Nesse texto, o autor analisa o direito como “uma das formas resultantes e engendradas por uma sociedade capitalista que é dividida, fraturada, centralmente em duas principais classes diametralmente opostas, organizando-se para a produção e reprodução da sua vida material em relações de produção, consistentes em capital e trabalho, conforme o pensamento de Karl Marx”.
O direito é um instrumento de resolução de conflitos sociais ou de dominação de classe? Uma análise de Karl Marx acerca do fenômeno jurídico.
Caique de Oliveira Sobreira Cruz – no JusBrasil (texto integral aqui)
RESUMO:
O presente trabalho visa compreender o direito enquanto uma das “formas” resultantes e engendradas por uma sociedade capitalista que é dividida, fraturada, centralmente em duas principais classes diametralmente opostas, organizando-se para a produção e reprodução da sua vida material em “relações de produção”, consistentes em capital e trabalho, conforme o pensamento de Karl Marx. Entende-se por “relações de produção” as formas como os homens em sociedade se reúnem para, através do trabalho, alterar a natureza e produzir e reproduzir as condições materiais da sua própria existência. A partir da extração da “forma” jurídica do complexo social, buscar-se-á entender os mecanismos de dominação de classe exercidos pela classe dominante, a burguesia, e compreender como o direito pode se expressar como reflexo e parte integrante desta dominação, sendo um instrumento de busca de hegemonia contra a classe subalterna, excluindo-a, com o processo de criminalização da pobreza executado pelas ferramentas do capital que visam reproduzir tanto a condição de miséria generalizada da vida do trabalhador, quanto o controle hegemônico da sociedade, mantendo-a sob um domínio cultural, político, social e, especialmente, econômico, por meio de um aparelho estatal que detém o monopólio do uso da força e serve aos interesses dos dominantes. Por burguesia, compreende-se a classe dos capitalistas modernos, proprietários e detentores dos meios de produção social e que empregam o trabalho assalariado, os burgueses são aqueles que ficam com o excedente do que é produzido pela humanidade nesta sociedade analisada.
INTRODUÇÃO:
A dogmática jurídica majoritária compreende o Direito enquanto fenômeno predominantemente gnosiológico, ou seja, como expressão das representações abstratas dos teóricos, retirando, assim, do “conteúdo” do fenômeno a sua base essencialmente material e ontológica. Apartando-se da totalidade social e das relações sociais de produção, ocasionando um distanciamento da construção de uma compreensão crítica ao Direito, emergindo uma análise logicista e formal: “Os juristas profissionais comparam os sistemas jurídicos de povos diferentes não como expressões de condições econômicas com efeitos bastante particulares, mas como sistemas independentes e auto-suficientes” (MORRISON, 2006, p. 314).
O fenômeno da especialização aprofundou essa perspectiva de afastamento que separou as ciências sociais em departamentos diferenciados e, assim, o direito ganhou status de ciência autônoma, neste sentido, para que seja possível oferecer uma antítese ao entendimento dominante, deve-se utilizar categorias que consigam explicar o Direito enquanto parte constitutiva de um todo social, contrapondo o instrumental apenas descritivo e de legitimação do fenômeno jurídico. Para alcançar o renascimento de uma proposição crítica e transformadora, é necessário o resgate do pensamento crítico acerca do Direito, e nos debruçaremos na interpretação do pensador alemão Karl Marx (1818-1883) para este objetivo, seja por meio de seus textos originais ou de interpretes das suas obras.
Este trabalho ganha dimensões importantes quando se faz uma análise bibliográfica sistemática e percebe-se que a doutrina majoritária e os autores mais destacados resumem-se à discussão jurídica e dogmática da temática, afastando da centralidade as noções sociais, de economia política, ciência política e sociologia que são imprescindíveis para a compreensão da problemática posta, pois as lentes jurídicas, embora necessárias nesta análise, mostram-se insuficientes se isoladas do objeto real em movimento. Este estudo tem como objetivo analisar o fenômeno jurídico e as suas interações com as classes sociais; capital e trabalho, visando a alcançar as relações de dominação que perpassam a sociabilidade capitalista através da esfera jurídica; identificar quais os segmentos da sociedade civil são mais abarcados dentro da ação de coerção e repressão estatal que é feita por intermédio do Direito; e, por fim, apreender a interdependência entre a “forma jurídica”, a “forma política” e a “forma mercadoria” de acordo com o pensamento de Karl Marx, para expor que o fenômeno jurídico não existe de modo isolado, como uma pretensa ciência que detém autonomia absoluta.
