca na natureza agentes curativos, os refina e potencializa de uma maneira impossível de se encontrar in natura).
Nada é tão ruim que não possa piorar. A seguir as cerejas no bolo indigesto do discurso do médium:
  • Você quer desenvolver câncer e Alzheimer? Quer filho com autismo? Se vacine. Eu não me vacinei e não desenvolvo nenhuma patologia. Basta uma alimentação saudável e produtos naturais para males específicos” (ele se refere a toda e qualquer vacina. É mentira, já inúmeras vezes desmentida por fontes fidedignas, além de um perigosíssimo contrassenso); e
  • Eu não contraí covid porque tomei ivermectina. Está provado cientificamente que covid pode ser curada com ivermectina” (além de não atuar contra nada que não sejam parasitas e vermes, o desvio de seu uso pode levar à morte ou, na melhor das hipóteses, a surtos de piolhos e sarnas, como o ocorrido recentemente em quatro municípios de Santa Catarina. A razão é simples e curiosa: o uso indiscriminado de ivermectina para outras patologias acaba por fortalecer a resistência de parasitas a esse produto).

A falácia do “respeitem minha opinião

Apesar de ninguém de sua plateia questioná-lo, o médium antecipa sua resposta aos que dele podem discordar com uma espécie de mantra já surrado nesses tempos de despudor negacionista, uma falácia lógica em que classifica qualquer possível contestação como desrespeito ao direito à opinião: “Se não concordar comigo tudo bem, temos direito de discordar, de pensar diferente. Eu respeito quem pensa diferente e creio que devam respeitar a minha opinião também”. O médium está errado. Ninguém pode proferir opiniões que, ao mesmo tempo que não se sustentam, colocam em risco a vida. É como induzir ao suicídio. Um crime. Trata-se do mesmo uso, como recurso retórico, da falácia da liberdade de expressão que os golpistas depredadores e defecadores da Praça dos Três Poderes em janeiro de 2023 usaram: “nós temos direito de duvidar do voto eletrônico e pedir intervenção militar”. Não. É crime instigar gente armada ou desarmada contra o estado democrático de direito, assim como é criminoso falar para crédulos sugestionáveis e em idade vulnerável que a vacina faz mal, entre outras sandices. No momento em que escrevo, há vários médiuns fazendo cirurgias, usando ou não o nome de Fritz. Alguns dos quais também falam barbaridades e, se questionados, esquecerão sua intromissão indevida no terreno da ciência e se escudarão no preceito da liberdade religiosa. Os gestores públicos em saúde devem começar a se voltar para esta questão de modo mais atento, e não esperar até que um desses sujeitos se torne um estuprador, como o nefando João de Deus. O crime começa bem antes. Começa quando, por exemplo, sugere-se usar ivermectina para fins diversos daquele para o qual foi criada, e, assim, torná-la mais perniciosa à saúde que um corte com canivete enferrujado. Se fosse excluída a palestra pseudocientífica e dito expressamente (e não foi) a cada um dos atendidos que não devem abandonar o seu médico e a medicina tradicional, já seria um avanço. Afinal, a religião, exerceria a função que o psicólogo B. F. Skinner (1904-1990) chamava de reforçador social; nesse caso, na ajuda ao tratamento de saúde. Ainda assim, uma cirurgia espiritual deve ser vista com o máximo de cautela e cuidados, já que um “procedimento médico espiritual”, sem um processo comunicacional expresso e claro, pode fazer um paciente sugestionável se autoiludir diante de uma melhora fortuita em seu quadro e concluir que está curado, abandonando o tratamento convencional, que, embora possa ser mais invasivo ou doloroso, é de fato comprovadamente eficaz. Medicina é medicina, fé é fé. A complementação da primeira pela segunda só faz bem. No entanto, o estabelecimento e a manutenção dos limites entre ambos é uma conquista civilizatória. Por outro lado, a democracia não é o regime em que cada um faz ou fala o que quer. Trata-se de uma forma de governar em que deve imperar a corresponsabilidade tanto entre poderes quanto entre instituições e cidadãos. A liberdade religiosa é um feito que a humanidade custou a alcançar e luta para manter. Jamais poderia ser utilizada como esconderijo de curandeiros ou sabotadores da ciência. *Sobre o autor: Eduardo Ferreira é psicólogo, psicanalista, sociólogo, mestre em Políticas Públicas da Saúde pela FGV-SP e em Sociolinguística pela PUC-SP.

Notas:

      1. Todas as declarações que atribuo a Rangel são literais e ele as repete para quem quiser ouvir no mínimo duas vezes por mês. Mais que isso: ele se orgulha de “revelá-las”;
      2. Todos os comentários sobre os demais médiuns e sobre Lair Ribeiro são de conhecimento público e podem ser conferidos em órgãos de imprensa, na internet, na Assembleia Legislativa de Pernambuco e no Judiciário de São Paulo e Rio de Janeiro.

Marinas, Virgínias e o DNA dos brasileiros

Elizabeth Hernandes* – EàE-DF

Nesse mês de maio do ano da graça de 2025, duas mulheres compareceram para falar em comissões do Senado Federal.

Uma delas é uma das vozes políticas mais influentes do Brasil, ambientalista conhecida, reconhecida e premiada no mundo, ministra de estado. Mas só tem 931 mil míseros seguidores no Instagram.

A outra exerce o contemporâneo ofício de influencer. Vende cremes que afirma serem “emagrecedores” e outros produtos do gênero, além de vender cenas de sua própria e, aparentemente, glamurosa vida. Tem não sei quantos milhões de seguidores.

Antes de prosseguir, um alerta de quem tem doutorado em saúde (eu mesma) e experiência tanto em epidemiologia quanto em atividade física. Só existem duas maneiras de se queimar gordura: fazendo atividade aeróbia ou tacando fogo no tecido adiposo, no sentido literal do termo. Cremes não funcionam e a ciência só recomenda a atividade aeróbia.

