Elizabeth Hernandes – EàE DF
Dia de execução de bandido famoso é dia de falar mal “desse pessoal dos direitos humanos”. Onde estavam na hora em que o bandido matava pais de família? Por que só aparecem quando a polícia executa os bandidos? Essa última pergunta talvez seja respondida pelo fato de que a polícia divulga com mais frequência as suas ações, enquanto os bandidos tentam escondê-las.
Os Direitos Humanos estão onde sempre estiveram: ao lado dos humanos, defendendo humanos valores e opondo-se à barbárie cometida por qualquer tipo de bandido.
De onde saiu essa ideia de que defender direitos humanos significa ser a favor de atos ilícitos, imorais ou as duas coisas? Muito provavelmente essa ideia é difundida pelos que se beneficiam com a barbárie.
Certa vez, numa palestra de um advogado muito bem sucedido e fascinado pela cultura de “honestidade e horror à mentira” – palavras dele, dado que há controvérsias – vigente nos Estados Unidos, ele contava, orgulhosamente, que defendera o Estado contra um egresso do sistema carcerário que processou a Pátria, alegando que, no presídio, dormia com o rosto próximo à privada. “E onde mais deveria dormir um sentenciado? Por que o pessoal dos Direitos Humanos não leva pra dormir na casa deles?”
Quando você não defende direitos humanos, parte do princípio de que as pessoas se dividem em classes ou castas, talvez com variadas gradações, mas com a certeza de que você e os seus localizam-se num dos patamares superiores
Será impossível que um membro de uma família branca, abastada e letrada cometa um crime? De todo modo, se esse menino ou menina problemático (qualquer que seja a idade) vier a cometer um deslize, terá brilhantes causídicos à disposição.
Talvez um bacharel não cogite a hipótese de um parente vir a dormir – uma noite que seja – num cárcere. Mas é bom lembrar que a vida é imprevisível, doutor… E repleta de seres humanos com os quais temos de conviver. Melhor que esses “outros” tenham garantidos direitos fundamentais, como condições dignas de sobrevivência ou o devido processo legal.
É muita sorte da sociedade quando uma pessoa, que dormiu anos com a cara perto da privada, num equipamento estatal que está legalmente obrigado a preservar sua vida e integridade, está disposta a simplesmente processar o Estado. Haveria a probabilidade de essa pessoa sentir muito ódio. E tal sentimento ser jogado na cara ou na vida do primeiro que encontrasse, já que sentir ódio e concretizá-lo está tão fácil e acessível, nesse país.
Hoje todo mundo odeia alguém: políticos, empresários, blogueiros, a imprensa, os “comunistas”, o vizinho, os artistas etc. E alguns odeiam, de alma, coração, fígado e dedo indicador em posição de gatilho, o “pessoal dos Direitos Humanos”. E não vamos esquecer do ódio ao misterioso Lázaro, o assassino assassinado1, exemplo filmado de morte matada.
Por que não odiamos, por exemplo, Joseph Safra, bilionário libanês-brasileiro, morto em berço esplêndido, cuja fortuna fora estimada em US$ 18 bilhões? Ele controlava um conglomerado bancário e financeiro com ações em 19 países e foi acusado, numa operação da Polícia Federal, de pagar R$ 15,3 milhões em propinas.
De acordo com a imprensa, interceptações telefônicas e fotografias mostravam toda a movimentação de um provável preposto do grupo Safra, negociando a “gorjeta” que valeria a dispensa de 1,8 bilhão de reais em tributos. O bilionário foi inocentado. Não houve como provar sua relação com o corruptor, que aparece em fotos voltando para a sede do grupo Safra, após o conluio com os corrompidos. Embora o grupo Safra tenha-se beneficiado na negociata, caso ela tenha-se concluído, a Joseph Safra – que certamente não passará pelo buraco de uma agulha antes de um camelo – não se aplicou nem mesmo uma teoriazinha de “domínio do fato”. Ele tomara o cuidado de não ser sócio e nem empregador do negociador.2
Então um bilionário foi inocentado e… ninguém bateu panelas? Por quê? Seria porque “a conversa não chegou na cozinha, a plebe ignara não tomou conhecimento”?
