O que fazer?

O que fazer?

Ou uma proposta inicial para encaminhamentos dos “problemas candentes do nosso movimento”[1].

“Ninguém coloca remendo novo em roupa velha; porque o remendo força o tecido da roupa e o rasgo aumenta. Nem se põe vinho novo em odres velhos; se o fizer, os odres rebentarão, o vinho derramará e os odres se estragarão. Mas, põe-se vinho novo em odres novos, e assim ambos ficam conservados.”
Jesus, em Mateus, 9, 16-17.
Em texto anterior foi dito que o “espiritismo precisa tornar-se popular, falar a linguagem do povo, para que não continue a ser essa tolice diletante que hoje cheira a naftalina nas casas e instituições espíritas sem um real objetivo transformador.” Concluindo-se, então, da seguinte forma:
“Um novo movimento espírita, reinventado, repensado a partir daquilo que hoje é apenas latente dentro das obras espíritas, precisa ser libertado das amarras que intentam conservá-lo impotente dentro duma ortodoxia sem frutos, seca, para que alcance seu propósito precípuo: a transformação do homem e da sociedade em que se vive, porque, afinal, o espiritismo é uma ferramenta poderosa de libertação e conscientização.”
Dando continuidade ao tema, e agora focando no aspecto pragmático da práxis espírita progressista, pretende-se, a partir desse novo editorial, propor alguns caminhos à ação.
Primeiramente, deixar claro que essa proposição de novos caminhos ao movimento espírita tem como orientação precípua, como dito acima, o entendimento que “o espiritismo é uma ferramenta poderosa de libertação e conscientização”. Não se pretende propor apenas reformar o movimento espírita, arejando-o com ideias sociais e interpretações políticas, mantendo sua estrutura burguesa e suas instituições carunchosas, pois isso seria apenas remendar a roupa velha. Mas, a partir da compreensão espiritual e material das relações humanas contida nas obras espíritas, transformar a sociedade, as relações de classes e a exploração do trabalho e do homem.
É preciso um novo movimento espírita que se apresente firme e claramente à luta contra todo tipo de exploração, contra todo tipo de discriminação e contra a precarização das condições materiais de vida. Isso significa que novas instituições, com novas práticas, precisam assumir esse papel essencial para a consecução daquilo que foi proposto como transformação da realidade por Jesus e pelos espíritos que auxiliaram Kardec, porque não será possível fazer isso a partir das instituições que hoje, infelizmente, representam esse movimento espírita inócuo e sem serventia.
Portanto, a primeira proposta colocada a partir dessas reflexões é a organização de novos grupos e instituições que se pautem por uma visão transformadora. Mas não aquela transformação puramente individual, que ignora as relações humanas dialéticas, e sim a visão que compreenda que toda transformação humana passa necessariamente pela mudança radical nas relações sociais, porque, afinal, ninguém é capaz de se autotransformar ignorando as condições do contexto em que se insere.
Esses novos grupos e instituições devem ter como objetivo primacial a construção da estratégia de sua inserção na luta pela superação da cruel realidade social existente. Suas reuniões, estudos, conferências e ação social devem ter esse maior propósito colocado como horizonte, como meta à sua atuação, exemplificando o poder revolucionário da filosofia espírita. Afinal, de que adianta decorar perguntas e respostas de livros e não ser capaz de usar esse tipo de conhecimento para transformar a realidade ao seu redor? E transformar não é apenas dar o pão no momento de fome extrema, que também é importante, mas construir uma sociedade em que mulheres e homens não tenham mais que sentir fome.
Muito se ouve e se lê de espíritas progressistas sobre a necessidade de se ocupar espaços espíritas existentes, numa luta inglória e ineficaz para levar seu discurso aos ouvintes de determinada instituição. Entende-se que essa estratégia não traz os resultados necessários por dois motivos principais: a) o público dessas casas espíritas não interessa ao movimento espírita progressista, pois seu foco deve ser o povo, a classe trabalhadora que precisa, além de justas condições materiais de vida, de consciência social e política e de educação; b) as instituições espíritas conservadoras —pois intentam conservar o status quo da realidade— são como roupas velhas, carcomidas, nas quais um remendo qualquer só será capaz de fazê-las rasgar, sem entretanto se as fazer transformar. Seus odres estão velhos e o vinho novo ofertado não terá o condão de os melhorar.
E, indo um pouco além, deve-se abandonar definitivamente tolos escrúpulos e cuidados com as propostas de união ou unificação do movimento espírita. Não interessa a nenhum espírita progressista unificar-se ou unir-se a ninguém para uma luta inconsequente e que não tenha como objetivo claro a transformação da realidade social. Pois se não houver explícito interesse nessa transformação, a omissão pusilânime atuará como resistência a essa proposição, ou seja, “aquele que não está comigo está contra mim; e aquele que comigo não ajunta espalha”[2].
Afinal, não interessa e não basta aos espíritas progressistas apenas compreender a realidade, incluindo-se a condição da imortalidade, mas ser capaz de agir coletivamente para a transformação dessa mesma realidade[3].
Notas:
[1] O título e o subtítulo trazem a clara referência à brochura leninista publicada em 1902 intitulada “Que fazer?: problemas candentes do nosso movimento”, cuja leitura é fortemente recomendada.
[2] Jesus, em Mateus, 12, 30.
[3] Paráfrase da décima-primeira tese sobre Feuerbach, de Karl Marx.