Muito bem. A ambientalista foi desrespeitada pelos senadores presentes na cerimônia oficial. A influenciadora digital foi incensada, super bem tratada e alguns senadores pediram para tirar selfies com a moça.

O que essas mulheres têm em comum? Ambas são muito inteligentes e fazem muito bem o trabalho ao qual se propuseram. Ambas merecem respeito pelo trabalho que escolheram para sua vida e pela sua condição de cidadãs. Repita comigo, em caso de dúvida: respeitar não é o mesmo que concordar.

O que difere –e muito– essas mulheres, além do óbvio: uma se dedica a uma causa de interesse da humanidade; a outra cuida dos próprios interesses e dos seus sócios ou acionistas. E ambas impactam, de maneiras muito diferentes, a nossa sociedade.

E que sociedade é essa? Vamos olhar o aspecto genético.

Recentemente foi divulgado um estudo que dá respaldo científico ao que sempre esteve, literalmente, “na nossa cara”: o Brasil é o país com a maior diversidade genética do mundo1. Realizada numa universidade pública e liderada por mulheres, a pesquisa traz inúmeros impactos positivos para a área da saúde, em especial a epidemiologia, além de fazer revelações importantes sobre como nos estruturamos como nação.

De acordo com o estudo, publicado na prestigiada revista Science, a maioria das linhagens do cromossomo Y, que é herdado dos homens, é proveniente de europeus (71%) e a maioria das linhagens mitocondriais, que são herdadas das mulheres, era africana (42%) ou indígena (35%). Esse achado revela um cruzamento “não natural”, reflexo da violência sexual que mulheres indígenas e africanas escravizadas sofreram dos “civilizados” europeus. O DNA, molécula pesquisada na área das ciências biológicas, confirma o que as ciências humanas, como história e antropologia, já haviam contado: a sociedade brasileira foi fundada em bases violentas e essa violência se deu, especialmente, contra mulheres, indígenas e pretos.

E no ambiente do Senado Federal, que em pleno século XXI deveria ser um exemplo de segurança para as mulheres, o mundo inteiro assiste à cena de uma mulher brasileira preta, originária da Amazônia, sofrendo violência verbal de homens brancos (na medida em que se pode ser branco no Brasil, conforme o estudo citado fundamenta).

Além de ser mulher, preta, da região amazônica e de ter sido alfabetizada aos dezesseis anos de idade, Marina Silva é ministra de estado, uma liderança política respeitada em nível nacional e uma das ambientalistas mais influentes do mundo. Os homens que a assediaram, infelizmente, são senadores da República, mas apenas isso. Não há muito o que se possa dizer dos respectivos currículos.

Por que esses homenzinhos têm a audácia de atacar a grandiosa Marina? Por que, sendo eles senadores da República, quebram o decoro exigido pelos ritos do parlamento, sem nenhum temor de serem punidos? Porque se sentem autorizados. Porque é assim que tem sido desde a nossa fundação como sociedade e é justamente por isso que todos esses pequeninos homens se declaram conservadores. Eles querem conservar seus privilégios para violentar e silenciar. Um deles, inclusive, já havia afirmado, também em público e sob transmissão da mídia, ter o desejo de estrangular Marina Silva.

É muito compreensível –diante do histórico do país marcado pela cultura do estupro, pela violência contra as mulheres e pela violência política de gênero– que um homem pequeno sinta-se agredido por uma mulher que discorde dele e até confesse seu desejo de eliminá-la. Mas aqui estão em jogo interesses econômicos e não apenas o ego de políticos medíocres porque, na visão de pessoas ignorantes ou apenas mal-intencionadas, a legislação ambiental atrapalha os negócios. E, no momento em que estas palavras são escritas, uma mulher está sofrendo violência no Brasil2 e essa violência é cometida por um homem que também se sente incomodado com o fato de mulheres serem seres de direitos.

Esse triste retrato, de uma sociedade que parece valorizar mais uma influencer que uma ambientalista, cujas leis estão sendo elaboradas por homens que tentam silenciar, de forma violenta, uma mulher que age contra seus interesses, é bem deprimente. Mas aqui podemos, mais uma vez, nos valer das pesquisas científicas: em genética, não há determinação e sim propensão. Tanto a área de estudo das ciências da natureza quanto a das ciências humanas mostra que nossa sociedade foi fundada sob parâmetros de colonização predatória e violenta. Mas a pesquisa, em ambas as áreas, também mostra que não existe determinismo que impeça o progresso de indivíduos ou coletividades e que intervenções positivas podem salvar pessoas e grupos.

Nós podemos traçar novos caminhos. Existem muitas Marinas provando isso, todos os dias. Nós podemos ser melhores que nossos senadores.

Sobre a autora: Elizabeth Hernandes é espírita à esquerda pelo Coletivo Espíritas à Esquerda, especialista em políticas públicas pela Enap e doutora em epidemiologia pela USP.