E quantos direitos humanos poderiam ser garantidos com 1,8 bilhão de reais, se investidos em programas sociais? Só pra lembrar: saúde, educação e segurança são direitos humanos.
E o que diria o cidadão de bem?
“Ora, ora, ora. Lá vêm esses comunistas a falar em programas sociais. A continuar nessa toada, logo vão chamar de genocídio a mortandade de mais de meio milhão de brasileiros só porque o governo atrasou a compra de vacinas, desmontou o sistema de vacinação3, que era referência internacional e não adotou estratégias efetivas para o fechamento de cidades, como ocorreu em países que já estão voltando a um modo de vida sem pandemia. Ora, ora, ora, direitos humanos. Só servem para beneficiar ‘os pês’: pretos, pobres, preguiçosos, petistas…”
Será que nós, os brasileiros, somos assim tão “brancos”, ”ricos”, “diligentes e civilizados”, a ponto de poder dispensar o trabalho desse “pessoal dos direitos humanos”? E será que acreditamos em teorias deterministas para a hora da morte, mesmo quando mais de meio milhão de compatriotas morre por uma doença para a qual há vacina e medidas outras de prevenção?
Há espíritas argumentando que “cada um tem sua hora” e citando os casos de desencarnações coletivas previamente combinadas etc. Sobre isso, um artigo de Carlos Augusto Parchen4 analisa questões, de O Livro dos Espíritos, que tratam da determinação da duração da vida. O articulista conclui que “Pode-se, portanto, afirmar que existe “um momento da morte” (ela ocorrerá inexoravelmente), mas não “o momento da morte” (ou seja, que ela está determinada e programada previamente).
A hora de morrer também é sobre direitos humanos. O direito de fruir a vida em toda a sua extensão e não ter a encarnação abreviada por fatores externos à responsabilidade pessoal. Na literatura científica, tais fatores são classificados como Determinantes sociais de Saúde.5
Direitos Humanos – e o respectivo “pessoal” – não seriam necessários num país que vivesse deitado eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo, em pleno estado de ordem e progresso. Não é o caso do Brasil.
É preciso valorizar o “pessoal dos direitos humanos” porque eles costumam empenhar a própria vida para defender as nossas vidas e, às vezes, perdem as vidas deles ou a de pessoas que lhes são caras.6
O Espiritismo não permite atitudes à moda do avestruz. Há vasta literatura que impede o impulso de enfiar a cabeça sob a terra, quando a realidade está feia de se encarar.
Se alguém aprova execuções sumárias – mesmo de perigosos assassinos – está relativizando o valor da vida, está aceitando que mortes matadas e mortes morridas são a mesma coisa. Se acredita em sintonia espiritual, está vibrando na mesma faixa da pessoa executada, bem como da dos executores. Se contribuiu, por ação ou omissão, para a constituição das autoridades que carregam nas costas a conta de mais de meio milhão de mortes que poderiam ser evitadas, é corresponsável. E se, depois de constatados tais sentimentos, continua se dizendo cristão, não entendeu nada sobre a religião inspirada nos ensinamentos de um palestino inocente, que foi denunciado, torturado e executado dentro de um processo legal conduzido pelas autoridades da época.
A boa notícia é a lição de misericórdia que nos deixou o Palestino. Reconcilie-se, principalmente consigo mesmo, enquanto está a caminho.
1 https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2021/06/28/lazaro-barbosa-veja-o-que-se-sabe-sobre-a-operacao-que-resultou-na-morte-dele.ghtml
Ótimo texto, Beth. A visão de que direitos humanos são para “humanos direitos” parte da falsa premissa de que existem humanos superiores com direitos e autoridades superiores. Tudo gira em torno de preconceito e discriminação de tudo que não cabe no padrão “homem de bem”. Esse rótulo que não passa de uma convenção vazia que esconde uma má interpretação dos ensinamentos de Jesus, cujo nome chega a ser usado pra justificar ações vingativas, que não resolvem nada. Não contribui pra a evolução de ninguém. No final das contas, resulta mais em endurecimento do que em reforma íntima.