Coluna Feminismos, por Elizabeth Hernandes
Espíritas à Esquerda é um dos muitos coletivos que ora estão propondo uma renovação no movimento espírita. Dentre os pontos a serem revistos, está o modo como o movimento tradicional trata a condição dos espíritos encarnados como mulheres.
No espiritismo tradicional, a mulher é sempre CIS, no sentido “senso comum” citado por Joana Burigo[1]: “confortable in skin”, traduzido livremente como “confortável na própria pele”. Mas a história é longa e apenas esse termo já rende muita discussão. Segundo Burigo, o “cis” dos estudos de gênero não vem do acrônimo de uma expressão coloquial e sim do prefixo latino que significa “do mesmo lado”, sendo usado em outras esferas da linguagem e não apenas no contexto dos estudos de gênero.
Segundo se percebe nos textos e ações do espiritismo tradicional, uma mulher, além de ter pele de mulher e, supostamente, estar confortável nesta, também deve atender a certos pré-requisitos. A ela é solicitado, por gentileza, que seja esteio –moral, emocional, econômico e quantos esteios se façam necessários– do lar, do ambiente de trabalho, do centro espírita, do condomínio, da comunidade etc. Melhor ainda que seja a imagem da renúncia e do trabalho incansável, preferencialmente não remunerado. Que seja uma personagem abnegada, caridosa, modesta, recatada e silenciosa. A recompensa virá no futuro.
Ocorre que os espíritos encarnam e reencarnam na condição de mulher e parece que essas recompensas nunca chegam ou que o mérito nunca é suficiente. Seria a promessa do Reino válida apenas para quem reencarna no gênero masculino?
Esta coluna vai tratar de assuntos relacionados ao feminismo e ao feminino, na acepção construída por Márcia Tiburi[2]: “O que eu chamo de feminino? A construção dos ideais da masculinidade que pesam sobre as mulheres: maternidade, sensualidade, formas corporais, gênero, gestos, papéis. Eu penso a teoria feminista como um gesto feminista de desconstrução que tem que passar pela desconstrução do feminino. A liberdade real das mulheres –travestis, transhomens e todo mundo– surge desse processo. Por que as pessoas precisam ser femininas? Não precisam. Mas ‘quem’ precisa que outra pessoa seja feminina??? Esta é uma pergunta melhor… Já o feminismo, eu o defendo sempre. E assumo o meu como um desejo de dialogar com o mundo em defesa da singularidade de cada pessoa, no qual estejam inclusas mulheres em sua pluralidade radical.”
É isso. Essa coluna terá como objetivo apresentar artigos, crônicas, poesias, reflexões, questionamentos, entrevistas e o que mais for possível sobre “defesa da singularidade de cada pessoa, no qual estejam inclusas mulheres em sua pluralidade radical.”[2]
Será editada por uma especialista em ser mulher, que se esforça em permanecer do próprio lado.
A ideia surgiu de uma discussão no Coletivo Nacional Espíritas à Esquerda (e como se discute, em coletivo, né?). Entretanto, a pessoa convidada para editar a coluna (esta que ora vos escreve) não tem tempo para abraçar mais uma tarefa. Alguma mulher se identifica com isso?
Ocorre que as questões femininas são tão urgentes e diárias que… a coluna surge assim mesmo, sem tempo. E a urgência do momento foi ditada pela notícia acerca de um “Conselho de Mulheres” de um condomínio de bairro de classe média, em Brasília. Esse “Conselho” enviou correspondência a uma moradora, com uma “solicitação de vestuário apropriado”. O texto pede que a moça não use “vestes que não sejam bermudas ou roupas mais adequadas”. A justificativa é que a vizinha estava fazendo os casais se sentirem constrangidos.[3]
Esta notícia é um berro sobre a necessidade de estudarmos, discutirmos e praticarmos o feminismo.
Talvez alguém proponha uma passeata em frente ao prédio, com muitas mulheres usando shortinho. Talvez haja reações agressivas ou de apoio. O modo de agir dos Espíritas à Esquerda é sempre na linha do mestre Paulo Freire[4] e pode ser passeata quando for possível e decidido coletivamente. As mulheres desse tal “Conselho”, que se arrogam o direito de determinar como uma “outra” mulher deve-se vestir, precisam ser defendidas delas mesmas, em primeiro lugar e a melhor defesa é… estudo, reflexão, diálogo (dialética também, mas isso fica pra outro dia, quem sabe). Então nasce essa coluna: Permitido Usar Shortinho.
É necessário defender as mulheres que usam shortinhos e também as que não usam, pelo menos de dois em dois minutos, tempo médio de registro de agressões que se enquadram na Lei Maria da Penha[5].
Notas.
[1] https://www.cartacapital.com.br/…/mulher-cis-e-a…/
[2] https://revistacult.uol.com.br/…/diferenca-entre…/
[3] https://g1.globo.com/…/vizinhas-mandam-mensagem-para…
[4] https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/…/art…/view/10398
[5] https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia…/