1 Nunes, Kelly et al. Admixture’s impact on Brazilian population evolution and health. Science Vol. 388, No. 6748. Disponível em https://www.science.org/doi/10.1126/science.adl3564

2 Uma mulher é estuprada, n o Brasil, a cada oito minutos. Fonte: RelatórioAnual Socioeconômico da Mulher – Raseam , elaborado pelo Observatório Brasil da Igualdade de Gênero. Disponível em https://www.gov.br/mulheres/pt-br/observatorio-brasil-da-igualdade-de-genero/raseam/ministeriodasmulheres-obig-raseam-2024.pdf

A doença é social

Regina Abrahão – EàE-RS

Segundo Darwin, não é o mais forte que sobrevive, mas o que melhor se adapta. Assistindo um episódio de Star Trek New Generation, ouvi o klingon Worf complementar a frase: “No espaço, sobrevive quem se adapta, mas evolui quem raciocina”. Lembrei na hora: releituras das obras de Kardec, o período histórico em que viveu, a inquestionável influência da igreja católica. O avanço que significou o iluminismo para uma sociedade que ainda queimava livros e perseguia bruxas, que convivia com a escravização de negras e negros em suas colônias. No dia seguinte, sábado pela manhã, assisti ao evangelho progressista, o programa “O Reino”, abordando temas tabus até hoje: sofrimento psíquico, transtornos mentais e suicídio. Obviamente a abordagem de Kardec nos chega impregnada dos conceitos morais de sua época e do medo provocado por quaisquer situações até então inexplicáveis, e do tratamento desumano dado a estes doentes. Kardec classifica a loucura como “comoção produzida pelas vicissitudes que o homem não tem coragem de suportar”. Recomenda “calma e resignação, serenidade, e que receba com alegria os revezes e as decepções”. Transtornos mentais e sofrimento psíquico afetam o corpo, o pensamento, as emoções e o comportamento e causam diversos sintomas, geralmente exigindo medicação, terapia, e acompanhamento especializado. E podem também ser agravados pelas condições sociais. Mas não é fácil resolver o problema da miséria, da fome, da violência, do desemprego, da falta de moradia. Não numa sociedade que desperdiça um terço de todos os alimentos que produz, enquanto cerca de 733 milhões de pessoas sofrem grave insegurança alimentar. Sim, o capitalismo adoece. O corpo, com os agrotóxicos venenosos, com a indústria farmacêutica que não busca cura, busca tratamentos continuados que podem se estender pela vida toda. E adoece a mente, com sua engrenagem perversa de exploração, precarização, jornadas exaustivas, salários aviltantes, assédio moral, mantendo sempre um exército de reserva de mão de obra para impedir a busca de melhores condições e remuneração. A organização social é planejada para concentrar bens, terras, riquezas, enquanto acena com o mito do esforço pessoal e da meritocracia. Aceitar as dores da vida e se resignar, no capitalismo, equivale a morrer de fome sem perturbar os verdadeiros algozes. Sofrimento mental não é falta de esforço, de trabalho, nem de fé! É doença, e como tal deve ser tratada. Responsabilizar o sofredor por seu sofrimento é desumano, cruel, mas serve muito bem para garantir a continuidade da dominação e livrar de encargos as instituições sociais e os exploradores. Segundo a OMS, a cada 40 segundos uma pessoa se suicida no mundo. Não por acaso, 75% dos suicídios ocorrem em países emergentes e pobres. Uma ressalva importante é que ricos também se suicidam. Em menor número, por motivos um pouco diferentes. A cultura capitalista criou o conceito de obsolescência. Todos os produtos têm vida útil, do celular ao fogão. Não à toa tantos recursos são gastos na indústria do rejuvenescimento. Uma modelo inicia sua carreira aos doze, treze anos. Com dezoito, está no auge da carreira. Aos vinte e cinco, exceto uber models, não encontra trabalho. Executivos de grandes empresas preferem o suicídio a baixar seu padrão de vida, idosos solitários, pessoas que julgam desonra a falência. O sofrimento capaz de levar uma pessoa a tirar a própria vida deve ser insuportável. Também gays, lésbicas, trans, por vezes não suportam as dores. Infelizmente. Influências espirituais? É possível. Mas a solução não virá apenas com atendimentos impessoais, mecânicos, um passe e o “volte na próxima semana” comuns nas casas espíritas. Nem com “cura gay”, envelopes em fogueiras sagradas, ameaças de inferno ou a ira de algum deus vingativo que estas desencantadas vítimas voltarão a sentir prazer em viver e entender que é necessário mudar este sistema monstruoso e lutar por dignidade e direitos, que nem imaginam ter. Um abraço, uma palavra de atenção podem, quem sabe, ser o início da mudança. A saída é coletiva, A luta é gigantesca, mas é a saída. Por fim, tenho que me curvar à sabedoria klingon de Mr. Worf. É necessário às pessoas espíritas raciocinar para evoluir. Uma nova compreensão das obras de Kardec é o caminho! Gratidão ao coletivo Espíritas à Esquerda pela condução irretocável de “O Reino”!

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Espíritas à Esquerda publica nova crítica teórica ao conceito tradicional de caridade no espiritismo

Texto foi apresentado em maio, em Porto Alegre.
Dando continuidade ao projeto de construção de um novo movimento espírita progressista, o coletivo Espíritas à Esquerda (EàE) lançou mais um texto teórico de fôlego, que integra o esforço de fundamentação filosófica para a atuação transformadora dos Núcleos Espíritas Populares (NEPs). A nova reflexão, intitulada “Miséria do espiritismo: uma crítica ao espiritismo da miséria“, foi apresentada durante o VI Congresso Nacional da CEPABrasil, realizado em Porto Alegre (RS), de 1º a 4 de maio de 2025. O artigo propõe uma revisão crítica do conceito de caridade no espiritismo, confrontando interpretações que romantizam a miséria como cenário necessário para a prática caritativa. Segundo o coletivo, o “espiritismo da miséria” perpetua a desigualdade ao reduzir a caridade a uma prática individual, descolada de qualquer projeto de transformação social. “Essa visão distorcida é sustentada por uma leitura conservadora da máxima ‘Fora da caridade não há salvação’ e serve, na prática, como instrumento de manutenção do status quo”, afirma o texto.
Mariela, Rosângela, Sérgio Maurício e Mônica: Espíritas à Esquerda no VI Congresso da CEPABrasil
A proposta do EàE é disputar o sentido da caridade no campo político e linguístico, resgatando seu potencial emancipador. Para isso, argumenta que qualquer prática assistencial deve estar vinculada a um processo de conscientização sociopolítica tanto dos agentes quanto dos beneficiários da caridade — condição fundamental para que haja transformação social de fato. Este é o terceiro texto teórico publicado pelo Coletivo, dando sequência a: “Bem, caridade e política: relações necessárias”, no capítulo 14 do livro Espiritismo, sociedade e política: projetos de transformação (Editora Comenius); “Núcleos Espíritas Populares: uma proposta de renovação”, apresentado no V Congresso da CEPABrasil em 2022 e disponível gratuitamente no site. (clique aqui para baixar) A apresentação completa do novo artigo pode ser vista no canal do YouTube do coletivo: O texto integral está disponível para download gratuito:

