Suicídio não é ter razão; é ter sentido.

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Foto Ben Blennerhassett/Unsplash

Por Marcia Costa – EàE-DF

“Em geral, aqueles que se arrojam ao suicídio esperam livrar-se para sempre de dissabores julgados insuportáveis, de sofrimentos e problemas insolúveis pela tibiez da vontade descuidada […]”.
“Memórias de um suicida”, psicografia de Yvonne Pereira, ditado pelo espírito Camilo

“Suicídio não é ter razão; é ter sentido. É um ato de controle sobre o corpo. Autocontrole, se conduzido voluntariamente. Controlado por outro, se um ato de coerção ou homicídio dissimulado.”
“Eleanor Marx: uma história”, de Rachel Holmes

A existência física é o desafio do espírito diante das contradições do mundo. E nós, espíritas, sempre fomos “doutrinados” a aceitar de forma acrítica que reencarnamos para experimentar a dor e o sofrimento, como se a proposta divina da reencarnação devesse ser um campeonato na qual aqueles que mais se mortificam (ou são mortificados) são candidatos aos prazeres espirituais no pós-vida. Declaram os espíritos na resposta à questão 259 de “O livro dos espíritos”i que escolhemos o roteiro de nossa jornada, deixando as demais ocorrências na dinâmica das relações com pessoas e instituições. Não há fatalidade, mas a livre escolha dos caminhos a seguir na transformação espiritual. Mas somos realmente livres para escolher como caminhar em nossa existência?

Foto Ben Blennerhassett/Unsplash

Cada momento da história da humanidade traz em si contextos pré-determinados para a existência que variam de acordo com o lugar geográfico, cultura, gênero, raça e, principalmente, sistema econômico. Há tempos instalou-se em nosso planeta de forma hegemônica (mas não sem luta) o sistema capitalista que, tal como a fábula do Rei Midas, a tudo vem transformando em mercadoria: arroz, feijão, alface, televisão, sexo, prazer, arte, cultura, felicidade, trabalho, fé, vida. A existência se transforma em valor determinado pela capacidade de produzir em condições que estão aquém da capacidade individual de escolha. Esse mesmo sistema cria um catálogo de pessoas, separando-as em caixas em que são medidas pela sua utilidade e função em produzir essas mesmas mercadorias, estabelecendo em qual lugar cada ser humano deve estar na sociedade a partir de ideologias conservadoras de ordem social, política e religiosa. Mas, ainda assim, o espírito –o ser que sobrevive à morte– busca sentido para continuar seu percurso na vida, envolto nessa contradição entre a opressão material e o direito espiritual a uma existência em que lhe seja garantida a dignidade para contribuir na construção do Reino de Deus.

Nessa condição de oprimidos encontramos bilhões de almas espalhadas por todo o planeta e, no Brasil, é possível destacar que pessoas negras, indígenas e LGBTI são aquelas submetidas a um fardo que vem sendo erroneamente atribuído, por diversas correntes espíritas, às suas escolhas ao reencarnar ou a um pretenso castigo devido a faltas passadas. Ainda que se pressuponha o conhecimento prévio das condições, conforme questão 264 de “O livro dos espíritos”ii a encarnação não é um destino absoluto, mas uma proposta na qual existe um compromisso de todas as individualidades que aqui reencarnam em praticar a lei de Deus e construir uma ordem social fundada na justiça e na solidariedade.

Por isso, espíritas, é preciso superar o pensamento de que o suicida é um espírito em desequilíbrio, obsidiado, egoísta, “que não têm a coragem de suportar as misérias da existência”… Somos, enquanto sociedade, responsáveis pela decisão desesperada de quem não teve o fundamental apoio para garantir a continuidade de sua existência, em níveis indispensáveis à manutenção da vida, seja sob o aspecto material, social ou psicológico.

Não faltam estudos acadêmicos que demonstram que em diversas etnias indígenas o suicídio é determinado por fatores de risco como pobreza, baixos indicadores de bem-estar, desintegração das famílias, vulnerabilidade social, falta de sentido de vida e futuro, em decorrência de reassentamento e realocação das terras. E todas essas condições são dadas pela apropriação das terras indígenas por mineradoras e agronegócio, para expansão de suas atividades econômicas, provocando a dificuldade de sobrevivência e existência dos povos originários.

