Elizabeth Hernandes – Membra do coletivo EàE-DF
Atualmente, no Brasil, grupos cristãos, inclusive espíritas, clamam aos céus pelas “criancinhas argentinas” e aqui se recorda uma charge onde se fala do excesso de piedade para com os fetos e da indiferença com as crianças. Segundo o portal do CNJ (Conselho Nacional de Justiça)[1], há 30.191 crianças acolhidas em abrigos. E aqui não se abordará a situação de outras tantas que, mesmo sem estar em situação de rua, necessitam urgentemente de acolhimento, alimento, educação, saúde e perspectiva de futuro.
E por que tanta preocupação com os argentinos se ainda nem é copa do mundo?
Recentemente foi publicada, na Argentina, uma norma que legaliza a realização de aborto, apenas para as mulheres que desejarem fazê-lo –sempre bom destacar– e cuja gravidez esteja no período de até 14 semanas.
Quando as mulheres conseguem resguardar-se de alguma das situações de violência a que estão submetidas, diariamente, no mundo inteiro, o patriarcado entra em alerta.
Além das violências mais conhecidas –física, psicológica, patrimonial etc.– as brasileiras também se ressentem das violências obstétricas e da falta de acesso a cuidados em situações de abortamento. Mas, em que pese as tácitas leis de silenciamento, no que tange às questões femininas, a ciência –substantivo feminino– não consegue ser calada.
Esse artigo visa a destacar alguns pontos abordados em trabalhos que estudaram o tema do aborto no Brasil, sob o aspecto da saúde pública e das ciências humanas, finalizando com algumas considerações acerca do posicionamento do movimento espírita brasileiro conservador.
O suplemento 1 do volume 36 do periódico Cadernos de Saúde Pública traz uma série de artigos que destacam a importância de se discutir a descriminalização do aborto, em face das controvérsias de ordem moral, religiosa, filosófica e jurídica, num estado cuja constituição o define como laico.
É consenso, entre os pesquisadores, que independentemente dos posicionamentos dos tomadores de decisão, cabe ao estado garantir políticas públicas e leis para que as mulheres possam decidir se, quando, com que frequência e com quem querem ter filhos.
“Os estados têm o dever de prevenir as mortes e sequelas evitáveis por aborto inseguro. As leis restritivas em relação ao aborto violam os direitos humanos das mulheres e adolescentes, entre os quais estão o direito à vida, o direito à integridade física e psíquica, o direito à saúde sexual e reprodutiva, o direito à igualdade e não discriminação, o direito a estar livre de tortura e tratamento desumano e degradante, o direito a viver livre de violência, entre outros.” (Galli, 2020)[2].
Outros pesquisadores destacam o equívoco –permanente– no debate sobre o aborto, que cria um falso embate entre pessoas a favor e contra, dado que, em princípio, não há quem deseje que os abortos aconteçam. Talvez os proprietários das clínicas clandestinas sejam os únicos interessados no aumento das ocorrências, mas eles não representam a população. A verdadeira controvérsia está entre pessoas favoráveis e contra à criminalização do aborto e das mulheres que o realizam:
“(…) Num extremo estão pessoas que acham que o aborto deve ser proibido, um crime a ser punido, tanto a pessoa que interrompe voluntariamente sua gestação quanto a pessoa que a ajuda neste processo. No extremo oposto estão as pessoas que acham que criminalizar não é a solução, porque não reduz os abortos, que é injusto pois castiga apenas a mulher e não o homem que provocou ou contribuiu para que essa gravidez existisse, muitas vezes, até contra a vontade da mulher, e porque afeta mais direta e severamente as mulheres mais pobres, menos educadas, mais jovens e mais vulneráveis, já aquelas com recursos não sofrem as mesmas consequências dessa criminalização.” (Faundes, 2020, p.2)[3].
E quem são essas que abortam?