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Entre o vazio e a multidão: o simulacro do cuidado nas gerações contemporâneas

Arley Haley Faria – EàE Minas Gerais

Há algo desconcertante nas formas contemporâneas de demonstrar cuidado. Em um mundo marcado por ausências afetivas, vínculos frágeis e relações mediadas por telas, surgem alternativas que tentam suprir o afeto real com simulacros: bonecos que substituem bebês, títulos que substituem relações. A carência não desaparece, ela apenas muda de roupa. Multiplicam-se os gestos que imitam a intimidade, mas não a vivem. Cada vez mais, o afeto se transforma em performance, algo que se representa, se posta, se institucionaliza, mas raramente se sustenta na concretude do cotidiano. Não se trata apenas de encenações isoladas, mas de uma lógica social mais ampla, que lembra o que Jean Baudrillard chamava de simulacro: uma representação que substitui a realidade e passa a valer mais do que ela. Nesse cenário, dois fenômenos, à primeira vista díspares, chamam atenção: a adoção de bebês reborn por adultos e o legado de Divaldo Franco, líder espírita que fez sua passagem recentemente, que se apresentava como pai de mais de 650 filhos. Em ambos os casos, o que está em jogo não é apenas o gesto de cuidado, mas sua transformação em símbolo e os limites éticos e políticos dessa transformação. Os bebês reborn são, em sua essência, bonecos, mas não qualquer boneco. São minuciosamente esculpidos para parecerem recém-nascidos reais: pele manchada, peso idêntico, respiração simulada, até mesmo batimentos cardíacos falsos. Quem os adota, em geral mulheres adultas, não busca apenas uma lembrança estética da infância ou da maternidade, mas uma relação segura, previsível, muitas vezes como resposta a perdas, à solidão ou a um desejo de nutrição afetiva em um formato totalmente controlável. Alimenta-se neles uma fantasia afetiva que remete à função materna, mas sem os elementos imprevisíveis e exaustivos da maternidade real. O reborn não demanda, não chora, não frustra. É a maternidade esvaziada de seus conflitos, reduzida à superfície da ternura. Em vez da criança viva, o objeto. Em vez da presença dinâmica, o controle absoluto. Talvez esse fenômeno diga menos sobre uma excentricidade individual e mais sobre a forma como a sociedade contemporânea prefere substituir relações densas por simulações silenciosas, limpas, confortáveis, mas profundamente solitárias. No outro extremo da afetividade simulada está Divaldo Franco, cuja desencarne recente reacendeu debates sobre sua extensa obra filantrópica e seu carisma espiritual. Apresentado por muitos como um modelo de altruísmo, Divaldo afirmava ter adotado mais de 650 pessoas ao longo da vida, chamando-se pai de cada uma delas. A grandeza do número impressiona, mas também inquieta. O que significa ser pai de centenas? Em que medida a paternidade, quando multiplicada a esse ponto, ainda é paternidade? A palavra pai carrega consigo o peso da presença, da escuta, da partilha diária. Quando se estende demais, corre o risco de se esvaziar, tornando-se mais um gesto simbólico do que uma prática concreta. Não se trata de negar os benefícios materiais e emocionais gerados por sua atuação, mas de reconhecer o risco de transformar o cuidado em espetáculo, uma generosidade mais proclamada do que vivida, que talvez diga mais sobre o benfeitor do que sobre os supostos filhos. É preciso olhar com atenção para a caridade quando ela deixa de ser gesto íntimo e silencioso e se converte em estrutura, nome, patrimônio. A história de Divaldo, como a de tantos outros líderes religiosos e filantropos notórios, revela que a caridade também pode ser um caminho de acesso ao mundo: à política, aos salões, aos holofotes. Em nome do amor ao próximo, abre-se espaço para o trânsito entre esferas de poder que, em outros contextos, estariam vedadas a um funcionário público comum. O benfeitor se transforma em celebridade moral. Suas palavras passam a ser tomadas como verdade, sua figura como intocável, sua causa como incontestável. Desde as Santas Casas coloniais até as megaigrejas contemporâneas, a caridade já foi muitas vezes menos um gesto de compaixão e mais um instrumento de controle social, blindagem fiscal ou capital eleitoral. Quando isso acontece, o cuidado se converte em moeda, e o afeto, em imagem. A caridade, então, deixa de ser relação e torna-se instituição. E em vez de se manter como contracorrente crítica, acomoda-se no conforto da conivência. A filantropia, quando atrelada à sustentação de grandes estruturas, raramente é neutra. Ela precisa de aliados, favores, permissões. No caso de Divaldo, sua proximidade com o bolsonarismo não foi um desvio pontual, mas uma escolha reiterada e profundamente reveladora. Ao endossar, ainda que suavemente, um projeto político marcado por ataques aos direitos humanos, ao meio ambiente, à ciência e aos mais vulneráveis, ele cruzou uma linha tênue entre o humanismo espiritual e a conveniência institucional. Não se pode pregar amor universal e, ao mesmo tempo, silenciar diante de discursos de ódio ou se alinhar a quem despreza o outro. O amor que não denuncia a violência é apenas uma paz covarde, disfarçada de tolerância. Essa aliança não foi gratuita. O apoio de setores conservadores garantiu a continuidade de suas obras, a circulação de suas ideias, a blindagem moral de sua figura. Mas esse pacto cobra um preço alto: o da omissão diante da barbárie, o da paz aparente construída sobre o sofrimento ignorado. Há, nesse tipo de escolha, uma retórica de bondade que muitas vezes serve para evitar conflitos. Fala-se em amar a todos, em acolher indistintamente, mas esse tom de voz sereno, universalista, também pode ser o abrigo perfeito para quem deseja se esquivar de posicionamentos difíceis. Não é raro ver, por trás de discursos pacifistas, uma recusa em nomear a violência. Como se o amor, em vez de exigir coragem, bastasse como decoração moral. E assim, o gesto que aparenta grandeza revela, por vezes, sua natureza tática: proteger obras, preservar acesso, evitar atrito com quem manda. Uma mulher embala seu bebê de silicone em silêncio. Um homem se apresenta como pai de centenas em público. Ambos tocam, com mãos diferentes, a mesma ferida: a dificuldade de sustentar vínculos reais. Apesar das diferenças evidentes entre o bebê reborn e o pai de 650 filhos, ambos revelam a mesma operação simbólica: a troca da relação viva por uma representação emocional confortável. No primeiro, temos um objeto que simula uma criança, mas que jamais tensiona ou demanda. No segundo, um título que simula a paternidade, mas que não carrega as exigências íntimas da presença cotidiana. São formas distintas de encenação do cuidado, uma no plano individual, outra no coletivo, que respondem a um mesmo sintoma: o desejo de manter o afeto sob controle, sem se expor ao risco da convivência. Em vez do vínculo, o gesto. Em vez do encontro, a performance. Em vez do conflito que transforma, a zona de conforto simbólica. O que se oferece, em ambos os casos, é a aparência do cuidado, polida, previsível, protegida… enquanto o contato real, com suas dores, limites e potências, é deixado de lado. Cuidar de verdade é um gesto imperfeito. Exige presença quando se está cansado, escuta quando se tem pressa, conflito quando o silêncio seria mais confortável. Por isso, é compreensível que a sociedade busque refúgios: bonecos obedientes ou paternidades difusas que confortam sem incomodar. Mas é preciso reconhecer que o afeto que não transforma também não protege. Ele apenas adia o vazio. A maternidade encapsulada e a paternidade simbólica são, no fundo, estratégias para contornar o peso da intimidade real, essa que exige tempo, renúncia e envolvimento. Talvez por isso elas seduzam tanto. Mas o verdadeiro cuidado, como a verdadeira política, não cabe em gestos ensaiados, pois que  ele se constrói na contramão do espetáculo, nos bastidores da convivência, onde o amor não se diz, se faz. O cuidado real talvez nunca brilhe… mas é nele que o mundo se sustenta.

