É preciso enfrentar a teocracia

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Achou no templo os que vendiam bois, ovelhas e pombas, e também os cambistas sentados; e tendo feito um chicote de cordas, expulsou a todos do templo, as ovelhas bem como os bois, derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou as mesas e disse aos que vendiam as pombas: Tirai daqui estas coisas; não façais da casa de meu Pai uma casa de negócio.

Relato sobre Jesus em João, 2, 14-16.

Esse é um dos raros fatos sobre a vida de Jesus relatado em todos os 4 evangelhos neotestamentários, portanto, um dos mais críveis e passíveis de reflexão profunda.

Esse trecho serve para se pensar sobre o que o bolsonarismo tem feito com a fé das pessoas, transformando-a em objeto de negócios privados, de ódio contra as diferenças e de manipulação política com projetos totalitários.

Têm-se visto em vídeos pelas redes sociais, cultos religiosos serem invadidos por fanáticos dessa seita para impedir que líderes façam preleções sobre a fé de seu público. Com gritos e discursos raivosos, essa estranha gente se acha no direito de impor sua visão totalitária e fundamentalista a casas e líderes da fé. Interrompem cultos, impedem seu prosseguimento e agridem pessoas que, para elas, não atendem a seus requisitos de propagação do ódio e da mentira.

Não se pode ceder a esses fanáticos iracundos. Eles devem ser enfrentados na forma adequada, pois o que fazem é crime previsto no Código Penal brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940) que, em seu art. 208, prevê:

Art. 208. Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:

Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa.

Parágrafo único. Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.

Portanto, é preciso denunciar às autoridades competentes o que esses criminosos fazem nas casas religiosas, pois só assim eles serão detidos em sua fúria dogmática, antidemocrática e criminosa.

Não tomar as devidas providências legais e administrativas é ceder ao lento processo de instalação da teocracia fundamentalista bolsonarenta, que, pouco a pouco, diante dos medos e recuos da maioria, impõe sua forma autoritária de pensar, de agir e de crer.

No livro intitulado “The handmaid’s tale”, lançado em 1985, cujo título em português é “O conto de aia”, que se tornou famoso após ser transformado em série televisiva em 2017, a escritora canadense Margaret Atwood mostra, num futuro distópico, um governo totalitário –a República de Gilead–, que é uma teocracia fundamentalista cristã, militarizada, hierarquizada e dividida em castas, nas quais as mulheres são brutalmente subjugadas e, por lei, não têm permissão para trabalhar, possuir propriedades, controlar dinheiro ou até mesmo ler.

Numa das cenas iniciais dessa trágica história, a personagem principal, a aia Offred, lembra de momentos anteriores à mudança de regime, quando via, com suas amigas, as violências ocorrerem na frente de todos, as pessoas sendo impedidas em seus direitos e as manifestações sendo coibidas por fanáticos cheios de ódio, e tudo isso sem que houvesse reação da sociedade civilizada, e, numa fala profética, diz: “como vimos isso acontecer na nossa frente e nada fizemos?”.

É por isso, sob o risco de se ser cúmplice, que não se pode calar diante da barbárie fundamentalista cristã que, antes comedida, coloca-se, sem constrangimentos, como a ponta que rompe as barreiras civilizatórias e impõe o ódio e a perseguição como normas sociais toleradas.

Não, não se pode calar diante dessa tragédia social. E esses bárbaros contemporâneos, essa horda de ódio e horror, só serão detidos em seu insano projeto autoritário se a sociedade não se calar e reagir.

Há instrumentos legais e institucionais para contê-los em sua ira nada santa, e é preciso usá-los. Usá-los sem parcimônia, denunciando ao Ministério Público, fazendo ocorrências policiais e promovendo ações judiciais que coloquem freios nessa barbárie bolsonarenta. Mas é preciso também que progressistas se organizem em manifestações, grupos, associações, partidos etc. para mostrar que a liberdade e a laicidade são valores inegociáveis. Esse é o chicote social que derrubará esses projetos teocráticos e expulsará essa estranha gente do convívio social, tal qual Jesus o fez com os que deturpavam e usavam a fé para conquistar poder e riquezas.

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