A PNA (Pesquisa Nacional de Aborto) de 2016[4] é um inquérito domiciliar baseado em amostra aleatória e representativa da população total de mulheres alfabetizadas com idade entre 18 e 39 anos, no Brasil. Utiliza um instrumento sofisticado, adequado para a investigação de assuntos polêmicos e de grande impacto na história de vida dos indivíduos pesquisados, a técnica de urna. Esse método consiste em entregar, às participantes, um questionário que, após respondido, é depositado em urna lacrada, sem que as entrevistadoras tenham conhecimento das respostas. Em seguida se realiza uma entrevista face a face abordando as questões sociodemográficas (escolaridade, situação conjugal etc.). Os questionários depositados na urna contêm um identificador codificado que permite, posteriormente, a combinação de ambos os instrumentos, sem prejuízo do sigilo e da confidencialidade. Esse tipo de método equivale ao estudo duplo-cego, utilizado em investigações clínicas.
A PNA 2016 revela que 25% das mulheres de até 40 anos realizaram pelo menos um aborto e que há heterogeneidade dentro dos grupos sociais. O abortamento é mais frequente entre mulheres de menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas e que vivem nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Os resultados são comparáveis e similares aos da PNA 2010 e mostram que metade das mulheres utilizou medicamentos para abortar e quase a mesma proporção necessitou de internação para finalizar o aborto.
Quando os pesquisadores comparam a PNA 2010 com a de 2016 percebem evidências de estabilidade, ao considerar os efeitos de movimentação das coortes ao longo do intervalo de seis anos entre as duas pesquisas.
“A maior parte das variações nas taxas, segundo faixas quinquenais, pode ser associada a uma movimentação de coortes, isto é, à acumulação de abortos ao longo da vida reprodutiva.” (Diniz, Medeiros e Madeiro, 2016)”.
A comparação entre os períodos do estudo revela que a realização de aborto é comum no Brasil e ocorreu em todas as idades pesquisadas (18 a 39 anos). Além disso, permanece como um evento frequente na vida das mulheres, sejam elas casadas ou não, com ou sem filhos, de todas as religiões (ou sem religião); de todos os níveis educacionais, classes sociais e grupos étnico-raciais. Ocorre em todas as regiões do país e em todos os tipos e tamanhos de município.
Essas que abortam são todas as mulheres.
Quem é punido pela realização do aborto?
Em julho de 2018 o Ministério da Saúde enviou ao STF (Supremo Tribunal Federal) um levantamento para subsidiar o julgamento de uma ação –movida pela ONG Anis– Instituto de Bioética e pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL)– que pedia a descriminalização do aborto até a décima segunda semana de gestação. Os dados do documento, divulgados pelo jornal Folha de S. Paulo[5], revelam que em dez anos o SUS gastou R$ 486 milhões com internações para tratar complicações associadas ao aborto, sendo 75% deles provocados. De 2008 a 2017, 2,1 milhões de mulheres foram internadas e, embora o número de internações tenha caído 7%, no período, as despesas hospitalares subiram 12% em razão da gravidade dos casos: em quase um terço houve complicações como hemorragias e infecções. Além disso, entre 2000 e 2016, houve 4.455 óbitos por causas diretamente relacionadas ao abortamento.
Os dados mostram que a punição pelo ato inclui, desde o enfrentamento de complicações de saúde até a morte, para a mulher. E custa caro para a sociedade, em termos monetários e morais, pois uma sociedade que não preserva a vida das mulheres, não vai bem do ponto de vista moral.
A quem interessa a realização de abortos ilegais?
Tendo em vista a clandestinidade do procedimento, é difícil estimar os lucros das pessoas físicas ou jurídicas que realizam, de forma correta ou em péssimas condições sanitárias, o procedimento. De todo modo, há que se pensar que são elas as principais interessadas em continuar na ilegalidade, livres de regramentos sanitários, de códigos de ética e de pagamento de impostos.
Em tese, não há pessoas favoráveis ao aborto, independente de ideologia, crença ou descrença. Também não há registro de mulheres que o relatem como experiência prazerosa.
A criminalização aumenta o estigma, dificulta o cuidado com a saúde das mulheres e propicia lucros às clínicas clandestinas. A descriminalização poderia abrir a discussão sobre o tema e construir uma rede de apoio para as mulheres que estivessem decididas a interromper sua gravidez.
E se ao invés de ser denunciada, a mulher pudesse deixar clara a sua intenção de abortar, ser atendida por profissionais qualificados, obter informações sobre seu estado de saúde e sobre os prognósticos, ser orientada acerca de eventuais opções no que tange às questões de assistência social e psicológica, conforme as especificidades de sua condição? Tais medidas, aliadas à educação acerca da sexualidade, muito provavelmente diminuiriam o número de abortamentos, bem como as internações e óbitos femininos.