A professora doutora Jeane S. Campos Tavares destaca que: “quando o terapeuta não reconhece o racismo como produtor de iniquidades sociais, preconceito e discriminação, contribui para aumento de sofrimento psíquico de seu paciente negro e para a manutenção das desigualdades raciaisiii”. E esse sofrimento é provocado pela racialização da força de trabalho com o único objetivo de multiplicar a exploração desses seres humanos submetendo-os a condições de trabalho degradantes e desumanas, sem deixar de mencionar a violência estrutural que estimula agressões físicas e psicológicas e até mesmo o assassinato de pessoas negras. Portanto, não causa admiração que em 2016 o Ministério da Saúde tenha registrado que o risco de um jovem negro cometer suicídio foi de 45%iv.

Os LGBTI, assim como as mulheres, também estão sob influência de uma sociedade patriarcal que pretende controlar seus corpos e sexualidade. Caminhando nesses limites existenciais criados para estabelecer o padrão heteronormativo que permite o suporte à estrutura capitalista da família tradicional, estão submetidos ao preconceito e à exclusão social em ruas, escolas, universidades e locais de trabalho. Vivem a cada instante a realidade do medo por não ter proteção para ser quem são e relacionarem-se com quem escolhem. Segundo o psiquiatra Bruno Branquinho, jovens LGBTI pensam três vezes mais em suicídio que cisgêneros heterossexuais e têm cinco vezes mais chances de colocar a ideia em práticav.

Espíritas, antes de atribuir seus julgamentos cruéis baseados no conceito “só os fortes sobrevivem”, observemos as condições em que a existência se descerra, não apenas no plano individual, mas também no contexto coletivo em seu aspecto social, cultural e econômico. São almas que, na absoluta situação de abandono social, psicológico e material, decidem por terminar a vida física em que a dor e o sofrimento atingem níveis insuportáveis. Nenhum espírito vem à experiência física para ser torturado a pretexto de ser fundamental à sua evolução. O suicídio não é a causa da falência moral do espírito, mas a consequência de uma sociedade na qual cada vez mais as forças econômicas trabalham para impedir que o existir seja a oportunidade de transformação do ser. Precisamos acolher nossos semelhantes e lutar a cada instante para que a Terra seja um lugar de desafio para o desenvolvimento do espírito e não para a sobrevivência e expansão das desigualdades criadas por sistemas humanos de expropriação das condições materiais da existência.

Marcia Costa, espírita que um dia, diante de muita dor e sofrimento, quis cometer suicídio.

Referêcias:

i 259. Do fato de pertencer ao espírito a escolha do gênero de provas que deva sofrer, seguir-se-á que todas as tribulações que experimentamos na vida nós as previmos e escolhemos?

Todas, não, porque não escolhestes e previstes tudo o que vos sucede no mundo, até às mínimas coisas. Escolhestes apenas o gênero das provações. As particularidades são a consequência da posição em que vos achais e, muitas vezes, das vossas próprias ações.”

ii 264. Que é o que dirige o espírito na escolha das provas que queira sofrer?

Ele escolhe, de acordo com a natureza de suas faltas, as que o levem à expiação destas e a progredir mais depressa. Uns, podem, portanto, impor a si mesmos uma vida de misérias e privações, objetivando suportá-las com coragem; outros preferem experimentar as tentações da riqueza e do poder, muito mais perigosas, pelos abusos e má aplicação a que podem dar lugar, bem como pelas paixões inferiores que uma e outro desenvolvem; outros, finalmente, se decidem a experimentar suas forças nas lutas que terão de sustentar em contato com o vício.”

iii Manejo Clínico das Repercussões do Racismo entre Mulheres que se “Tornaram Negras”. Disponível em https://www.scielo.br/j/pcp/a/PS556GX8mQ7CgwwzvbVgYts/abstract/?lang=pt.

iv Jovens negros são maioria em casos de suicídio no Brasil, disponível em https://www.cartacapital.com.br/sociedade/jovens-negros-sao-maioria-em-casos-de-suicidio-no-brasil/. Acesso em 16/9/2021.

v Suicídio da população LGBT: precisamos falar e escutar. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/blogs/suicidio-da-populacao-lgbt-precisamos-falar-e-escutar. Acesso em 16/9/2021.

 

1 COMENTÁRIO

  1. Encarnamos na Terra, mundo de provas e expiações. Aqui não viemos aqui a passeio, apesar de vivenciarmos momentos de felicidade. A energia que existe aqui é coerente com o nivel de evolucão e nivel vibratorio dos encarnados e desencarnados que aqui habitam. E se aqui estamos, aqui deveriamos ter encarnado. A doutrina espirita é muito clara sobre a importância da vida e os prejuìzos que o suicidio trazem. Ter empatia pelo sofrimento de irmãos e lutar por um mundo melhor é no mínimo obrigação dos espíritas. Mas a postura de vitimismo nunca trará beneficios para ninguém nem deverá ser justificativa para minimizar as consequências nefastas que o suicidio causa no espirito.

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