Sororidade e outras palavras difíceis

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Feminismos com Elizabeth Hernandes (EàE-DF)

A mulher negra caminhava rápido em direção à portaria do condomínio. Era sábado, quase sete da noite e sabe Deus quando passaria um ônibus porque estamos em Brasília. O sistema de transporte público da Capital é rigorosamente planejado para facilitar a atividade dos estupradores: poucos veículos e muitos pontos desertos cercados de cerrado, principalmente nos bairros “nobres”, onde as casas são iluminadas e as ruas escuras.

Toca o celular. Ela hesita em atender. Deve ser o marido querendo saber do jantar. Melhor chegar logo na parada e esperar a sorte de passar ônibus para a Rodoviária do Plano Piloto. Melhor não perder tempo se explicando. Para não exibir o telefone novo lá no ponto de ônibus, resolve desligar e vê que não é o marido. É a nova cliente, cuja casa acabara de deixar. “Ôxi! O que será que essa mulher ainda quer?“

– Ketlin[1], onde você está?

Ela se assusta, pois a mulher (que foi educada e gentil o dia todo) falou alto, pareceu nervosa.

– Tô indo pra parada, mas ainda tô aqui dentro, perto daqueles aparelho de malhar.
– Mas eu não te disse que te levaria até a Rodoviária, mulher?!
– Mas eu achei que já tava muito tarde… não quis incomodar… não vi a senhora se arrumar pra sair.
– E porque eu me arrumaria para te levar até a Rodoviária, criatura?
– Mas eu achei que a senhora fosse sair pra outro lugar e me dar carona, que era caminho…
– Ketlin, fica parada aí, agora, nesse banco perto dos aparelhos. Tô indo aí. Não saia porque nem vão te liberar na portaria.
– Mas o que aconteceu, Dona Márcia?
– Te falo já, me espera.

“Agora lascou! Será que sumiu alguma coisa e ela pensa que fui eu?”

Em dois minutos a mulher branca para o carro e já vai falando.

– Criatura, como assim você sai sem me falar nada?!
– Mas Dona Márcia, eu me enrolei porque ainda não conhecia direito o jeito da sua casa e aí ficou tarde. É assim mesmo no primeiro dia. Eu esqueci de fazer alguma coisa? A senhora tava lá no computador e eu pensei: bom, acho que ela não vai mais sair. E resolvi tomar logo meu rumo porque nem sei o horário dos ônibus por aqui.
– Mas eu não falei que ia te levar?!
– Pensei que a senhora tinha esquecido, que tinha desistido de sair. E a culpa do atraso no serviço foi minha.

O carro segue entre as ruas do bairro de alto IDH, muito agradável para quem tem carro, muro, porteiro e segurança, na capital do Brasil, zil, zil.

As duas mulheres conversam sobre tudo e nada, enquanto o veículo avança na escuridão de Brasília, conhecida apenas dos que se locomovem a pé ou de ônibus.

– Dona Márcia, se a senhora não vai sair, por que está me levando até essa lonjura da Rodoviária?
– Porque ficou tarde e lá é mais seguro e tem mais ônibus.
– Mas a culpa foi minha, dona Márcia, eu que me enrolei.
– Ketlin… você conhece a palavra sororidade?

Agora a branca tava calma e sorridente de novo.

– Solidariedade?
– Não. So-ro-ri-da-de.

Ketlin tenta repetir, mas não acerta.

– Mas solidariedade, você sabe o que é, né?
– Sim, é quando as pessoa ajuda as outra.
– Então. Sororidade é um tipo de solidariedade que uma mulher presta a outra pelo fato de ambas serem mulheres.
– Tipo me levar na Rodoviária?

Agora Ketlin está descontraída.

– Sim. Como eu também sou mulher, sei que é muito inseguro para todos ficar naquela parada a essa hora, mas é ainda mais inseguro para as mulheres.
– É perigoso mesmo, dona Márcia. Minha vizinha foi assaltada aqui perto, numa parada do Lago Sul. Perdeu o salário todinho mas graças a Deus que não aconteceu o pior. Mas Dona Márcia, a senhora não anda de ônibus, por que tem medo das paradas?
– Porque eu leio as notícias, eu também conheço as estatísticas e a subnotificação. Como eu também sou mulher, sei que esse “pior” acontece nas paradas de ônibus e em todo lugar, até dentro de casa. Então a gente tem que diminuir a probabilidade. Sororidade é isso: quando uma mulher ajuda outra porque sabe que tem alguns problemas, alguns “piores” que só acontecem com a gente porque a gente é mulher.
– Eu tô entendendo o que a senhora tá falando mas olha, é muita palavra difícil… estatística, “soloridade”… Ah, dona Márcia. Eu vi que o PIX já caiu, mas a senhora errou e transferiu a mais. Posso descontar na próxima diária? Na próxima a senhora deposita só metade, pode ser?
– Não, Ketlin, você não tem que devolver. Você trabalhou a mais e eu ajustei o valor.
– Há, há, há, não! Comigo é tudo certinho e a culpa foi minha. Mas eu gostei dessa “soloridade”!
– Não, Ketlin, pagar mais porque você trabalhou mais não é sororidade.
– E o que é?
– Capitalismo.
– Eita, dona Márcia. Vou tê que aprender muita palavra pra trabalhar com a senhora! Mas agora não vou mais perguntar porque se eu correr eu pego o das 7:30 e chego em casa na mesma hora que eu ia chegar se tivesse pego dois ônibus. Sábado que vem a senhora me explica o que é capitalismo. Tem a ver com comunismo, né?
– Bom… Agora sou eu quem vai ter de pensar sobre a associação que você fez. Mas no sábado eu te respondo.

Ketlin corre escada acima pra não perder o ônibus de sete e quinze: “gostei dessa dona.”

Qualquer semelhança com a realidade, não é coincidência. É estatística, probabilidade, análise de dados e, também, pontos fora da curva[2][3].

Notas:

[1] Os nomes das personagens são fictícios.

[2] Tokarski, Carolina. Pinheiro, Luana. Trabalho Doméstico Remunerado e Covid-19: aprofundamento das vulnerabilidades em uma ocupação precarizada. Boletim de Análise Político-Institucional nº 26. IPEA, março 2021. Disponível em https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/boletim_analise_politico/210304_bapi_26_artigo_6.pdf

[3] IPEA. Tendências e desigualdades da mobilidade urbana no brasil i: o uso do transporte coletivo e individual. Texto para Discussão N. 2.673. Rio de janeiro, Jul/2021. Disponível em https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/210803_td_2673.pdf

4 COMENTÁRIOS

  1. Beth maravilhosa!

    Acontece muito aqui em casa. Toda quarta-feira eu chego mais tarde do trabalho, e o nosso anjo retorna de Uber para casa. Não sei dirigir, então o Uber foi a solução.

    Gostaria que outras famílias e empresas tivessem esse cuidado com o funcionário.

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