Leituras em tempo de quarentena

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Nesse texto, Sinuê Miguel, membro do Coletivo Nacional Espíritas à esquerda e autor do livro “Movimento Universitário Espírita: religião e política no espiritismo brasileiro (1967-1974)”, publicado pela Alameda Editorial, fala sobre a experiência de autogestão dos trabalhadores na antiga Iugoslávia, tema bastante pertinente a todos que têm como objetivo a transformação das relações de trabalho na sociedade.

A autogestão iugoslava: caminhos e dilemas (1950-1991)

Sinuê Neckel Miguel

Revista História (São Paulo), Unesp

RESUMO:

Este artigo apresenta um panorama histórico sobre o sistema de autogestão desenvolvido na Iugoslávia, abarcando desde a sua introdução em 1950 até o seu desmantelamento concomitante à restauração capitalista e à desintegração do país nos turbulentos anos de 1988 a 1991. Destacamos os resultados econômicos positivos obtidos ao menos até a introdução da reforma laissez-faire de 1965, bem como a ambiciosa tentativa de remodelação do sistema nos anos 1970, gradativamente colocado em xeque ao longo da crise terminal dos anos 1980.

A experiência iugoslava com a autogestão recebeu grande atenção internacional nos anos 1960 e 1970, o que se reflete em volumosa bibliografia com estudos de economistas, sociólogos, cientistas políticos e historiadores. Apesar do declínio do interesse pela autogestão a partir dos anos 1980 e da desintegração da Iugoslávia, o singular projeto socialista iugoslavo permanece como um terreno fértil para a reflexão teórica acerca de problemáticas contemporâneas (como a questão da economia solidária), além de continuar a suscitar releituras históricas, a partir de novas questões e do uso de fontes ainda pouco ou nada exploradas.

Com isso, pretendemos contribuir para uma retomada do tema da autogestão na Iugoslávia, apresentando nesse artigo uma síntese histórica do período de funcionamento do sistema de autogestão, desde a sua introdução em 1950 até o seu desaparecimento concomitante à restauração capitalista e à desintegração da Iugoslávia entre 1988 e 1991. Faremos notar o caráter dinâmico da autogestão iugoslava, referida num projeto socialista que envolvia, sobretudo, a vanguarda comunista, as demandas dos trabalhadores das distintas repúblicas e a ascensão de gerentes profissionais, crescentemente atraídos pela liberalização econômica e cada vez menos vinculados a ideais socialistas. O artigo está subdividido em cinco partes: a introdução da autogestão, a afirmação do liberalismo econômico, a última reforma da autogestão, desintegração iugoslava e restauração capitalista e a conclusão.

A INTRODUÇÃO DA AUTOGESTÃO:

Após uma luta de libertação nacional que conduzira à reunificação dos “eslavos do sul” ante a ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial, nascia a República Socialista Federativa da Iugoslávia, reunindo Eslovênia, Croácia, Sérvia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Macedônia[1]. Inicialmente, sob a liderança de Josip Broz Tito, o partido comunista dedicara-se à reconstrução material de um país devastado pela guerra, orientando-se pelo modelo soviético de “economia de comando” e sacrificando o consumo em favor de uma alta taxa de industrialização. Todavia, já em 1948, Stalin rompera com os comunistas reunidos em torno de Tito, não apenas em função da resistência dos dirigentes iugoslavos a subordinarem-se aos desfavoráveis acordos econômicos e políticos propostos, mas sobretudo em razão do conflito de estratégias na geopolítica internacional da nascente Guerra Fria, em que a intrincada e controversa questão da federação balcânica parece ter sido central.

Com o rompimento, adveio o bloqueio econômico do Cominform e a abertura para a busca de uma “via iugoslava” para o socialismo, na qual o stalinismo figurava como uma espécie de antimodelo do qual a Iugoslávia tinha de se afastar definitivamente. É nesse contexto que se gestou e nasceu a autogestão iugoslava[2]. Sumarizando as análises de diversos autores, pode-se dizer que sob determinadas circunstâncias externas (bloqueio econômico do Cominform e ruptura com Stalin no princípio da Guerra Fria) e internas (insatisfação popular num Estado multiétnico de raízes frágeis, disfunções da economia de comando e da organização burocrática, pressão salarial de sindicatos e trabalhadores altamente qualificados no âmbito de um projeto de rápida industrialização, suporte da tradição da zadruga e do “modelo esloveno”[3]) o grupo dirigente do Partido Comunista da Iugoslávia pôde encontrar na teoria marxista sobre a associação dos trabalhadores uma alternativa ao modelo vigente na URSS que aparecia como viável ideológica e pragmaticamente.

Após uma experiência-piloto com 215 empresas compreendendo 8.230 trabalhadores, nas quais foram introduzidos conselhos eletivos formais de trabalhadores, a Assembleia Nacional aprovou em 27 de junho de 1950 o que ficou conhecido como a lei sobre a autogestão dos trabalhadores, pela qual os meios de produção deixavam de ser formalmente propriedade do Estado, passando a ser propriedade social. Por meio de órgãos coletivos (conselhos operários e comitês de gestão) criados em cada empresa, os trabalhadores tornam-se, em tese, administradores de uma parcela da propriedade social global (RUSINOW, 1977, p. 57-58; MEISTER, 1970, p. 36-37).

Todavia, manteve-se uma relativa separação entre um corpo administrativo –o collegium (formado pelo diretor geral, diretores de departamentos, chefes de seção e supervisores)– e a base operária, que em tese teria o poder de governar a empresa, controlando as decisões da gerência profissional por meio do conselho operário, do comitê de gestão e da assembleia geral. Assim, enquanto a administração rotineira ficaria a cargo dos gerentes profissionais, as decisões estratégicas deveriam ser submetidas à deliberação e aprovação dos trabalhadores por meio dos órgãos de autogestão (ADIZES, 1977, p. 75-89; ILO, 1962, p. 107).

[…]

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Publicado no Facebook em 11/06/2020

1 COMENTÁRIO

  1. Na 4ª VIA – AS PERIFERIAS NO PODER E O SOCIALISMO NEGRO (antítese ao socialismo branco eurocêntrico), desgastados pelo paternalismo público (Prefeituras, Estados União), os Distritos (bairros) optam pelo autogerenciamento de seus impostos que, através de uma nova Assembleia Nacional Constituinte, eliminaria os poderes executivos e legislativos dos atuais entes federativos, assumindo diretamente essa desafiante e histórica tarefa.

    Trata-se da evolução do conceito clássico de democracia, aperfeiçoando de maneira prática a forma inclusiva desse conceito, literalmente DEMOCRATIZANDO O CONCEITO DE DEMOCRACIA.

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