Do átomo ao arcanjo

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Releituras kardecistas –  Marcio Sales Saraiva

Os espíritos foram criados “simples e ignorantes” ou “sem saber”. Eles crescem gradualmente até chegarem “progressivamente à perfeição”, através do “conhecimento da verdade” que brota das experiências múltiplas.

Esta é a síntese da evolução pessoal que os espíritos apresentam para Allan Kardec na questão 115, em O livro dos espíritos. Nada se diz sobre a tal “reforma íntima”. A questão é viver, experienciar, aprender e crescer, amadurecer, até chegar à plenitude de si mesmo. Esta é a concepção espírita, sem firulas ou misticismos.

Em outras palavras, podemos dizer que o espiritismo é universalista quando analisa a salvação-redenção dos indivíduos. Isso quer dizer que ninguém será condenado ao “inferno eterno” e, portanto, todos os espíritos “se tornarão perfeitos” um dia, pois “um pai justo e misericordioso não pode banir eternamente seus filhos” (questão 116), tal como pregam algumas religiões, especialmente as de matriz judaico-cristã.

É claro que o ritmo de amadurecimento e plenitude é pessoalíssimo. Cada espírito chegará ao ápice de seu desenvolvimento cognitivo e moral no tempo que for necessário, através de uma longa jornada por diversas encarnações. Alguns já alcançaram esta plenitude, outros ainda caminham com dificuldades, alguns estão parados na estrada faz tempo, mas nenhum espírito retrograda (questão 118). Ou seja, de acordo com o kardecismo, todos os espíritos crescem em ritmo variado, alguns podem até estacionar por algum tempo, mas nenhum poderá retroceder, pois isto feriria a lei natural de progresso contínuo.

Quando olhamos para o mundo, é fácil identificar espíritos reencarnados fazendo o mal, destruindo políticas sociais, ampliando o desemprego, espalhando o armamentismo, ampliando a fome e a desigualdade, agindo com egoísmo, perversidade e má-fé. Os espíritos dizem para Kardec que tais ações malignas nada têm com a criação divina, ou seja, “Deus não criou espíritos maus”, mas estes se tornaram maus “por sua vontade” (questão 121) e é sobre isso a alegoria da queda adâmica (questão 122).

Aí está a lei de liberdade. Os espíritos, encarnados ou desencarnados, podem escolher o caminho do mal e abandalharem-se. Deus, como mecanismo causal-criador, nada faz para intervir ou impedir, porém, de acordo com as leis cósmicas criadas pela causa primária, todo o mal feito irá retornar para quem o fez. Não por vingança, mas por conta de um mecanismo natural chamado lei de causa e efeito. Recebemos o que fazemos, sempre! E assim o mundo se autoajusta.

Nesta grande marcha ascensional, chamada por Pietro Ubaldi de “retorno ao sistema”, encontraremos espíritos que desde o início caminharam pela estrada íngreme do bem, outros pegaram o atalho do mal, mas todos estão envolvidos pela lei de progresso, todos estão em processo de aperfeiçoamento contínuo e dia chegará em que todos os espíritos chegarão à comunhão plena com a luz de Deus, à maturidade cognitiva-moral, ao estado de espíritos puros ou “anjos”, para usar uma imagem muito comum ao campo religioso.

Diz o Novo testamento que “Deus enviou o seu filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele” (João 3:17). A ideia de que Jesus é o salvador do mundo inteiro e de que todas as coisas estarão reconciliadas com a divindade, com a causa primária, foi chamada de “apocatástase” e defendida por um dos grandes pais da igreja, Orígenes de Alexandria. O que o espiritismo kardequiano faz é atualizar a linguagem e a compreensão da salvação universal (apocatástase) através de uma longa jornada do espírito pela reencarnação.

Com o espiritismo, as tenebrosas ideias de “inferno eterno” ou de “juízo de Deus” baseadas em uma única existência foram desconstruídas. No lugar disso, o pensamento kardequiano nos ensina que somos espíritos em processo evolutivo, caminhando na direção do infinito, errando e acertando, mas sempre crescendo. E que um dia chegaremos à plenitude de nós mesmos, sempre julgados pela nossa própria consciência. Dizem os bons espíritos para Kardec (questão 540):

É assim que tudo serve, que tudo se encadeia na natureza, desde o átomo primitivo até o arcanjo, que também começou por ser átomo. Admirável lei de harmonia, que o vosso acanhado espírito ainda não pôde apreender em seu conjunto!

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