Nesse novo texto exclusivo de Kelly Saturno para a página “Espíritas à esquerda”, a autora reflete sobre alguns impactos da pandemia do coronavírus na vida social e política nacional.
Espiritismo e a micropolítica do cotidiano
Por Kelly Saturno
Esta semana reencontrei nas redes sociais uma “fake news” espírita, compartilhada há pouco, como se fosse nova. Segundo a mesma, Chico Xavier teria profetizado que a Pátria do Evangelho conheceria um soldado destemido para ajustar o adiantamento moral da nação. Alguém montado sobre um cavalo branco, que teria mesma inicial do nosso país em seu nome. Imagino que todos se lembrem disso…
Ao reler esta postagem, voltei a sentir aquele mesmo embrulho que me tomou o estômago durante a última campanha eleitoral. Porque foi quando percebi que havia, no movimento espírita, muita gente mal intencionada. E esse foi um dos meus maiores desgostos.
Vários escritores espiritualistas, a esta altura, já haviam se perdido em obsessões evidentes, e passaram a gravar vídeos e a psicografar textos com assinatura de pessoas famosas, polêmicas ou carismáticas, cujas mensagens não faziam relação àquele mesmo ser que habitou a Terra, nem em termos de estilo nem de linha de pensamento.
Sabemos que no mundo espiritual, revemos nossos conceitos a fim de corrigir a rota para uma próxima oportunidade reencarnatória. Reconhecemos erros, padrões e procuramos estudar para evoluir. Ou seja, espíritos podem “mudar de ideia”. Mas não a este ponto. Nossa essência e nossa personalidade não se alteram com o desenlace.
Estes médiuns envaidecidos venderam cópias e mais cópias de seus textos repletos de instruções subliminares nocivas para as suas centenas de leitores, que, esquecidos de Kardec, confiaram cegamente em tudo aquilo que lhes caiu em mãos, sedentos por um novo redentor e recusando o crivo eficiente da razão.
Com esse resultado, veio também o fanatismo político. Este foi um projeto muito bem calculado.
Precisamos crer que há algo maior por trás dessa questão. Não posso me acostumar com imagens de cristãos em várias igrejas e centros espíritas fazendo sinal de arma com as mãos e ainda usando crianças para tal. Eram demonstrações de total desconexão com o ideal religioso de amor ao próximo e exaltação da violência com o diferente.
Depois disso, tudo degringolou. Inclusive o bom senso restante, que deu lugar às mais ridículas situações, nas quais muita gente boa e inteligente das nossas relações pessoais acreditou.
De quanta gente precisamos nos afastar neste período?
Edir Macedo, empresário e bispo evangélico, tem um livro chamado “Projeto de Poder”. Título que não disfarça a intenção de domínio que se pretende alcançar em todos os aspectos. Estes líderes, hoje, possuem profundas alianças com todas as esferas da vida pública, além de terem um canal na TV aberta, um jornal e outros tantos serviços formadores de opinião.
Nos sentimos pequenos, cansados e sem esperança diante de tantas aberrações que se sucederam nos últimos anos desde o impeachment fraudulento de Dilma Rousseff.
O então eleito presidente, o menos qualificado dos candidatos, que tem como ídolo um psicopata torturador e assassino, e que sempre demonstrou falta de equilíbrio emocional, de empatia e de conhecimentos técnicos, junto com seus ministros escolhidos por valores semelhantes aos seus, desafia a razão mais uma vez, submetendo seu povo, já tão humilhado e entregue, à doença, à miséria e à morte.
Ele não apenas convocou a população às ruas, mas também, de forma irresponsável, assumiu o risco de contaminar seus próprios seguidores diante da aglomeração provocada, com um vírus sobre o qual quase nada sabemos.
Não conhecemos as causas, as sequelas e a devastação que esta pandemia vai deixar para trás. E, ao contrário do que a OMS e o seu próprio ministro da Saúde recomendam, ele continua estimulando conflito, a desobediência e desordem, quando deveria tranquilizar e oferecer à população aquilo de que mais precisam: segurança.
Não podemos esperar que Bolsonaro tome as rédeas da situação de maneira equilibrada e racional, pensando em governar para todos e não apenas para as igrejas e os milionários. Alguém que sempre foi agressivo, que fugia dos debates por não saber dialogar, que não contribuiu em 30 anos de vida pública com nada de útil, não poderia, agora, fazer diferente.
A população está compreendendo diante do sofrimento aquilo que semeou nas urnas.