A greve de fome e a inanição de uma jornalista

Elizabeth Hernandes – EàE-DF

A greve de fome é um instrumento político conhecido, respeitado e estudado na literatura de ciência política e de sociologia. Há inúmeros casos registrados na história, como o de Gandhi, em 1932, ou de Guillermo Fariñas, dissidente cubano que fez uma greve de fome de 135 dias, em 2010. Ele protestava contra a prisão de ativistas políticos e o governo cubano cedeu às pressões para, talvez, evitar consequências graves como o que ocorreu com Orlando Zapata Tamayo, que morreu após 85 dias de greve de fome.

As ciências da saúde também reportam a gravidade das sequelas para o indivíduo que decide usar o próprio corpo como instrumento de protesto. Eu, cá com meus botões, encaro uma greve de fome como uma maneira do indivíduo manifestar sua força e também o sentimento de impotência diante da prepotência. Precisa coragem, resiliência e muita determinação. Precisa de fé no sentido amplo da palavra, aquela fé que move crentes e ateus.

Estive, juntamente com representantes de diversas denominações religiosas, em visita ao deputado Glauber Braga, que estava no nono dia de greve e, o que ainda não sabíamos, a pouco mais de duas horas da suspensão do protesto, em virtude de acordo feito com as lideranças do Congresso Nacional. Nosso objetivo era realizar um ato político num dos plenários da Câmara dos Deputados.

Num primeiro momento, a Polícia Legislativa não permitiu a entrada do grupo, alegando entraves burocráticos. Fizemos o que sabemos fazer: resistir, negociar e esperar. Enquanto permanecíamos nesse impasse, o deputado Glauber veio até a recepção, saudou a todos, abraçou a muitos e agradeceu o apoio. Eu já achei muito, porque eu, pessoa pequena que sou, depois de algumas horas sem comer, já não quero receber visita de ninguém.

Após contatos, negociações e exercício de paciência, entramos no plenário para a realização do ato. Eu, pessoa pequena que sou, imaginei que o deputado não viria, afinal ele já nos havia recebido. Ele veio, na companhia da esposa, a deputada federal Sâmia Bomfim. Discursou durante vários minutos e eu só pensava em pedir para ele sentar. Eu, pessoa epidemiologista que sou, tinha vontade de interrompê-lo e pedir para que uns dois ou três que estavam sem máscara pusessem a proteção ou se retirassem do local.

Saí de lá prontinha pra votar em Glauber Braga, caso ele se candidate na minha zona eleitoral e também muito esperançosa acerca dos destinos do mundo. Existem presidentes dos Estados Unidos, donos de big techs que controlam presidentes dos Estados Unidos e gente da classe trabalhadora que incensa presidentes controlados por donos de big techs. Mas existem Glaubers, Sâmias e também religiosos anônimos. Existem os que resistem. Existe eu, pessoa comum, que faz só um pouco mas não desiste. Existe o movimento dos Espíritas à Esquerda. Existe esperança.

