Marinas, Virgínias e o DNA dos brasileiros

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Geraldo Magela / Agência Senado

Elizabeth Hernandes* – EàE-DF

Nesse mês de maio do ano da graça de 2025, duas mulheres compareceram para falar em comissões do Senado Federal.

Uma delas é uma das vozes políticas mais influentes do Brasil, ambientalista conhecida, reconhecida e premiada no mundo, ministra de estado. Mas só tem 931 mil míseros seguidores no Instagram.

A outra exerce o contemporâneo ofício de influencer. Vende cremes que afirma serem “emagrecedores” e outros produtos do gênero, além de vender cenas de sua própria e, aparentemente, glamurosa vida. Tem não sei quantos milhões de seguidores.

Antes de prosseguir, um alerta de quem tem doutorado em saúde (eu mesma) e experiência tanto em epidemiologia quanto em atividade física. Só existem duas maneiras de se queimar gordura: fazendo atividade aeróbia ou tacando fogo no tecido adiposo, no sentido literal do termo. Cremes não funcionam e a ciência só recomenda a atividade aeróbia.

Muito bem. A ambientalista foi desrespeitada pelos senadores presentes na cerimônia oficial. A influenciadora digital foi incensada, super bem tratada e alguns senadores pediram para tirar selfies com a moça.

O que essas mulheres têm em comum? Ambas são muito inteligentes e fazem muito bem o trabalho ao qual se propuseram. Ambas merecem respeito pelo trabalho que escolheram para sua vida e pela sua condição de cidadãs. Repita comigo, em caso de dúvida: respeitar não é o mesmo que concordar.

O que difere –e muito– essas mulheres, além do óbvio: uma se dedica a uma causa de interesse da humanidade; a outra cuida dos próprios interesses e dos seus sócios ou acionistas. E ambas impactam, de maneiras muito diferentes, a nossa sociedade.

E que sociedade é essa? Vamos olhar o aspecto genético.

Recentemente foi divulgado um estudo que dá respaldo científico ao que sempre esteve, literalmente, “na nossa cara”: o Brasil é o país com a maior diversidade genética do mundo1. Realizada numa universidade pública e liderada por mulheres, a pesquisa traz inúmeros impactos positivos para a área da saúde, em especial a epidemiologia, além de fazer revelações importantes sobre como nos estruturamos como nação.

De acordo com o estudo, publicado na prestigiada revista Science, a maioria das linhagens do cromossomo Y, que é herdado dos homens, é proveniente de europeus (71%) e a maioria das linhagens mitocondriais, que são herdadas das mulheres, era africana (42%) ou indígena (35%). Esse achado revela um cruzamento “não natural”, reflexo da violência sexual que mulheres indígenas e africanas escravizadas sofreram dos “civilizados” europeus. O DNA, molécula pesquisada na área das ciências biológicas, confirma o que as ciências humanas, como história e antropologia, já haviam contado: a sociedade brasileira foi fundada em bases violentas e essa violência se deu, especialmente, contra mulheres, indígenas e pretos.

E no ambiente do Senado Federal, que em pleno século XXI deveria ser um exemplo de segurança para as mulheres, o mundo inteiro assiste à cena de uma mulher brasileira preta, originária da Amazônia, sofrendo violência verbal de homens brancos (na medida em que se pode ser branco no Brasil, conforme o estudo citado fundamenta).

Além de ser mulher, preta, da região amazônica e de ter sido alfabetizada aos dezesseis anos de idade, Marina Silva é ministra de estado, uma liderança política respeitada em nível nacional e uma das ambientalistas mais influentes do mundo. Os homens que a assediaram, infelizmente, são senadores da República, mas apenas isso. Não há muito o que se possa dizer dos respectivos currículos.

Por que esses homenzinhos têm a audácia de atacar a grandiosa Marina? Por que, sendo eles senadores da República, quebram o decoro exigido pelos ritos do parlamento, sem nenhum temor de serem punidos? Porque se sentem autorizados. Porque é assim que tem sido desde a nossa fundação como sociedade e é justamente por isso que todos esses pequeninos homens se declaram conservadores. Eles querem conservar seus privilégios para violentar e silenciar. Um deles, inclusive, já havia afirmado, também em público e sob transmissão da mídia, ter o desejo de estrangular Marina Silva.

É muito compreensível –diante do histórico do país marcado pela cultura do estupro, pela violência contra as mulheres e pela violência política de gênero– que um homem pequeno sinta-se agredido por uma mulher que discorde dele e até confesse seu desejo de eliminá-la. Mas aqui estão em jogo interesses econômicos e não apenas o ego de políticos medíocres porque, na visão de pessoas ignorantes ou apenas mal-intencionadas, a legislação ambiental atrapalha os negócios. E, no momento em que estas palavras são escritas, uma mulher está sofrendo violência no Brasil2 e essa violência é cometida por um homem que também se sente incomodado com o fato de mulheres serem seres de direitos.

Esse triste retrato, de uma sociedade que parece valorizar mais uma influencer que uma ambientalista, cujas leis estão sendo elaboradas por homens que tentam silenciar, de forma violenta, uma mulher que age contra seus interesses, é bem deprimente. Mas aqui podemos, mais uma vez, nos valer das pesquisas científicas: em genética, não há determinação e sim propensão. Tanto a área de estudo das ciências da natureza quanto a das ciências humanas mostra que nossa sociedade foi fundada sob parâmetros de colonização predatória e violenta. Mas a pesquisa, em ambas as áreas, também mostra que não existe determinismo que impeça o progresso de indivíduos ou coletividades e que intervenções positivas podem salvar pessoas e grupos.

Nós podemos traçar novos caminhos. Existem muitas Marinas provando isso, todos os dias. Nós podemos ser melhores que nossos senadores.

Sobre a autora: Elizabeth Hernandes é espírita à esquerda pelo Coletivo Espíritas à Esquerda, especialista em políticas públicas pela Enap e doutora em epidemiologia pela USP.

1 Nunes, Kelly et al. Admixture’s impact on Brazilian population evolution and health. Science Vol. 388, No. 6748. Disponível em https://www.science.org/doi/10.1126/science.adl3564

2 Uma mulher é estuprada, n o Brasil, a cada oito minutos. Fonte: RelatórioAnual Socioeconômico da Mulher – Raseam , elaborado pelo Observatório Brasil da Igualdade de Gênero. Disponível em https://www.gov.br/mulheres/pt-br/observatorio-brasil-da-igualdade-de-genero/raseam/ministeriodasmulheres-obig-raseam-2024.pdf

3 COMENTÁRIOS

  1. Excelente artigo! Parabéns a todas as Marinas por uma sociedade melhor. Que elas possam ter força e coragem para continuar nesse bom combate.

  2. Parabéns Beth, pelo seu artigo tão pertinente e bem fundamentado. É a Beth sendo ela mesma, cirúrgica como sempre. Grande pensadora, grande escritora, grande mulher! Uma estrela que brilha em qualquer contexto. O mundo precisa de você!

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