Hoje mesmo, diante de tantas preocupações com a estrutura dos nossos hospitais que não conseguirão atender a todos por falta de espaço, de recursos humanos e de equipamentos, caso a pandemia nos alcance da mesma forma devastadora que atingiu outros países, o Governo Federal pretende investir o valor de R$ 4,8 milhões para lançar a campanha: “O Brasil Não Pode Parar”, com o intuito de interromper o isolamento e trazer as pessoas de volta às ruas, ignorando o perigo de alto contágio da covid-19.
Assim como há carreatas em defesa do posicionamento inconsequente deste indivíduo, também há aqueles centros religiosos (inclusive espíritas) que vergonhosamente se curvam ao mal, abrindo as portas que deveriam estar fechadas a fim de proteger os fiéis, para receber fanáticos que apostam a própria vida e a dos outros para conservar o seu orgulho e vaidade.
Acredito, com firmeza, que tudo isso foi cuidadosamente arquitetado por encarnados e desencarnados que não têm interesse que as coisas mudem para melhor. Desejam que a marcha do progresso que estávamos alcançando a duras penas, estacione. Mas, progresso é lei divina. Ele não pode ser contido. Seja por interesses financeiros ou quaisquer outros.
Quem não precisava de artistas para nada, agora, isolado, não pode mais ir a shows, a teatros, a cinemas.
Quem achou que pesquisa universitária era bobagem, que fazia pouco dos profissionais da educação, agora suplica por uma vacina que contenha o avanço do vírus impiedoso.
Quem chamou os médicos cubanos de guerrilheiros infiltrados, de aproveitadores, agora implora pelo seu retorno, pois o programa que pretendia preencher as suas vagas com profissionais brasileiros, falhou miseravelmente.
Somos convidados a refletir sobre a importância de profissionais, acusados por alguns de serem irrelevantes, dispensáveis. E muitos dos que vociferavam contra programas sociais e políticas afirmativas, hoje dorme nas ruas, sem emprego, sem perspectiva, sem direitos trabalhistas e previdenciários, e muitos sequer têm com o que se alimentar.
Quem achou que os discursos ambientalistas eram bobagens, que não levou a sério os incêndios devastadores no Brasil e ao redor do mundo, que não sofreu pelas vítimas de Mariana e Brumadinho, que não se importou com as tragédias das últimas enchentes, que não se comoveu com o óleo contaminando os mares e praias… agora precisará deixar o mundo respirar, em quarentena. E ele está respirando, retomando a integridade.
Bastou retirar de circuito o elemento nocivo: nós, que consumimos e depredamos sem cessar e ainda não entendemos que fazemos parte de um todo.
Negligenciamos as tomadas violentas de terras e assassinatos de índios, de quilombolas, de negros, de pobres, de crianças das comunidades, de uma vereadora símbolo da militância dos direitos humanos, como se nada disso nos atingisse diretamente.
Não é apenas a ganância capitalista. Trata-se de algo maior, que tomou corpo e espaço. Um véu extenso que ainda cobre a visão de muitos.
Entretanto, há luz no fim do túnel.
Começamos a ouvir panelaços e arrependimentos. Está cada vez mais claro o abandono da população, a desonestidade, a incompetência, os ideais vulgares, como um castelo de cartas que desmorona em câmera lenta. Mas os responsáveis não ficarão impunes.
Devemos lembrar que se existe um médico justo e misericordioso a olhar por nós, existe cura, embora o antídoto esteja sendo mais amargo do que pensávamos.
Que o Mestre amado, portanto, nos auxilie, nos guie ao progresso que viemos buscar. Que consigamos reconhecer os equívocos para corrigi-los a tempo. Que juntos, possamos caminhar com mais segurança pela estrada do bem comum, e que isso seja da vontade de todos.
Não há mal que dure para sempre.
Tenhamos fé, oremos, mas não deixemos de agir quando a oportunidade se apresentar.
“Bata à porta e ela se abrirá.”
Ouçam os cientistas, aqueles que estudaram e que têm autoridade para fazer recomendações. Ouçam os médicos, que estão dentro dos hospitais, dia após dia, testemunhando vidas serem perdidas por conta da falta de amor e de proteção do Estado.
Espírita que nega a ciência, não pode ser chamado de espírita. Ela constitui a base da doutrina. Um dos três pilares fundamentais que sustenta nossos ideais de vida.
Peço a todos, portanto, que se cuidem, que cuidem dos seus e dos mais vulneráveis. Fiquem em casa o máximo que puderem.
Nosso modelo e guia é apenas um, e será sempre o mesmo: Jesus.
Nós vamos virar esse jogo.
Muita paz!