Dirijo pra casa toda trabalhada na esperança e escuto a comentarista política da CBN referir-se à greve de fome do deputado como “um circo”. Não que a arte do circo e as pessoas que a praticam não sejam respeitáveis, muito pelo contrário. Acontece que, da forma como se expressou, ofendia tanto o povo do mundo do circo quanto os ativistas políticos. Aquela jornalista é um caso grave de inanição. Inanição moral.

Que continuem se arrastando, todos esses que sofrem de inanição moral. Aqui do lado onde eu vivo, estamos todos bem alimentados de esperança e de luta. Salve Glauber e todos os que resistem à fome.

NÃO MEXAM NA LEI DA FICHA LIMPA!

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A Lei Complementar nº 135, de 2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, foi uma iniciativa popular que conseguiu reunir cerca de 1,6 milhão de assinaturas e posteriormente foi aprovada pelo Senado Federal em 19 de maio de 2010, por votação unânime. A lei proíbe pessoas condenadas em instâncias colegiadas a candidatarem-se a cargos eletivos no Brasil, além de tornarem inelegíveis por oito anos os políticos que tiveram seu mandato cassado pela justiça. Essa legislação teve como propósito impedir que condenados e cassados pela justiça pudessem participar da vida política nacional.

Agora, por questões políticas circunstanciais e contrárias ao interesse público, está em análise no Congresso Nacional a proposta de alteração dessa lei. É um retrocesso legislativo inaceitável e um escárnio contra a sociedade brasileira. O que se precisa não é a flexibilização do impedimento de condenados e cassados às eleições nacionais, mas seu recrudescimento, valorizando ainda mais os cargos ocupados pelos representantes eleitos.

Portanto, nós, espíritas abaixo assinados, colocamo-nos frontalmente contrários à tramitação dessa proposta e apoiamos todos os esforços políticos para que nenhuma flexibilização seja aprovada.

Assinam este documento:

  • EàE – Espíritas à Esquerda

  • Fronteiras do Pensamento Espírita

  • Ágora Espírita

  • Aephus – Assoc Espírita de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais

  • AbrePaz – Ass Brasileira Espírita de Direitos Humanos e Cultura de Paz

  • Coletivo Girassóis

  • CEHP – Centro Espírita Herculano Pires

  • CELP – Cultura Espírita Livre Pensar

  • Estudos de Cultura Espírita

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Nem todos dizem amém

Elizabeth Hernandes, EàE-DF

Em uma semana em que se pensa que mais nada causará espanto, chamou a atenção do mundo a atitude da líder da cerimônia religiosa que fazia parte da programação da posse do presidente dos Estados Unidos. Num primeiro momento, pode-se imaginar que alguém, entre os responsáveis pelos festejos, cometeu uma grave falha. Por outro lado, é possível pensar que ninguém poderia prever que haveria uma pessoa ousada o suficiente para confrontar Trump daquela forma — serena e lúcida — e na frente de, literalmente, todo o mundo. A bispa episcopal de Washington, Mariann Edgar Budde, liderou a cerimônia por sua posição na hierarquia da igreja. Ela atua como líder espiritual de 86 congregações episcopais e dez escolas episcopais no Distrito de Columbia e em quatro condados de Maryland, sendo a primeira mulher eleita para esse cargo. Segundo sua biografia, divulgada pela Diocese, “Ela acredita que Jesus convida todos os que o seguem a lutar por justiça e paz e a respeitar a dignidade de cada ser humano. Para esse fim, a bispa Budde é uma defensora e organizadora em apoio a causas de justiça, incluindo equidade racial, prevenção da violência armada, reforma da imigração, inclusão total de pessoas LGBTQ+ e o cuidado da criação.” Ela também é autora dos livros Como Aprendemos a Ser Corajosos: Momentos Decisivos na Vida e na Fé, Recebendo Jesus: O Caminho do Amor e Reunindo os Fragmentos: A Pregação como Prática Espiritual. O mundo inteiro viu a bispa Mariann pedir misericórdia para homossexuais e imigrantes ao homem que se considera o mais poderoso do mundo. Em voz serena e firme, ela fez o que se espera de uma discípula do palestino Jesus de Nazaré: defendeu os mais fracos diante dos poderosos, sem medir consequências e sem se intimidar. Teve a coragem de pedir. A voz de Mariann ressoa: “Peço que tenha misericórdia, senhor presidente, daqueles em nossas comunidades cujos filhos temem que seus pais sejam levados embora. E que ajude aqueles que estão fugindo de zonas de guerra e perseguição em suas próprias terras a encontrar compaixão e boas-vindas aqui. Nosso Deus nos ensina que devemos ser misericordiosos com o estrangeiro, pois todos nós já fomos estrangeiros nesta terra.” (…) “Há crianças gays, lésbicas e transgêneros em famílias democratas, republicanas e independentes, algumas que temem por suas vidas.” Mais um episódio que demonstra não haver fronteiras entre religião e política, pois, afinal, não há fronteiras entre política e qualquer instituição humana. A religião, na maioria das vezes, é usada para oprimir, mas há um outro estadunidense que estabelece uma diferenciação importante. George Vaillant, psiquiatra e autor de Fé: Evidências Científicas, faz uma distinção simples entre religiosidade e espiritualidade. Em seu livro, ele afirma que a religião pode trazer consolo e libertação, mas também dor e opressão, enquanto a espiritualidade traz apenas consolo e libertação. A humanidade ganha quando encontra religiosos que cultivam a espiritualidade. Mariann Edgar Budde “é dessas”, uma pessoa “fora do padrão” em um mundo influenciado por um homem branco com ideias fascistas. Ela é mulher, idosa (65 anos) e não tem medo de pedir misericórdia. É claro que já está colhendo as consequências de sua ousadia. Foi pressionada publicamente a pedir desculpas por ter clamado por misericórdia em uma cerimônia que deveria apenas abençoar um governo implacável. Assessores da autoridade que deveria ter sido abençoada já divulgaram que uma pessoa como ela deveria ser deportada do “reino maravilhoso” dos Estados Unidos. O discurso da reverenda traz esperança, lembrando-nos de que, no mesmo dia em que começa o arbítrio, sempre começa a resistência. Nem todos dizem amém.

