“Reconciliai-vos o mais depressa possível com o vosso adversário, enquanto estais com ele a caminho, para que ele não vos entregue ao juiz, o juiz não vos entregue ao ministro da justiça e não sejais metido em prisão. Digo-vos, em verdade, que daí não saireis, enquanto não houverdes pago o último ceitil.”
(Mateus, 5, 25 e 26.)
Uma grande instituição do movimento espírita brasileiro anunciou mais uma de suas palestras sobre temas comportamentais, temas que ocupam a maior parte do seu calendário proposto para as atividades chamadas “doutrinárias”. O tema em questão era uma abordagem sobre o distanciamento geracional e recomendações genéricas sobre o comportamento esperado de pais e filhos espíritas.
Primeiramente, apenas para contextualização, o distanciamento geracional é imanente aos grupos sociais desde que o homem se entendeu como tal. E isso é um dos motores que fazem as comunidades transformarem-se. É óbvio que esse aspecto social e evolutivo não foi tratado na palestra citada, porque o objetivo das exposições nas grandes instituições do movimento espírita não é levar seus assistentes à reflexão de seu papel social, mas à pura emoção temporária e à comoção evangélica de pouco resultado transformador.
Palestras, congressos e eventos que abordam apenas o aspecto comportamental do indivíduo são de pouca efetividade, porque não são capazes de mexer com o cerne do problema das relações sociais, que se traduz no imenso abismo existente entre os dramas e necessidades daqueles que são capazes de pagar por um caro evento federativo e aqueles que representam a maioria absoluta do povo que é pauperizada e incapaz sequer de alcançar as propostas daquelas falas impolutas, arrogantes e alienadas da realidade social brasileira.
Ao se falar do perdão, por exemplo, a essa minoria social que frequenta as grandes casas espíritas, em vez de se falar da briga miúda com o vizinho ou da última confusão com o familiar próximo, deve-se ressaltar que o maior problema para se solicitar o perdão por essa parcela diferenciada da sociedade é o privilégio econômico e social. Enquanto essa gente come e dorme nas melhores condições, muita gente passa fome e não tem um abrigo minimamente decente para repousar seu corpo cansado, e a culpa é justamente do sistema econômico perverso que explora o trabalhador e impede seu acesso a melhores condições de vida, mantido a partir dos privilégios da classe economicamente mais abastada. E é importante destacar essa relação para que não se argumente a falta de vínculos entre essas situações.
Isso quer dizer que a culpa pela indignidade nas condições da vida do outro é exatamente o privilégio da minoria. Ao se contratar, por exemplo, um trabalhador doméstico e recusar-lhe direitos e dignidade, está-se cometendo não apenas uma infração legal, mas uma injustiça social e moral que exige não apenas o perdão, mas a reparação. Ao se lutar por uma reforma trabalhista, em nome do lucro e do aumento do faturamento, que expõe o trabalhador a toda sorte de inseguranças, incertezas e problemas sociais, assume-se o lado perverso do indivíduo que precisa ser mais bem trabalhado nos espaços do movimento espírita. Ao se apoiar uma reforma previdenciária, vendo-se nela um mero balanço atuarial e econômico, que joga o velho e o incapaz na miséria social, mostra-se toda a crueldade de pessoas que não trazem em si nenhuma humanidade ou empatia com o outro.
E esses problemas, muito maiores, infinitamente maiores em escala e em conteúdo, merecem um foco comparativamente muito maior nas discussões tratadas nas casas espíritas, porque enquanto essa classe distinta que frequenta as instituições espíritas achar que o perdão, por exemplo, refere-se apenas à última discussão na reunião do condomínio, o espiritismo não estará cumprindo seu papel transformador e revolucionário.
Também é por conta desse tipo de discurso anódino e insosso, sem alcance transformador e que encolhe o tamanho das propostas espíritas, que o movimento espírita não consegue expandir-se e adentrar as classes economicamente mais vulneráveis; e qualquer análise estatística dos dados demográficos nacionais mostra essa triste realidade: os espíritas são privilegiados econômica e socialmente.
O movimento espírita precisa levar o discurso potente e transformador do espiritismo aos mais necessitados. Seu foco precisa ser mudado urgentemente dos problemas superficiais e quase pueris dos abastados para a indigência material e social dos desvalidos. O movimento espírita precisa conversar com os pobres, dialogar com os deserdados, ouvir e falar com os abandonados pela sociedade, e não apenas dar-lhes um pão eventual que apenas sacia a fome de sentido de vida dos exploradores. O espiritismo precisa tornar-se popular, falar a linguagem do povo, para que não continue a ser essa tolice diletante que hoje cheira a naftalina nas casas e instituições espíritas sem um real objetivo transformador.
Um novo movimento espírita, reinventado, repensado a partir daquilo que hoje é apenas latente dentro das obras espíritas, precisa ser libertado das amarras que intentam conservá-lo impotente dentro duma ortodoxia sem frutos, seca, para que alcance seu propósito precípuo: a transformação do homem e da sociedade em que se vive, porque, afinal, o espiritismo é uma ferramenta poderosa de libertação e conscientização.
Afinal, “os sãos não precisam de médicos”…