A criminalização não impede uma mulher –às vezes desesperada, sem apoio familiar e sem recursos materiais ou emocionais– de buscar um procedimento arriscado e tampouco impede a ação dos que desejam lucrar com essa situação.
A culpa atribuída, somente à mulher, pelas denominações cristãs, também não impede o aumento das mortes e complicações.
Chore por nós, Argentina.
Perpassando o debate bioético, jurídico e religioso, há o debate político, frequentemente travestido de religioso.
A posição do espiritismo tradicional brasileiro aparece como mais rígida que as de outras denominações cristãs, inclusive os neopentecostais. Em que pese respostas como a da questão 353, de “O livro dos espíritos”, afirmando que o feto não tem, exatamente uma alma, um grande percentual de espíritas marcha ao lado de um grande percentual de neopentecostais, pela vida dos fetos e contra a das mulheres.
Vale ressaltar que a pergunta 353 é apenas um exemplo, pois em várias partes deste que é um livro básico, para os estudiosos do espiritismo, há argumentos que deveriam ser aprofundados, antes da partida para as tais “marchas pela vida”, cujo resultado aparece nas estatísticas de mortalidade feminina. Citam-se como exemplos as respostas às questões 136, 345 e 346.
Em estudo etnográfico realizado num centro espírita brasileiro, Barbosa (2019)[6], conclui que, para o espiritismo, no Brasil, o aborto “quebra com uma das leis maiores do universo” e como essa doutrina busca afirmar-se uma síntese entre religião, ciência e filosofia, tem capacidade para “manipular imagens técnico-científicas retoricamente eficazes”.
Desse modo, uma rápida pesquisa sobre a visão espírita mostra uma prevalência de discursos que culpam as mulheres, seja com base em questões de “O livro dos espíritos” ou apenas em opiniões, como a expressa por um palestrante, em um vídeo em que afirma que o “choro do bebê” faz o corpo da mãe produzir endorfinas, o hormônio do bem-estar. Vale ressaltar que não foi encontrado nenhum trabalho científico que faça essa inferência.
Esta “construção espírita do problema do aborto”, conforme a expressão de Barbosa (2019)[6] é reflexo da tradição conservadora que está na origem do movimento espírita brasileiro.
Em contraposição ao “espiritismo à brasileira”, na Argentina, Cosme Mariño, o primeiro presidente da Confederación Espiritista Argentina (CEA), adotava uma militância política liberal-anticlerical e se aproximava dos socialistas. Note-se que alguns espíritas fizeram parte do núcleo fundador do Partido Socialista da Argentina e houve quem chegou a operar fusões na prática, como Joaquin Trincado com sua Escuela Magnética Espiritual de la Comuna Universal, um grupo esotérico-espírita e comunista, criado em 1911, em Buenos Aires (Bubello, citado por Miguel, 2018)[7].
No XV Encontro Estadual de História, em 2018, o pesquisador Sinuê N. Miguel apresentou um trabalho esperançador, dado que “aborda a existência de uma tradição intelectual espírita de viés socialista, minoritária ao longo da história do espiritismo, mas capaz de tensionar o campo social de um movimento religioso que se quer politicamente neutro”.
Como já disse Weber, “quem escolheu a neutralidade já escolheu o lado do mais forte”.
A cada dia fica mais claro que o movimento espírita brasileiro não é politicamente neutro e serve à sustentação do patriarcado. Enquanto alguns grupos oram pelas criancinhas argentinas, as mulheres daquele país devem chorar por suas irmãs brasileiras. De todo modo, estamos a caminho.
Referências:
[1] CNJ (Conselho Nacional de Justiça), https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/adocao/ Consulta em 10.01.2020.
[2] GALLI, Maria Beatriz. Desafios e oportunidades para o acesso ao aborto legal e seguro na América Latina a partir dos cenários do Brasil, da Argentina e do Uruguai. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.36, n.13.
[3] FAUNDES, Aníbal. A importância de discutir abertamente o problema do aborto para a proteção e promoção da saúde da mulher. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.36, supl. 1.
[4] DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciênc. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.22, n.2, p.653-660.