MANIFESTO E PEDIDO DE PERDÃO AOS POVOS ORIGINÁRIOS DO BRASIL E DO MUNDO

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Nós, espíritas brasileiros, signatários desse documento, pedimos perdão aos povos originários do Brasil e do mundo pelas referências depreciativas, discriminatórias e preconceituosas presentes na vasta literatura espírita, que têm influenciado a mentalidade espírita contemporânea. Essas referências são fruto do contexto colonialista e eurocêntrico no qual as obras fundadoras do espiritismo foram produzidas, razão pela qual se apresentam carregadas dos conceitos científicos equivocados da época. Tais escritos, reiteradamente promovidos pelo movimento espírita, suas instituições e lideranças, têm perpetuado a discriminação e o preconceito ao longo das gerações e aceitos, muitas vezes, como verdades incontestes. Comprometemo-nos, portanto, a: 1. atuar junto ao público espírita visando a reformular a visão distorcida a respeito dos povos originários do Brasil e do mundo como princípio de ação e reflexão e promover troca de saberes com esses povos, que somos nós, respeitando e entendendo suas cosmopercepções de mundo para uma experiência espiritual mais saudável e iluminada; e 2. atuar social, política e juridicamente para que as editoras espíritas incluam prefácios e notas explicativas nas suas publicações, retificando essa visão depreciativa, exaltando a importância da cultura dos povos originários e reparando a sua dignidade. Além disso, reafirmamos nosso respeito às culturas e tradições espirituais dos povos originários, reconhecendo que a violência contra seus valores espirituais impacta muitas gerações e comprometendo-nos a defender seus direitos à terra, cultura e dignidade. Em 23/09/2024

Espíritas à Esquerda

Fronteiras do Pensamento Espírita

AEPHUS – Associação Espírita de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais.

Fraternidade Espírita – Goiânia/GO

Abrepaz – Assoc. Brasileira Espírita de Dir. Humanos e Cultura de Paz

Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA)

Ágora Espírita

Seu nome Seu estado (UF) Sua cidade
Alayr R. Pessôa Filha RJ – Rio de Janeiro Maricá (Mary’ká)
Alexandre Júnior  PE – Pernambuco Recife 
Ana Carolina da Silva  RJ – Rio de Janeiro Rio de Janeiro 
Ana Paula Muzitano Santos  RJ – Rio de Janeiro Rio de Janeiro 
Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) RJ – Rio de Janeiro Niterói 
Brena Silva Ferreira  BA – Bahia Salvador 
Carla Guerra  SP – São Paulo Santos 
Carolina Abreu DF – Distrito Federal Brasília
Claudete Ribeiro de Araujo PA – Pará Parauapebas 
Clovis A. Portes MG – Minas Gerais Ipatinga
Delma Crotti  SP – São Paulo Santos
Deolinda Emilia Ferreira Santana  PA – Pará Belém
Elias Marques da Costa MG – Minas Gerais Juíz de Fora 
Elizabeth Barros PE – Pernambuco Recife
Eva Gonçalves de Almeida  SP – São Paulo Sumaré 
Fábio Santos  GO – Goiás Goiânia 
Felipe de Menezes Tavares  PE – Pernambuco Arcoverde 
Felipe Pedro Leite de Aragão  PE – Pernambuco Tuparetama 
Flavio Carneiro Bello RS – Rio Grande do Sul Porto Alegre
Gastão Cassel SC – Santa Catarina Florianópolis
Genedilson Gomes de Souza  ES – Espírito Santo Vila Velha 
Gislaine Costa Pereira  SC – Santa Catarina São José 
Guilherme  RJ – Rio de Janeiro Vassouras 
Helcio dos Santos Rodrigues  RJ – Rio de Janeiro Niterói 
Herta Franco  SP – São Paulo São Paulo 
Ivã Silva Alakija BA – Bahia Salvador
Ivon Ferreira Martins SP – São Paulo Embu das Artes
Jacira do Espírito Santo silva SP – São Paulo Barueri
Jane Eyre Goncalves Vieira GO – Goiás Goiânia 
Jordelene de Oliveira Nascimento  GO – Goiás Itapirapuã 
Jumara dos Santos Lourenço  RS – Rio Grande do Sul Bage
Jussara Lourenço  RS – Rio Grande do Sul Bagé 
Leidiene  BA – Bahia Salvador 
Lucas Primani SP – São Paulo Araraquara
Lúcia Barbosa Ximenes  MG – Minas Gerais Três Corações 
Luciana Pires Pansani  SP – São Paulo Campinas 
Luciana Ribeiro da Silva  ES – Espírito Santo Vila Velha 
Marcelo José de Sousa SP – São Paulo São Paulo
Marcelo Teixeira  RJ – Rio de Janeiro Petrópolis 
Marcio Sales Saraiva  RJ – Rio de Janeiro Rio de Janeiro 
Maria Angela paraíso rocha  ES – Espírito Santo Serra 
Maria Cristina Camin  MG – Minas Gerais Uberlândia-MG 
Maria Cristina Vianna de Giácomo  RJ – Rio de Janeiro Mendes
Maria Eunice Rocha Vale  DF – Distrito Federal Brasília 
Mariela Bier Teixeira  RS – Rio Grande do Sul Canoas
Mario Fontes BA – Bahia Salvador 
Mônica Mendes BA – Bahia Salvador
MOVE – Movimento Pela Ética Animal Espírita  RJ – Rio de Janeiro Niterói, RJ 
Paula de Mesquita Spinola  SP – São Paulo São Paulo 
Paula Hubner SP – São Paulo São Paulo
Paulo Casasanta Filho  MG – Minas Gerais Ibirité 
Rafael van Erven Ludolf  RJ – Rio de Janeiro Niterói 
Ricardo Andrade Terini  SP – São Paulo São Paulo 
Ricksom Igor Dantas da Silva Marques  RN – Rio Grande do Norte Parnamirim
Roberto Caldas RS – Rio Grande do Sul Porto Alegre
Rosana Esteves RJ – Rio de Janeiro Rio De Janeiro
Rosângela de Souza Vilaça  MG – Minas Gerais Belo Horizonte 
Rosangela Fideles Coelho Avelino  GO – Goiás Goiânia 
Roseana Mendes Marques  RJ – Rio de Janeiro Rio de Janeiro 
Samuel Vieira Nunes CE – Ceará Orós
Sandra Cardoso  BA – Bahia Salvador 
Sergio Mauricio Pinto BA – Bahia Salvador
Silvia  TO – Tocantins Palmas
Silvia Schiedeck  SC – Santa Catarina Balneário Gaivota 
Solange Marreiro de Souza  SP – São Paulo Serra Negra 
Susete Assis Campos  DF – Distrito Federal Brasília 
Suzana Leão  RS – Rio Grande do Sul Novo Hamburgo 
Tatiana Pires Maia  MG – Minas Gerais Belo Horizonte 
Telma  ES – Espírito Santo Vitória 
Thiago Lima de Moura  SP – São Paulo São Paulo 
Valdir Bibiano de Souza  SP – São Paulo Serra Negra 
Valnei Francisco de França  PR – Paraná Curitiba 
Vanessa Abreu DF – Distrito Federal Brasilia 
Vera Lucia MG – Minas Gerais Juiz de Fora
Wandy Branquinho Borges Xavier  GO – Goiás Goiânia 
Willian Higa  RJ – Rio de Janeiro Maricá 
Zenaide Neves Arantes  GO – Goiás Goiânia 