A pesquisa terá caráter bibliográfico que tem como interesse a realização de leitura e análise de textos de Karl Marx e dos comentadores de seus escritos referentes ao Direito que estão contidos em textos diversos não sistematizados. Portanto, trata-se de uma pesquisa teórica, realizada por meio de uma abordagem qualitativa, buscando um extenso esclarecimento acerca do problema, para que possam ser levantados os elementos críticos. Prezando pelas técnicas de revisão bibliográfica a partir de material já publicado, constituído principalmente de livros, artigos de periódicos e materiais disponibilizados na Internet, sistematizações, análises documentais, as seguintes técnicas: das categorias, dos conceitos, da pesquisa e do fichamento. As conclusões do trabalho levarão em conta tudo o que for levantado pela revisão sistemática supracitada, seus conceitos básicos, ponderações, convergências e divergências, acertos e erros, mas principalmente suas propostas e reflexões.
No que concerne ao marco teórico, será utilizado o método cientifico de análise promovido por Karl Marx, o chamado ‘materialismo histórico’, sendo este fundamentado no método da reprodução ideal do movimento (processo) real, em conformidade com o entendimento do professor José Paulo Netto (2011): “a teoria é o movimento real do objeto transposto para o cérebro do pesquisador – é o real reproduzido e interpretado no plano ideal (do pensamento)”, já para Lênin: “A análise concreta da situação concreta é a alma viva, a essência do marxismo” (NETTO, 2007). Utilizaremos também as categorias fundamentais que são apreendidas da realidade pelo mesmo, como a dialética, buscando um amparo na ideia de que os fenômenos sociais estão interligados em interdependência a um todo social, ou seja, os fenômenos não são partes isoladas do todo que se “autoproduzem” e “autorreproduzem” de maneira independente. Para Engels (2008, p. 91), em sua obra, “Do Socialismo utópico ao socialismo cientifico” o materialismo é conceituado como:
“A concepção materialista da História parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos produtos, é a base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela História, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos Homens em classes ou camadas, é determinada pelo que a sociedade produz e como produz, e pelo modo de trocar os seus produtos.”
Conectando essa concepção com o direito, a política e a filosofia, Engels (2012, p. 21) assevera:
“A classe trabalhadora – despojada da propriedade dos meios de produção […] não pode exprimir plenamente a própria condição de vida na ilusão jurídica da burguesia. Só pode conhecer plenamente essa condição de vida se enxergar a realidade das coisas, sem as coloridas lentes jurídicas. A concepção materialista da história de Marx ajuda a classe trabalhadora a compreender essa condição de vida, demonstrando que todas as representações dos homens – jurídicas, políticas, filosóficas, religiosas etc. – derivam, em última instância, de suas condições econômicas de vida, de seu modo de produzir e trocar os produtos.”
O filósofo Húngaro, Lukács (1965), ao falar sobre a concepção marxista, elucida que esta interpreta o tecido social como uma totalidade interligada e não como fragmentos de fenômenos que não encontram relações uns com os outros, sendo assim, o Direito estaria imbricado com a economia, a política, a cultura etc. Na frase de abertura do ensaio que escreveu sobre Rosa Luxemburgo, o referido autor diz: “É o ponto de vista da totalidade e não a predominância das causas econômicas na explicação da história o que distingue de forma decisiva o marxismo da ciência burguesa” (LUKÁCS, 1965, p. 47 apud NETTO, 2004).
Já o professor Wayne Morrison (2006, p. 295) argumenta que Marx não tem um “corpus teórico” específico sobre o direito: “A compreensão que Marx tem do direito é um subconjunto das abordagens intelectuais gerais da sociedade que ele adotou em diferentes momentos de sua vida”.
Identifica que não há como estudar em Marx questões apenas particulares que estejam à parte de todos os outros elementos sociais, mesmo com cada fenômeno social tendo as suas próprias especificidades, todos eles em algum grau estão interligados Morrison (2006, p. 294):
“A importância de qualquer entidade de estudo particular está no modo como ela se ajusta ao desenvolvimento do todo e o influencia. No caso do direito, assim como no de outros fenômenos sociais, é difícil isolar uma concepção marxista da entidade particular e criar um modelo teórico independente, uma vez que isso isola um aspecto particular do comportamento humano.”
Tendo isto sido posto, analisaremos a questão do Direito entrelaçada com as questões das classes sociais, por meio do entendimento do teórico Karl Marx de que a sociedade capitalista é dividida entre classes e que mediante o sistema da propriedade privada dos meios de produção gera desigualdades sociais, através da lei da acumulação do capital e da extração exploratória de excedente econômico, mais-valia. Partindo-se do “material”, da forma em que o Direito se estabelece concretamente enquanto um instrumento de dominação de classes, e não do seu arcabouço teórico abstrato e dos seus princípios formais, será dada primazia, portanto, à realidade como ela é e não como ela deveria ser, para compreender o fenômeno jurídico em seu “conteúdo”, em sua expressão real e não apenas em sua idealização formal.
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