Boa parte da teoria e da prática espírita tradicional se apóia na frase de Allan Kardec que afirma que “fora da caridade não há salvação”. A frase, em geral, é interpretada fora de seu contexto de oposição à máxima católica “fora da igreja não há salvação” e dá à caridade dimensões que podem ganhar contornos, pelo menos, incongruentes com a ideia kardequiana.
Um exemplo do mau entendimento do termo caridade gritou na palestra de Carlos Baccelli, transmitida online no dia 6 de junho de 2021 pela CESDA (Casa Espírita Seara do Divino Amigo)[1], da cidade de Sacramento, MG, e cujo tema foi justamente “Fora da caridade não há salvação”. O orador afirma que a pobreza favorece “uma bênção, a oportunidade de trabalhar, a oportunidade de servir”. O contexto que ele apresenta é de um suposto grupo de espíritas brasileiros residentes no Canadá que, segundo o palestrante, não pode fazer caridade porque “o governo cuida de tudo, não há fome, não há pessoas na miséria”.
A fala mansa de Baccelli fala muito da concepção hegemônica no espiritismo tradicional no que se refere à prática de caridade. A palavra é aprisionada pela noção de assistencialismo e apoio material que pressupõe que haja sempre um necessitado e um abonado, instrumentalizada por suas posses a realizar a caridade.
Esta visão estreita e limitada condiciona a prática de caridade à existência de desigualdade, na qual inclusive a possibilidade de desenvolvimento espiritual pelo exercício da caridade é privilégio de quem tem posses materiais. Aos necessitados restaria o crescimento pelo sofrimento? O altruísmo é restrito a quem tem posses?
Os filiados a essa concepção cínica de caridade com certeza não leram, ignoraram ou não compreenderam o que o próprio Kardec diz em “O livro dos espíritos”, na questão 930: “Numa sociedade organizada segundo a lei de Cristo ninguém deve morrer de fome”.
A aceitação da desigualdade e a interpretação da miséria como “bênção” não é apenas a negação de tudo o que professa o evangelho de Jesus, mas no caso em questão uma apropriação do sofrimento alheio como trampolim para o regozijo da sua alma supostamente caridosa. Mas verdadeiros cristãos entenderiam as palavras do palestrante como tripudiantes em relação ao outro.
Esta “caridade” vertical se revela como arrogante e dissimula a falta de compaixão efetiva, de empatia real, de solidariedade e fraternidade. Antes roga pela existência do infortúnio alheio para que possa desenvolver sua meritocracia espiritual.
A questão 806 de “O livro dos espíritos” é assertiva ao dizer que a desigualdade não é natural, muito menos divina. “É lei da natureza a desigualdade das condições sociais?”, indaga Kardec aos espíritos, que lhe respondem sem possibilidade de dupla interpretação: “Não: é obra do homem e não de Deus”.
A caridade legítima é a que se nutre da compaixão, da solidariedade e da empatia. É a que se movimenta pelo desejo de ver o bem do irmão por meio da libertação efetiva das privações. Fora disso, é tudo demagogia, arrogância e exercício de suposta superioridade.
Caridosos são os que lutam contra a desigualdade, pela libertação, pela consciência do direito à igualdade. Caridosos são os que lutam por sociedades igualitárias. São os que auxiliam quem quer que seja sem juízo moral de “merecimento”. Caridoso é quem liberta da fome, da ignorância e das discriminações.
Que Deus perdoe os que veem no sofrimento alheio uma oportunidade para sua expiação pessoal.
Nota:
[1] https://youtu.be/GWLGRiF5Ru8
Caridade lugar pelo bem estar social
Para muitos a caridade é para acalentar o meu coração. Mas se o filhx dx empregadx precisa estudar, eu não ajudo. Este é o pensamento de muitos, ajudo a você a continuar no mesmo lugar de sempre, se vc sair deste lugar, como eu irei fazer a minha caridade??
Devemos lutar!
É isso mesmo, e ainda dizem que é carma, que é preciso ser resignado.
Ou seja, ainda te enchem de culpas por tentar sair da situação em que se encontra.
Mas gente!! Desde quando a manutenção pobreza é necessária??
E que espíritas são esses no Canadá que não veem pobreza? Em 2020-21 até as bibliotecas viraram bancos de alimentos porque uma quantidade imensa de pessoas estava passando fome. A diferença é que aqui no Canadá existe um senso de comunidade extremamente forte que quase não existe no Brasil (até porque as ditaduras proibiram que a sociedade se organizasse dessa forma), um senso de responsabilidade coletiva. Mesmo quando há menos pobreza, não faltam oportunidades de oferecer tempo e recursos a projetos comunitários e de justiça social. Pra se formar no ensino médio, os adolescentes precisam devotar tempo a algum desses projetos (com aprovação e supervisão da autoridade escolar, por segurança).
Que vergonha essa fala de Baccelli!