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“Nunca senti uma dor tão grande”, conta professora sobre exclusão de centro espírita após transição de gênero

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No dia 13 de julho de 2024, Brasília sediou o III Encontro Nacional da Esquerda Espírita, reunindo diversos palestrantes comprometidos com a integração dos princípios espíritas e a luta por justiça social. Dentre os destaques, a palestra de Atena Roveda – por meio de videoconferência – sobressaiu-se pela profundidade de suas reflexões e pelo tocante depoimento pessoal sobre sua experiência de exclusão numa casa espírita.
atena roveda
Atena Roveda participou do III ENEE por vídeo conferência.

Inclusão e justiça social no espiritismo

Atena Roveda, professora, ativista social, escritora, pensadora espírita e suplente de vereadora em Porto Alegre pelo PSOL, abriu sua palestra destacando a importância da inclusão e da justiça social dentro das práticas espíritas. Ela citou Allan Kardec para reforçar seu ponto de vista, afirmando que “a verdadeira caridade é aquela que se estende a todos, sem distinção de raça, credo ou condição social”. Roveda enfatizou que o espiritismo, por sua natureza humanitária e progressista, deve ser um catalisador de mudanças sociais que promovam a igualdade e a justiça. Ao longo de sua fala, Atena argumentou que a caridade, embora fundamental, precisa ser complementada por ações que visem a transformar as estruturas sociais injustas. Citando Léon Denis, ela declarou: “Não basta aliviar o sofrimento; é necessário também atacar as causas que o produzem”. Para Roveda, os espíritas têm a responsabilidade moral de se engajar em lutas sociais e políticas que visem à construção duma sociedade mais justa e fraterna.

Depoimento pessoal de exclusão

Um dos momentos mais emocionantes da palestra foi o depoimento pessoal de Atena Roveda sobre sua própria experiência de exclusão numa casa espírita. Ela relatou como, devido à sua condição de mulher transexual, suas opiniões políticas e seu engajamento em causas sociais, foi afastada duma instituição espírita que frequentava. “Foi um período doloroso”, confessou Atena, “mas também foi um momento de grande aprendizado. Percebi que, infelizmente, há ainda muitos preconceitos e resistências dentro do próprio movimento espírita.” Esse relato pessoal tocou profundamente os presentes, evidenciando a necessidade urgente de maior abertura e inclusão dentro das instituições espíritas. Atena destacou que o espiritismo, sendo uma doutrina de amor e caridade, deve acolher e respeitar a diversidade de pensamentos e ações que visam ao bem comum.

Espiritualidade e ativismo

Roveda concluiu sua palestra enfatizando a conexão intrínseca entre espiritualidade e ativismo. Para ela, a prática espírita deve necessariamente envolver-se com as questões sociais e políticas de seu tempo, buscando sempre promover o bem-estar e a dignidade de todos. “O Reino de Deus, como nos ensinou Jesus, é construído aqui e agora, através de nossas ações em prol da justiça e da fraternidade”, afirmou Atena, citando o evangelho. A palestra de Atena Roveda no III Encontro Nacional da Esquerda Espírita foi um chamado poderoso para que os espíritas se engajem mais profundamente nas lutas por justiça social e inclusão. Sua combinação de argumentos teóricos e experiência pessoal trouxe à tona a necessidade de uma prática espírita mais aberta, acolhedora e comprometida com a transformação social.

Assista a íntegra da palestra de Atena Roveda: