Entre o vazio e a multidão: o simulacro do cuidado nas gerações contemporâneas

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Imagem gerada por Inteligência Artificial

Arley Haley Faria – EàE Minas Gerais

Há algo desconcertante nas formas contemporâneas de demonstrar cuidado. Em um mundo marcado por ausências afetivas, vínculos frágeis e relações mediadas por telas, surgem alternativas que tentam suprir o afeto real com simulacros: bonecos que substituem bebês, títulos que substituem relações. A carência não desaparece, ela apenas muda de roupa. Multiplicam-se os gestos que imitam a intimidade, mas não a vivem. Cada vez mais, o afeto se transforma em performance, algo que se representa, se posta, se institucionaliza, mas raramente se sustenta na concretude do cotidiano. Não se trata apenas de encenações isoladas, mas de uma lógica social mais ampla, que lembra o que Jean Baudrillard chamava de simulacro: uma representação que substitui a realidade e passa a valer mais do que ela. Nesse cenário, dois fenômenos, à primeira vista díspares, chamam atenção: a adoção de bebês reborn por adultos e o legado de Divaldo Franco, líder espírita que fez sua passagem recentemente, que se apresentava como pai de mais de 650 filhos. Em ambos os casos, o que está em jogo não é apenas o gesto de cuidado, mas sua transformação em símbolo e os limites éticos e políticos dessa transformação.

Os bebês reborn são, em sua essência, bonecos, mas não qualquer boneco. São minuciosamente esculpidos para parecerem recém-nascidos reais: pele manchada, peso idêntico, respiração simulada, até mesmo batimentos cardíacos falsos. Quem os adota, em geral mulheres adultas, não busca apenas uma lembrança estética da infância ou da maternidade, mas uma relação segura, previsível, muitas vezes como resposta a perdas, à solidão ou a um desejo de nutrição afetiva em um formato totalmente controlável. Alimenta-se neles uma fantasia afetiva que remete à função materna, mas sem os elementos imprevisíveis e exaustivos da maternidade real. O reborn não demanda, não chora, não frustra. É a maternidade esvaziada de seus conflitos, reduzida à superfície da ternura. Em vez da criança viva, o objeto. Em vez da presença dinâmica, o controle absoluto. Talvez esse fenômeno diga menos sobre uma excentricidade individual e mais sobre a forma como a sociedade contemporânea prefere substituir relações densas por simulações silenciosas, limpas, confortáveis, mas profundamente solitárias.

No outro extremo da afetividade simulada está Divaldo Franco, cuja desencarne recente reacendeu debates sobre sua extensa obra filantrópica e seu carisma espiritual. Apresentado por muitos como um modelo de altruísmo, Divaldo afirmava ter adotado mais de 650 pessoas ao longo da vida, chamando-se pai de cada uma delas. A grandeza do número impressiona, mas também inquieta. O que significa ser pai de centenas? Em que medida a paternidade, quando multiplicada a esse ponto, ainda é paternidade? A palavra pai carrega consigo o peso da presença, da escuta, da partilha diária. Quando se estende demais, corre o risco de se esvaziar, tornando-se mais um gesto simbólico do que uma prática concreta. Não se trata de negar os benefícios materiais e emocionais gerados por sua atuação, mas de reconhecer o risco de transformar o cuidado em espetáculo, uma generosidade mais proclamada do que vivida, que talvez diga mais sobre o benfeitor do que sobre os supostos filhos.

É preciso olhar com atenção para a caridade quando ela deixa de ser gesto íntimo e silencioso e se converte em estrutura, nome, patrimônio. A história de Divaldo, como a de tantos outros líderes religiosos e filantropos notórios, revela que a caridade também pode ser um caminho de acesso ao mundo: à política, aos salões, aos holofotes. Em nome do amor ao próximo, abre-se espaço para o trânsito entre esferas de poder que, em outros contextos, estariam vedadas a um funcionário público comum. O benfeitor se transforma em celebridade moral. Suas palavras passam a ser tomadas como verdade, sua figura como intocável, sua causa como incontestável. Desde as Santas Casas coloniais até as megaigrejas contemporâneas, a caridade já foi muitas vezes menos um gesto de compaixão e mais um instrumento de controle social, blindagem fiscal ou capital eleitoral. Quando isso acontece, o cuidado se converte em moeda, e o afeto, em imagem. A caridade, então, deixa de ser relação e torna-se instituição. E em vez de se manter como contracorrente crítica, acomoda-se no conforto da conivência.

A filantropia, quando atrelada à sustentação de grandes estruturas, raramente é neutra. Ela precisa de aliados, favores, permissões. No caso de Divaldo, sua proximidade com o bolsonarismo não foi um desvio pontual, mas uma escolha reiterada e profundamente reveladora. Ao endossar, ainda que suavemente, um projeto político marcado por ataques aos direitos humanos, ao meio ambiente, à ciência e aos mais vulneráveis, ele cruzou uma linha tênue entre o humanismo espiritual e a conveniência institucional. Não se pode pregar amor universal e, ao mesmo tempo, silenciar diante de discursos de ódio ou se alinhar a quem despreza o outro. O amor que não denuncia a violência é apenas uma paz covarde, disfarçada de tolerância. Essa aliança não foi gratuita. O apoio de setores conservadores garantiu a continuidade de suas obras, a circulação de suas ideias, a blindagem moral de sua figura. Mas esse pacto cobra um preço alto: o da omissão diante da barbárie, o da paz aparente construída sobre o sofrimento ignorado.

Há, nesse tipo de escolha, uma retórica de bondade que muitas vezes serve para evitar conflitos. Fala-se em amar a todos, em acolher indistintamente, mas esse tom de voz sereno, universalista, também pode ser o abrigo perfeito para quem deseja se esquivar de posicionamentos difíceis. Não é raro ver, por trás de discursos pacifistas, uma recusa em nomear a violência. Como se o amor, em vez de exigir coragem, bastasse como decoração moral. E assim, o gesto que aparenta grandeza revela, por vezes, sua natureza tática: proteger obras, preservar acesso, evitar atrito com quem manda.

Uma mulher embala seu bebê de silicone em silêncio. Um homem se apresenta como pai de centenas em público. Ambos tocam, com mãos diferentes, a mesma ferida: a dificuldade de sustentar vínculos reais. Apesar das diferenças evidentes entre o bebê reborn e o pai de 650 filhos, ambos revelam a mesma operação simbólica: a troca da relação viva por uma representação emocional confortável. No primeiro, temos um objeto que simula uma criança, mas que jamais tensiona ou demanda. No segundo, um título que simula a paternidade, mas que não carrega as exigências íntimas da presença cotidiana. São formas distintas de encenação do cuidado, uma no plano individual, outra no coletivo, que respondem a um mesmo sintoma: o desejo de manter o afeto sob controle, sem se expor ao risco da convivência. Em vez do vínculo, o gesto. Em vez do encontro, a performance. Em vez do conflito que transforma, a zona de conforto simbólica. O que se oferece, em ambos os casos, é a aparência do cuidado, polida, previsível, protegida… enquanto o contato real, com suas dores, limites e potências, é deixado de lado.

Cuidar de verdade é um gesto imperfeito. Exige presença quando se está cansado, escuta quando se tem pressa, conflito quando o silêncio seria mais confortável. Por isso, é compreensível que a sociedade busque refúgios: bonecos obedientes ou paternidades difusas que confortam sem incomodar. Mas é preciso reconhecer que o afeto que não transforma também não protege. Ele apenas adia o vazio. A maternidade encapsulada e a paternidade simbólica são, no fundo, estratégias para contornar o peso da intimidade real, essa que exige tempo, renúncia e envolvimento. Talvez por isso elas seduzam tanto. Mas o verdadeiro cuidado, como a verdadeira política, não cabe em gestos ensaiados, pois que  ele se constrói na contramão do espetáculo, nos bastidores da convivência, onde o amor não se diz, se faz.

O cuidado real talvez nunca brilhe… mas é nele que o mundo se sustenta.

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