O espiritismo e os alienígenas

Coluna Releituras kardecistas com Marcio Sales Saraiva

Um dos pilares do espiritismo é a convicção de que existe uma pluralidade de mundos habitados e não somente o planeta Terra, onde atualmente vivemos. Isso é inequívoco em “O livro dos espíritos”, na questão 55:

Todos os globos que circulam no espaço são habitados?

Sim, e o homem terreno está bem longe de ser, como acredita, o primeiro em inteligência, bondade e perfeição. Há, entretanto, homens que se julgam espíritos fortes e imaginam que só este pequeno globo tem o privilégio de ser habitado por seres racionais. Orgulho e vaidade! Creem que Deus criou o universo somente para eles.

Orgulho e vaidade é achar que o universo é todo nosso. Esta é a resposta dos espíritos.

Não se trata, é óbvio, de mundos iguais à Terra. Os espíritos dizem que “eles absolutamente não se assemelham” (questão 56, LE) com o nosso planeta azul.

Os seres que habitam estes outros mundos também não são iguais aos humanos terráqueos, da mesma forma que “os peixes são feitos para viver na água e os pássaros no ar” (questão 57, LE). Kardec explica que “As condições de existência dos seres nos diferentes mundos devem ser apropriadas ao meio em que têm de viver”. Nada mais lógico do que isso.

Jesus de Nazaré disse: “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim. Na casa de meu pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito” (João 14:1,2).

Casa de Mozart em Júpiter, publicada na Revista Espírita, ano 1858.

Allan Kardec, em “O evangelho segundo o espiritismo” (OESE), capítulo 3, está consciente de que há possibilidades diferentes de interpretação desta passagem, mas o fundador sinaliza para a primeira leitura:

A casa do pai é o universo. As diferentes moradas são os mundos que circulam no espaço infinito, oferecendo aos espíritos desencarnados estações apropriadas ao seu adiantamento” (OESE 3:1).

Sendo o universo a morada da divindade, nele encontramos pluralismo de populações. A Terra é apenas uma delas. Há diversidade de mundos habitados e cada um tem desenvolvimento cognitivo e espiritual distinto, pois

[…] há os que são ainda inferiores à Terra, física e moralmente. Outros estão no mesmo grau, e outros lhe são mais ou menos superiores, em todos os sentidos. Nos mundos inferiores a existência é toda material, as paixões reinam soberanas, a vida moral quase não existe. À medida que esta se desenvolve, a influência da matéria diminui, de maneira que, nos mundos mais avançados, a vida é por assim dizer toda espiritual” (OESE 3:3).

E nessa diversidade de mundos inferiores à Terra e outros que lhes são superiores, há os mundos intermediários, mais ou menos como o nosso, “o bem e o mal se misturam, e um predomina sobre o outro, segundo o grau de adiantamento em que se encontrarem” (OESE 3:4).

A convicção espírita sobre a pluralidade de mundos habitados é bem anterior aos modismos ufológicos do século XXI e ainda não encontra uma resposta positiva na ciência, apenas indícios ou razoabilidade filosófica. Em outras palavras, a ciência humana ainda não tem fatos concretos que corroborem essa convicção espírita que nasce com as comunicações dadas pelos espíritos, alguns inclusive de outros planetas.

Ainda sem o respaldo da ciência, o espírita poderá deixar essa convicção “pendurada” até que o tempo possa ou não confirmar. É uma hipótese válida, mas não sendo o espiritismo dogmático, ele não poderia exigir de seus adeptos uma crença cega nesse ponto, apenas uma abertura mental e uma confiança no que dizem os espíritos sobre o assunto.

É importante compreender isso porque o tema caiu no ridículo e não faltam médiuns dispostos a psicografar sobre coisas de outros planetas, incluindo naves estelares de Júpiter, que não encontram respaldo nas ciências deste mundo e nem no bom senso, na razoabilidade.

Sendo assim, façamos como Allan Kardec e tenhamos sempre um pé atrás quando alguém diz falar em nome de “espíritos de outros planetas” ou que já testemunhou comunicações com “extraterrestres”. Não vamos confundir as pesquisas sérias neste campo, como o Paradoxo de Fermi e a hipótese do zoológico —e é com elas que o espiritismo deve dialogar—, com algumas viagens alucinógenas sobre espíritos de supostos comandantes de frota intergalácticas. “Tudo temos de ter cautela”, disse Titão Passos em “Grande sertão: veredas” de Guimarães Rosa. E assim deveria ser no espiritismo que leva a sério o legado de Allan Kardec.

Suicídio não é ter razão; é ter sentido.

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Por Marcia Costa – EàE-DF

“Em geral, aqueles que se arrojam ao suicídio esperam livrar-se para sempre de dissabores julgados insuportáveis, de sofrimentos e problemas insolúveis pela tibiez da vontade descuidada […]”. “Memórias de um suicida”, psicografia de Yvonne Pereira, ditado pelo espírito Camilo

“Suicídio não é ter razão; é ter sentido. É um ato de controle sobre o corpo. Autocontrole, se conduzido voluntariamente. Controlado por outro, se um ato de coerção ou homicídio dissimulado.” “Eleanor Marx: uma história”, de Rachel Holmes

A existência física é o desafio do espírito diante das contradições do mundo. E nós, espíritas, sempre fomos “doutrinados” a aceitar de forma acrítica que reencarnamos para experimentar a dor e o sofrimento, como se a proposta divina da reencarnação devesse ser um campeonato na qual aqueles que mais se mortificam (ou são mortificados) são candidatos aos prazeres espirituais no pós-vida. Declaram os espíritos na resposta à questão 259 de “O livro dos espíritos”i que escolhemos o roteiro de nossa jornada, deixando as demais ocorrências na dinâmica das relações com pessoas e instituições. Não há fatalidade, mas a livre escolha dos caminhos a seguir na transformação espiritual. Mas somos realmente livres para escolher como caminhar em nossa existência?
Foto Ben Blennerhassett/Unsplash
Cada momento da história da humanidade traz em si contextos pré-determinados para a existência que variam de acordo com o lugar geográfico, cultura, gênero, raça e, principalmente, sistema econômico. Há tempos instalou-se em nosso planeta de forma hegemônica (mas não sem luta) o sistema capitalista que, tal como a fábula do Rei Midas, a tudo vem transformando em mercadoria: arroz, feijão, alface, televisão, sexo, prazer, arte, cultura, felicidade, trabalho, fé, vida. A existência se transforma em valor determinado pela capacidade de produzir em condições que estão aquém da capacidade individual de escolha. Esse mesmo sistema cria um catálogo de pessoas, separando-as em caixas em que são medidas pela sua utilidade e função em produzir essas mesmas mercadorias, estabelecendo em qual lugar cada ser humano deve estar na sociedade a partir de ideologias conservadoras de ordem social, política e religiosa. Mas, ainda assim, o espírito –o ser que sobrevive à morte– busca sentido para continuar seu percurso na vida, envolto nessa contradição entre a opressão material e o direito espiritual a uma existência em que lhe seja garantida a dignidade para contribuir na construção do Reino de Deus. Nessa condição de oprimidos encontramos bilhões de almas espalhadas por todo o planeta e, no Brasil, é possível destacar que pessoas negras, indígenas e LGBTI são aquelas submetidas a um fardo que vem sendo erroneamente atribuído, por diversas correntes espíritas, às suas escolhas ao reencarnar ou a um pretenso castigo devido a faltas passadas. Ainda que se pressuponha o conhecimento prévio das condições, conforme questão 264 de “O livro dos espíritos”ii a encarnação não é um destino absoluto, mas uma proposta na qual existe um compromisso de todas as individualidades que aqui reencarnam em praticar a lei de Deus e construir uma ordem social fundada na justiça e na solidariedade. Por isso, espíritas, é preciso superar o pensamento de que o suicida é um espírito em desequilíbrio, obsidiado, egoísta, “que não têm a coragem de suportar as misérias da existência”… Somos, enquanto sociedade, responsáveis pela decisão desesperada de quem não teve o fundamental apoio para garantir a continuidade de sua existência, em níveis indispensáveis à manutenção da vida, seja sob o aspecto material, social ou psicológico. Não faltam estudos acadêmicos que demonstram que em diversas etnias indígenas o suicídio é determinado por fatores de risco como pobreza, baixos indicadores de bem-estar, desintegração das famílias, vulnerabilidade social, falta de sentido de vida e futuro, em decorrência de reassentamento e realocação das terras. E todas essas condições são dadas pela apropriação das terras indígenas por mineradoras e agronegócio, para expansão de suas atividades econômicas, provocando a dificuldade de sobrevivência e existência dos povos originários. A professora doutora Jeane S. Campos Tavares destaca que: “quando o terapeuta não reconhece o racismo como produtor de iniquidades sociais, preconceito e discriminação, contribui para aumento de sofrimento psíquico de seu paciente negro e para a manutenção das desigualdades raciaisiii”. E esse sofrimento é provocado pela racialização da força de trabalho com o único objetivo de multiplicar a exploração desses seres humanos submetendo-os a condições de trabalho degradantes e desumanas, sem deixar de mencionar a violência estrutural que estimula agressões físicas e psicológicas e até mesmo o assassinato de pessoas negras. Portanto, não causa admiração que em 2016 o Ministério da Saúde tenha registrado que o risco de um jovem negro cometer suicídio foi de 45%iv. Os LGBTI, assim como as mulheres, também estão sob influência de uma sociedade patriarcal que pretende controlar seus corpos e sexualidade. Caminhando nesses limites existenciais criados para estabelecer o padrão heteronormativo que permite o suporte à estrutura capitalista da família tradicional, estão submetidos ao preconceito e à exclusão social em ruas, escolas, universidades e locais de trabalho. Vivem a cada instante a realidade do medo por não ter proteção para ser quem são e relacionarem-se com quem escolhem. Segundo o psiquiatra Bruno Branquinho, jovens LGBTI pensam três vezes mais em suicídio que cisgêneros heterossexuais e têm cinco vezes mais chances de colocar a ideia em práticav. Espíritas, antes de atribuir seus julgamentos cruéis baseados no conceito “só os fortes sobrevivem”, observemos as condições em que a existência se descerra, não apenas no plano individual, mas também no contexto coletivo em seu aspecto social, cultural e econômico. São almas que, na absoluta situação de abandono social, psicológico e material, decidem por terminar a vida física em que a dor e o sofrimento atingem níveis insuportáveis. Nenhum espírito vem à experiência física para ser torturado a pretexto de ser fundamental à sua evolução. O suicídio não é a causa da falência moral do espírito, mas a consequência de uma sociedade na qual cada vez mais as forças econômicas trabalham para impedir que o existir seja a oportunidade de transformação do ser. Precisamos acolher nossos semelhantes e lutar a cada instante para que a Terra seja um lugar de desafio para o desenvolvimento do espírito e não para a sobrevivência e expansão das desigualdades criadas por sistemas humanos de expropriação das condições materiais da existência. Marcia Costa, espírita que um dia, diante de muita dor e sofrimento, quis cometer suicídio. Referêcias:

i 259. Do fato de pertencer ao espírito a escolha do gênero de provas que deva sofrer, seguir-se-á que todas as tribulações que experimentamos na vida nós as previmos e escolhemos?

Todas, não, porque não escolhestes e previstes tudo o que vos sucede no mundo, até às mínimas coisas. Escolhestes apenas o gênero das provações. As particularidades são a consequência da posição em que vos achais e, muitas vezes, das vossas próprias ações.”

ii 264. Que é o que dirige o espírito na escolha das provas que queira sofrer?

Ele escolhe, de acordo com a natureza de suas faltas, as que o levem à expiação destas e a progredir mais depressa. Uns, podem, portanto, impor a si mesmos uma vida de misérias e privações, objetivando suportá-las com coragem; outros preferem experimentar as tentações da riqueza e do poder, muito mais perigosas, pelos abusos e má aplicação a que podem dar lugar, bem como pelas paixões inferiores que uma e outro desenvolvem; outros, finalmente, se decidem a experimentar suas forças nas lutas que terão de sustentar em contato com o vício.”

iii Manejo Clínico das Repercussões do Racismo entre Mulheres que se “Tornaram Negras”. Disponível em https://www.scielo.br/j/pcp/a/PS556GX8mQ7CgwwzvbVgYts/abstract/?lang=pt.

iv Jovens negros são maioria em casos de suicídio no Brasil, disponível em https://www.cartacapital.com.br/sociedade/jovens-negros-sao-maioria-em-casos-de-suicidio-no-brasil/. Acesso em 16/9/2021.

v Suicídio da população LGBT: precisamos falar e escutar. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/blogs/suicidio-da-populacao-lgbt-precisamos-falar-e-escutar. Acesso em 16/9/2021.

 

Repúdio à convocação aos atos pró-Bolsonaro em 7 de setembro por parte de alguns espíritas

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Há cinco anos o coletivo Espíritas à Esquerda trabalha no intuito de esclarecer, acolher e debater com a comunidade dos espíritas e não espíritas os diversos problemas que afligem a sociedade brasileira de maneira ampla e plural. Os últimos anos trouxeram grandes desafios ao movimento espírita brasileiro, impondo aos espíritas, incomodados e preocupados com a onda reacionária que tomou conta de diversos setores da sociedade brasileira, posicionarem-se de maneira mais ostensiva contra o fascismo que corrói as bases da frágil democracia brasileira. Desta forma, foi com tristeza, porém sem surpresa, que identificamos nas redes sociais diversas manifestações, por parte de autointitulados médiuns e supostos grupos espíritas, convocando os confrades para comparecerem aos atos antidemocráticos previstos para o próximo 7 de setembro. Dito isso, afirmamos:

1. Repudiamos o apoio a tais manifestações, que são fomentadas pelos setores historicamente mais reacionários e obscuros da política e da sociedade brasileiras. Não coadunamos com grupos que fazem uso da violência e da mentira como caminhos de edificação social.

2. Defendemos a liberdade de expressão nos moldes definidos pela Constituição Federal de 1988, e, desta forma, não entendemos como liberdade de expressão a ameaça, o achincalhamento e a agressão às instituições republicanas, bem como qualquer arroubo de ruptura institucional por meio da força.

3. Afirmamos que o espírita que se alinha ao atual governo federal, representado por criatura ignóbil e perversa, está profundamente enganado quanto aos preceitos do espiritismo moderno e, de maneira irresponsável e covarde, conduz desavisados ao caminho do erro.

4. Por fim, rechaçamos de maneira veemente qualquer tipo de defesa, por parte dos espíritas, dum presidente que em diversos momentos demonstrou desrespeito e indiferença às vítimas da pandemia que nos assola e que sistematicamente reproduz falas e atitudes vulgares, envergonhando nosso país e humilhando nosso povo, sobretudo os mais pobres.

Desta forma, chamamos os espíritas verdadeiramente preocupados com o Brasil, os espíritas realmente dedicados ao progresso, para não comparecerem aos atos golpistas prometidos para o próximo 7 de setembro.

Sobre espíritas, músicos e fascistas

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Por Túlio Ceci Villaça

Postado originalmente nesse link.

Eu sou espírita, embora quase nunca fale disso em público porque detesto proselitismo (nada contra quem o faz com seriedade, só questão pessoal); e sou músico pouquíssimo praticante hoje — compenso escrevendo sobre música -, mas já fui muito atuante tanto como músico quanto como espírita, e muito das duas coisas juntas, como alguns aqui sabem.

Por isso, como espírita e como músico, quero dizer algo que deveria ser tão evidente quanto desnecessário dizer: quem se considera espírita ou é músico e ainda apoia em algum nível este governo nefasto, por mais que possa ser alguém bom pessoalmente e por mais que já tenha feito boa música, no fundo não entendeu absolutamente nada do que fez e faz.

Digo isto a pretexto do vídeo divulgado por membros da Fundação Caminho Verdade e Vida, de MG (eles mesmos se identificam, portanto não vejo mal em informar) e da foto do presidente da República portando um violão e simulando usá-lo como um fuzil. Tratemos de um por vez.

O vídeo divulgado tem muito pouco conteúdo, basicamente um grupo de pessoas dizendo, um por um, que são espíritas e apoiam Bolsonaro. Há poucas variações, mas significativas: um acredita que ele seja um missionário, outro lhe “apresenta” Emmanuel, estampado em sua blusa, outra lhe considera muito simpático, outros lhe “autorizam” a fazer o que considerar necessário. E assim por diante.

Imagem extraída do vídeo da Fundação Caminho Verdade e Vida

Neste vídeo está tudo de pior que o movimento espírita brasileiro tem: o messianismo, a idolatria cega, a ausência absoluta de questionamentos, a mania de enxergar diretrizes da espiritualidade no que lhe apraz e, contrariamente, obsessores no que não gosta. E mais um recorte de classe que vem de sua nascença e que é abominável: uma classe média branca subletrada mas que se acha oriunda espiritualmente da França, da civilidade, que tem pavor de ser confundida com os adeptos do “africanismo”, como chamou Deolindo Amorim às religiões afrobrasileiras de forma pusilânime. Estas ultimas coisas não estão no vídeo de forma visível, mas são elas que o moldam, inclusive na “autorização” que inclui a possibilidade de um golpe de Estado, de uso de violência, tudo terceirizado, porque os espíritas detestam violência. Mas “autorizam”.

Eu já quebrei muito pau dentro do movimento espírita contra o conservadorismo inerente à visão doutrinária corrente, quem me conhece sabe. E na verdade frequento hoje apenas esporadicamente reuniões, mesmo virtuais. Sei bem que não é assim em todo lugar. Mas só de lembrar que a visão corrente do espiritismo permite sequer aventar a possibilidade de um vídeo como este, tenho engulhos.

Quanto à foto, há pouco a dizer, porque ela fala por si. Quem faz de música sua profissão, aquilo em que acredita contribuir para fazer a sua parte no mundo (e se sustentar, na medida do impossível) e não se revolta com a imagem do violão/fuzil, esta pessoa não sabe o que está fazendo no mundo, nada menos.

Sei perfeitamente que a arte pode e deve ser usada para questionar, para chocar, e pode inclusive emular a violência, que não há limites para a expressividade se usada com um propósito investigativo responsável, um questionamento honesto, a abertura de um caminho inovador. Mas não é preciso apelar para nada disso para perceber que a performance do violão/fuzil não é nada disso, é pura e simples selvageria, incompreensão absoluta de qualquer padrão de humanidade. Obra de um debiloide, um psicopata, um canalha emérito.

Por sinal que esta performance (nem devia estar usando esta palavra, enxovalha seu significado) aconteceu — anotem — no 1° Encontro Fraternal de Líderes Evangélicos da Convenção Nacional das Assembleias de Deus do Ministério de Madureira.

Fraternal.

Percebem? O que há ali é desprezo por qualquer valor positivo e pura destruição de significado, exatamente do tipo promovido pelo nazismo, que começou ligado discretamente a fundamentalismos religiosos para mais tarde substituí-los pelo seu próprio misticismo, colocando no altar, no lugar do que estivesse lá, a violência. Culto da violência, no sentido religioso mesmo.

Em suma, já passamos há muito, se é que um dia estivemos, do ponto em que um espírita ou alguém que atua na arte compactue com o fascismo que está no poder. Sei que estou falando para convertidos em maioria absoluta, porque falo para meus amigos aqui. Mas este perfil é público, então faço um manifesto pessoal aqui, que seja para manifestar minha indignação e desopilar meu fígado, para que a violência implícita ou explícita destes vídeo e foto não fiquem dentro de mim me fazendo mal.

Só para que não fique qualquer dúvida: sou contra toda determinação de quem é e quem não é espírita ou artista. Mas se você se considera um ou outro e apoia este governo, não importa a roupa branca, a intenção benéfica, a técnica perfeita, a composição cuidadosa; você não sabe o que é, no sentido mais profundo da palavra, e o fascismo vai ressoar por baixo de tudo o que você disser e fizer, seja na doutrina ou na arte. Note quem quiser.

Por que ainda preferimos ser racistas que capitalistas

Antônio Isupério

Arquiteto e ativista antirracista e LGBTQIA+, é diretor de relações internacionais do Retail Design Institute (EUA). Membro da Coordenação do Espíritas à Esquerda

Funcionários da Ável Investimentos, ligada à XP, no terraço da empresa, em Porto Alegre; imagem repercutiu nas redes sociais pelo fato de a equipe ser branca, ter poucas mulheres e aglomerar sem o uso de máscaras – Reprodução/Twitter
Nos últimos dias pudemos aferir o quanto as redes sociais trataram de forma onipresente o caso da foto da Ável Investimentos (um escritório gaúcho de agentes autônomos ligado à XP Investimentos) após uma manhã de apresentações sobre propósito, conceito, disrupção e inovação. Mas o que a imagem claramente diz é sobre o pacto narcísico da branquitude brasileira e sua orgulhosa supremacia latina. É importante salientar que a falsa ideia da meritocracia é o principal pilar que sustenta o racismo estrutural e normaliza esse cenário por séculos. Percebemos também que a mídia assistiu atônita a todo esse debate repercutir, o que denuncia a ausência de profissionais preparados para tratar de assuntos tão relevantes e atuais como o protagonista desse futuro: a inteligência social. Não existe coerência em tratar de disrupção e inovação em um ambiente majoritariamente composto por homens brancos cis e, provavelmente, héteros. Grandes empresas de pesquisa de futuro, como a McKinsey em seu popular “report” de 2015 (“Why diversity matters”), descrevem com pesquisas muito precisas que uma diversidade étnica produz 35% de lucro real as empresas. Ao tratar sobre inovação, esses valores alcançam resultados ainda mais expressivos, porque não é possível maximizar inovação em um ambiente que se propõe ser uma repetição de mesmos indivíduos e experiências, como no caso da foto. Não é um cenário somente composto por uma quantidade expressiva de homens brancos cis héteros, mas bem provável que também compartilhem da mesma cosmovisão, mesmos valores sociais, sejam todos vizinhos, torçam para o mesmo time e frequentem os mesmos lugares. Essa é a fórmula da construção de um ambiente estéril composto por “si mesmos” e que carrega um imenso vão cego da sociedade que seja quase impossível ser quebrado. Todos parecem gêmeos, não somente pelo mesmo tom branco de pele (porque existem outros), mas também pelos cortes de cabelo e trajes. A imagem poderia ser um meme daqueles em que se copia e cola, mas não é. É o Brasil de 2021 que se ensaia pós-pandêmico. Vamos ao porquê do título deste artigo e a incoerência que tal foto denuncia. O nosso país contém 56% de negros, segundo o IGBE. São quase 120 milhões de pessoas com um poder de consumo abundante de R$ 1,9 trilhão por ano, de acordo com dados oficiais do Instituto Locomotiva. Isso representa mais que o consumo da própria classe A. Só esse fator já seria capaz de invejar qualquer país que se entende capitalista. Se isolarmos somente o “Brasil negro”, seríamos o 11º pais do mundo em população mundial e o 17º em consumo; ou seja, isoladamente faríamos parte do G20. Mas é praticamente impossível achar uma boneca negra ou uma touca para cabelos afro, isso na maior potência de afroconsumo do mundo. Infelizmente, o nosso setor produtivo prefere ignorar completamente esses dados, o que nos faz concluir que nós, como nação, preferimos ser racistas até que capitalistas, como afirma a consultora de diversidade Alexandra Loras. O Brasil não conhece seu principal cliente. E, pelo registro que temos da Ável Investimentos, ainda teremos um longo caminho. ESTE ARTIGO FOI ORIGINALMENTE PUBLICADO NO JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO.

Racismo, espiritismo e a origem dos humanos

Releituras Kardecistas com Marcio Sales Saraiva

A despeito de algumas passagens racistas em Allan Kardec —encontradas em dois textos (“Frenologia espírita e a perfectibilidade da raça negra” e o outro “Teoria da beleza”), um na “Revista Espírita de 1862” e outro inserido no livro “Obras póstumas”, ou seja, publicado sem o consentimento dele—, o fato positivo é que o movimento espírita sempre foi abolicionista, portanto, contrário à escravidão. No Brasil e em diversas partes do mundo, muitas lideranças políticas que combatiam o escravismo eram espíritas ou espiritualistas, isso no século XIX, mas isso não queria dizer que os espíritas compreendiam que negros e índios fossem almas “do mesmo nível” dos brancos.

Quadro de Jean-Baptiste Debret feito em 1830.

Concedo que, até certo ponto, é compreensível sociologicamente que Allan Kardec, vivendo sob a hegemonia de teorias racistas do século XIX, caísse nessa esparrela, mas como ficam os espíritas de hoje? Kardec foi racista, é um fato, mas o movimento espírita do século XXI poderá se libertar disso?

Em “O livro dos espíritos” compreendemos que existe diversidade de raças (este era o conceito da época, hoje falamos em etnias) e que esta variedade também se dá no campo físico e moral. É aqui que encontramos a armadilha por onde certo tipo de racismo encontrou campo para afirmar que umas raças são mais belas (questão física) ou mais adiantadas civilizacionalmente (questão moral) comparado com outras. Hoje sabemos que tal concepção hierarquizadora é absolutamente equivocada do ponto de vista científico e fundamentalmente racista, posto que sempre colocava os brancos como raça superior e exemplo de civilização. Se o espiritismo caminha de acordo com a ciência —foi isso que pediu Kardec— não fará dano algum abandonar tais visões ultrapassadas e racistas, mas nem tudo deve ser jogado fora nos textos kardequianos sobre questões raciais. Sabe por quê?

Notem que na questão 52, os bons espíritos falam que a diversidade étnica é fruto do clima (quente ou frio, alterando a pigmentação da pele), da vida e dos costumes (cultura, diríamos hoje). Nisso não há nada de incorreto, além do mais, os espíritos afirmam que “o homem” (seriam os hominídeos ou os sapiens?) surgiu em diversos pontos e épocas do planeta Terra gerando fenótipos distintos (questão 53).

A evolução dos sapiens é um tema ainda cheio de lacunas, ainda que os achados mais antigos estejam na África Oriental, corroborando a hipótese de origem única; há também teorias no campo da antropologia biológica e da arqueologia que apontam para essa diversidade de origens (hipótese multirregional), contrariando o difusionismo cultural de matriz única.

A resposta dada pelos espíritos poderá concordar com uma ou outra hipótese, dependendo de como interpretamos a expressão “os homens”: os espíritos estão falando dos hominídeos (como Homo erectus na Ásia e de Homo neanderthalensis na Europa), de todos que são “homo” ou somente do Homo sapiens, o mais avançado e que derrotou as outras espécies humanas. Deixarei para outro momento o aprofundamento sobre as nossas origens.

O ponto fundamental para a derrubada dos muros racistas está na questão 53-a. Nela, os espíritos informam a Allan Kardec que não existem espécies distintas de seres humanos, pois todos “são da mesma família”, os sapiens é o que supomos. E que esta variedade aparente —negros, indígenas, asiáticos, brancos—, de frutos da mesma árvore, nos diz que todos os seres humanos “são irmãos em Deus”, todos são animados por um espírito e todos estão destinados à plenitude/perfeição —“tendem para o mesmo fim”, como diz na questão 54. Assim sendo, o racismo cai por terra. Qualquer espírito poderá encarnar-se como branco ou negro, asiático ou indígena, ao longo do seu ciclo de reencarnações. Não existe raça superior ou inferior. Diz-nos a questão 803 de “O livro dos espíritos”:

Todos os seres humanos são iguais perante Deus? Sim, todos tendem para o mesmo fim e Deus fez as suas leis para todos/as. Dizeis frequentemente: ‘O Sol brilha para todos’, e com isso dizeis uma verdade maior e mais geral do que pensais.

Foi justamente este reconhecimento espírita da unidade da “raça humana”, os sapiens, —a despeito das diferenças aparentes— que embalou diversos seguidores da codificação de Allan Kardec a somar-se nos movimentos abolicionistas e, ainda hoje, depois que já sabemos que geneticamente somos iguais, inspiram os espíritas a se comprometerem no combate ao racismo que deverá começar em si mesmos, dentro de suas famílias, no interior das próprias casas espíritas (muitas delas dirigidas sempre por brancos) e nas estruturas de visibilidade do movimento espírita, pois é no mínimo questionável que entre as lideranças de maior destaque tenhamos somente o médium José Raul Teixeira como negro e nenhuma pessoa de origem indígena. Será que há poucos negros no espiritismo?

Os dados do IBGE (2010) apontam que 68,7% dos kardecistas são brancos, mas isso não justifica o apagamento de lideranças negras e de comunicações mediúnicas de espíritos ainda ligados ao povo negro. Faz-se necessário meditar na quantidade de psicografias de mentores e mentoras branquíssimas (com muitos livros lançados) e na raridade de espíritos com vestimenta perispiritual negra ou indígena (vermelha) ocupando este papel de guias espirituais dos centros kardecistas brasileiros ou publicando livros inspiradores.

Por fim, é importante que o espiritismo —lideranças, federativas, centros etc.—ouça e dialogue com o movimento negro organizado e com as tradições ancestrais negras e indígenas (incluindo a umbanda, o candomblé, o santo daime, a pajelança etc.), pois há muito que aprender e, certamente, ao fazer isso, os espíritas poderão despertar de seu sono francês/branco/europeu e saber o quanto (ainda!) são atravessados por concepções racistas e hierarquizadoras.

É hora de repensar todas essas questões e refazer caminhos, pois já estamos no século XXI e não na Europa do século XIX. Kardec é fundamental e necessário, mas não há no espiritismo o dogma da infalibilidade papal e caminhar com a ciência exige mente aberta, pesquisa continua e atualização. O espiritismo kardecista precisa abraçar com paixão a luta antirracista ou será ultrapassado por ela.

Sororidade e outras palavras difíceis

Feminismos com Elizabeth Hernandes (EàE-DF)

A mulher negra caminhava rápido em direção à portaria do condomínio. Era sábado, quase sete da noite e sabe Deus quando passaria um ônibus porque estamos em Brasília. O sistema de transporte público da Capital é rigorosamente planejado para facilitar a atividade dos estupradores: poucos veículos e muitos pontos desertos cercados de cerrado, principalmente nos bairros “nobres”, onde as casas são iluminadas e as ruas escuras. Toca o celular. Ela hesita em atender. Deve ser o marido querendo saber do jantar. Melhor chegar logo na parada e esperar a sorte de passar ônibus para a Rodoviária do Plano Piloto. Melhor não perder tempo se explicando. Para não exibir o telefone novo lá no ponto de ônibus, resolve desligar e vê que não é o marido. É a nova cliente, cuja casa acabara de deixar. “Ôxi! O que será que essa mulher ainda quer?“ – Ketlin[1], onde você está? Ela se assusta, pois a mulher (que foi educada e gentil o dia todo) falou alto, pareceu nervosa. – Tô indo pra parada, mas ainda tô aqui dentro, perto daqueles aparelho de malhar. – Mas eu não te disse que te levaria até a Rodoviária, mulher?! – Mas eu achei que já tava muito tarde… não quis incomodar… não vi a senhora se arrumar pra sair. – E porque eu me arrumaria para te levar até a Rodoviária, criatura? – Mas eu achei que a senhora fosse sair pra outro lugar e me dar carona, que era caminho… – Ketlin, fica parada aí, agora, nesse banco perto dos aparelhos. Tô indo aí. Não saia porque nem vão te liberar na portaria. – Mas o que aconteceu, Dona Márcia? – Te falo já, me espera. “Agora lascou! Será que sumiu alguma coisa e ela pensa que fui eu?” Em dois minutos a mulher branca para o carro e já vai falando. – Criatura, como assim você sai sem me falar nada?! – Mas Dona Márcia, eu me enrolei porque ainda não conhecia direito o jeito da sua casa e aí ficou tarde. É assim mesmo no primeiro dia. Eu esqueci de fazer alguma coisa? A senhora tava lá no computador e eu pensei: bom, acho que ela não vai mais sair. E resolvi tomar logo meu rumo porque nem sei o horário dos ônibus por aqui. – Mas eu não falei que ia te levar?! – Pensei que a senhora tinha esquecido, que tinha desistido de sair. E a culpa do atraso no serviço foi minha. O carro segue entre as ruas do bairro de alto IDH, muito agradável para quem tem carro, muro, porteiro e segurança, na capital do Brasil, zil, zil. As duas mulheres conversam sobre tudo e nada, enquanto o veículo avança na escuridão de Brasília, conhecida apenas dos que se locomovem a pé ou de ônibus. – Dona Márcia, se a senhora não vai sair, por que está me levando até essa lonjura da Rodoviária? – Porque ficou tarde e lá é mais seguro e tem mais ônibus. – Mas a culpa foi minha, dona Márcia, eu que me enrolei. – Ketlin… você conhece a palavra sororidade? Agora a branca tava calma e sorridente de novo. – Solidariedade? – Não. So-ro-ri-da-de. Ketlin tenta repetir, mas não acerta. – Mas solidariedade, você sabe o que é, né? – Sim, é quando as pessoa ajuda as outra. – Então. Sororidade é um tipo de solidariedade que uma mulher presta a outra pelo fato de ambas serem mulheres. – Tipo me levar na Rodoviária? Agora Ketlin está descontraída. – Sim. Como eu também sou mulher, sei que é muito inseguro para todos ficar naquela parada a essa hora, mas é ainda mais inseguro para as mulheres. – É perigoso mesmo, dona Márcia. Minha vizinha foi assaltada aqui perto, numa parada do Lago Sul. Perdeu o salário todinho mas graças a Deus que não aconteceu o pior. Mas Dona Márcia, a senhora não anda de ônibus, por que tem medo das paradas? – Porque eu leio as notícias, eu também conheço as estatísticas e a subnotificação. Como eu também sou mulher, sei que esse “pior” acontece nas paradas de ônibus e em todo lugar, até dentro de casa. Então a gente tem que diminuir a probabilidade. Sororidade é isso: quando uma mulher ajuda outra porque sabe que tem alguns problemas, alguns “piores” que só acontecem com a gente porque a gente é mulher. – Eu tô entendendo o que a senhora tá falando mas olha, é muita palavra difícil… estatística, “soloridade”… Ah, dona Márcia. Eu vi que o PIX já caiu, mas a senhora errou e transferiu a mais. Posso descontar na próxima diária? Na próxima a senhora deposita só metade, pode ser? – Não, Ketlin, você não tem que devolver. Você trabalhou a mais e eu ajustei o valor. – Há, há, há, não! Comigo é tudo certinho e a culpa foi minha. Mas eu gostei dessa “soloridade”! – Não, Ketlin, pagar mais porque você trabalhou mais não é sororidade. – E o que é? – Capitalismo. – Eita, dona Márcia. Vou tê que aprender muita palavra pra trabalhar com a senhora! Mas agora não vou mais perguntar porque se eu correr eu pego o das 7:30 e chego em casa na mesma hora que eu ia chegar se tivesse pego dois ônibus. Sábado que vem a senhora me explica o que é capitalismo. Tem a ver com comunismo, né? – Bom… Agora sou eu quem vai ter de pensar sobre a associação que você fez. Mas no sábado eu te respondo. Ketlin corre escada acima pra não perder o ônibus de sete e quinze: “gostei dessa dona.” Qualquer semelhança com a realidade, não é coincidência. É estatística, probabilidade, análise de dados e, também, pontos fora da curva[2][3].

Notas:

[1] Os nomes das personagens são fictícios.

[2] Tokarski, Carolina. Pinheiro, Luana. Trabalho Doméstico Remunerado e Covid-19: aprofundamento das vulnerabilidades em uma ocupação precarizada. Boletim de Análise Político-Institucional nº 26. IPEA, março 2021. Disponível em https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/boletim_analise_politico/210304_bapi_26_artigo_6.pdf

[3] IPEA. Tendências e desigualdades da mobilidade urbana no brasil i: o uso do transporte coletivo e individual. Texto para Discussão N. 2.673. Rio de janeiro, Jul/2021. Disponível em https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/210803_td_2673.pdf

A “caridade” como refúgio para espíritas sem compaixão

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Avel Chuklanov / Unsplash
Boa parte da teoria e da prática espírita tradicional se apóia na frase de Allan Kardec que afirma que “fora da caridade não há salvação”. A frase, em geral, é interpretada fora de seu contexto de oposição à máxima católica “fora da igreja não há salvação” e dá à caridade dimensões que podem ganhar contornos, pelo menos, incongruentes com a ideia kardequiana. Um exemplo do mau entendimento do termo caridade gritou na palestra de Carlos Baccelli, transmitida online no dia 6 de junho de 2021 pela CESDA (Casa Espírita Seara do Divino Amigo)[1], da cidade de Sacramento, MG, e cujo tema foi justamente “Fora da caridade não há salvação”. O orador afirma que a pobreza favorece “uma bênção, a oportunidade de trabalhar, a oportunidade de servir”. O contexto que ele apresenta é de um suposto grupo de espíritas brasileiros residentes no Canadá que, segundo o palestrante, não pode fazer caridade porque “o governo cuida de tudo, não há fome, não há pessoas na miséria”. A fala mansa de Baccelli fala muito da concepção hegemônica no espiritismo tradicional no que se refere à prática de caridade. A palavra é aprisionada pela noção de assistencialismo e apoio material que pressupõe que haja sempre um necessitado e um abonado, instrumentalizada por suas posses a realizar a caridade. Esta visão estreita e limitada condiciona a prática de caridade à existência de desigualdade, na qual inclusive a possibilidade de desenvolvimento espiritual pelo exercício da caridade é privilégio de quem tem posses materiais. Aos necessitados restaria o crescimento pelo sofrimento? O altruísmo é restrito a quem tem posses? Os filiados a essa concepção cínica de caridade com certeza não leram, ignoraram ou não compreenderam o que o próprio Kardec diz em “O livro dos espíritos”, na questão 930: “Numa sociedade organizada segundo a lei de Cristo ninguém deve morrer de fome”. A aceitação da desigualdade e a interpretação da miséria como “bênção” não é apenas a negação de tudo o que professa o evangelho de Jesus, mas no caso em questão uma apropriação do sofrimento alheio como trampolim para o regozijo da sua alma supostamente caridosa. Mas verdadeiros cristãos entenderiam as palavras do palestrante como tripudiantes em relação ao outro. Esta “caridade” vertical se revela como arrogante e dissimula a falta de compaixão efetiva, de empatia real, de solidariedade e fraternidade. Antes roga pela existência do infortúnio alheio para que possa desenvolver sua meritocracia espiritual. A questão 806 de “O livro dos espíritos” é assertiva ao dizer que a desigualdade não é natural, muito menos divina. “É lei da natureza a desigualdade das condições sociais?”, indaga Kardec aos espíritos, que lhe respondem sem possibilidade de dupla interpretação: “Não: é obra do homem e não de Deus”. A caridade legítima é a que se nutre da compaixão, da solidariedade e da empatia. É a que se movimenta pelo desejo de ver o bem do irmão por meio da libertação efetiva das privações. Fora disso, é tudo demagogia, arrogância e exercício de suposta superioridade. Caridosos são os que lutam contra a desigualdade, pela libertação, pela consciência do direito à igualdade. Caridosos são os que lutam por sociedades igualitárias. São os que auxiliam quem quer que seja sem juízo moral de “merecimento”. Caridoso é quem liberta da fome, da ignorância e das discriminações. Que Deus perdoe os que veem no sofrimento alheio uma oportunidade para sua expiação pessoal.  

Nota:

[1] https://youtu.be/GWLGRiF5Ru8

EàE repudia misoginia e homofobia de vereador espírita Edson Sardano, de Santo André

O coletivo Espiritas à Esquerda vem a público repudiar veementemente as falas extremamente misóginas e lgbtfóbicas proferidas por Edson Sardano (@edsonsardano), vereador de Santo André, SP, pelo PSD, na live “Postura dos espíritas em tempo de eleição” promovida pelo grupo de direita “Espiritas na Política” no Facebook. Diante de falas ignorantes e intolerantes, não cabe mais o silêncio. Através do princípio da reencarnação, os espíritos que auxiliaram Kardec ratificam a beleza da diversidade humana que propicia a evolução dos seres e das coisas. Nas sociedades que ainda engatinham no percurso à comunhão e à fraternidade, onde o mal sobrepuja o bem, onde a organização social se dá por meio da opressão, onde a diversidade é perseguida, torturada e assassinada, continuamos a ser o país que mais mata LGBTs no mundo e falas que buscam invisibilizar a pluralidade de caracteres de todos nós, seres pensantes, confirmam a baixeza moral e intelectual da população terrestre, perpetuam essa condição entre as massas e corroboram a violência contra as minorias sociais. Não mais! Expor o mal e não ser conivente com ele é o primeiro passo para a transformação que nos levará a uma organização mais justa, equânime, igualitária, fraterna e inclusiva, na qual a visibilidade e a representatividade confirmarão que devemos ser quem somos: plurais, diversos, únicos. Não há espaço para intolerância no espiritismo, assim como não há espaço para manutenção de opressões, porque a proposta espírita é ferramenta de (r)evolução. O vídeo com as falas repulsivas do vereador foi publicado como denúncia pelo ativista Antonio Isupério (@isuperio), que também faz parte do Espíritas à Esquerda, no Instagram, conforme vemos abaixo.  
 
 
 
 
 
 
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Uma publicação compartilhada por LGBT ANTIRACIST ✊??️‍? (@isuperio)

Teocracia: um projeto de estado

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Foto: Geron Dison/Unsplash

A teocracia fundamentalista se instala no nosso país a passos largos. Se antes os avanços de setores radicais e fundamentalistas de igrejas várias sobre recursos e espaços do estado brasileiro era tímido e claudicante, como a testar possibilidades, agora, no período pós-golpe de 2016, é violento e intenso, explicitando o projeto em curso.

De um lado, o Congresso Nacional e o poder executivo, aliados no projeto de transformação do estado numa teocracia cristã, sob os olhares sempre desatentos e, por vezes, coniventes do poder judiciário, esforçam-se em dar a igrejas neopentecostais cada vez mais recursos oriundos do estado nacional, seja por meio do aumento significativo de propagandas do governo federal nas emissoras de rádio e TV dessas igrejas[1], ou por meio de absurdos perdões às mesmas igrejas de dívidas bilionárias com o estado[2].

Além desse indecente assalto aos cofres públicos, portanto assalto ao bolso de todo o povo brasileiro, independentemente de sua fé ou falta dela, o estado foi completamente tomado por pessoas escolhidas apenas pela crença que adotam, e não por suas capacidades técnicas ou administrativas[3]. Isso tem um nome muito claro: aparelhamento do estado. O estado brasileiro hoje está completamente aparelhado por pastores, crentes e fiéis que têm como única “virtude” a fé neopentecostal que professam. E deixam isso muito claro no trato das questões administrativas dentro do serviço público federal.

Por outro lado, e dando seguimento ao projeto teocrático de precarização educacional e científica da sociedade brasileira, os números de investimentos no setor de pesquisa e desenvolvimento (P&D) ruiu drasticamente desde 2016, mostrando a tendência do projeto social teocrático em ação. Se em 2015 o país alcançou seu maior orçamento histórico em P&D, com valor acima de R$ 13 bilhões, em 2020, após quedas anuais sucessivas, esse valor esteve abaixo de R$ 2,5 bilhões[4], como mostra o gráfico que ilustra esse texto, cuja fonte é um estudo do IPEA, órgão do próprio governo federal.

A proposta, portanto, torna-se evidente: menos ciência, pesquisa, educação, Constituição; mais pastores, igrejas e textos ditos sagrados. O Brasil tem feito uma escolha sobre seu futuro a cada nova eleição em que coloca nos poderes republicanos pessoas e grupos que atentam contra os próprios valores republicanos. Mas essa escolha, a história mostra à mancheia, é um caminho de perda de direitos e liberdades, de perseguições e torturas, de injustiças e desigualdades, de trevas e sombras.

Esse é um momento histórico importante e todos os que aspiram por uma nova sociedade de justiça e fraternidade devem engajar-se na luta contra o projeto de transformação da sociedade brasileira numa teocracia fundamentalista cristã, numa Arábia Saudita cristã. E essa luta passa, necessariamente, pela luta contra o talibã cristão que se apossou do estado brasileiro. Não é uma questão de respeito à fé alheia ou do direito inalienável de professá-la em espaços privados, mas a fé criminosa que faz do Brasil uma sociedade teocrática deve ser denunciada e seus militantes combatidos.

Quanto aos espíritas, muitos se entregaram inocente e sofregamente ao projeto neopentecostal de tomada do estado brasileiro, amasiados pelo canto da sereia do obtuso discurso religioso conservador, sem se darem conta de que, logo ali, serão perseguidos por sua fé desviante da teocracia pré-instalada. Os bolsoespíritas que ainda mantêm sua posição em relação a esse projeto são parceiros dessa aberração político-teocrática e devem ser combatidos e denunciados sem parcimônia, cotidianamente, pois, além de serem propagadores dentro do meio espírita e entre seus incautos seguidores desse tenebroso projeto, são pessoas que deturpam todas as propostas espíritas de amor, fraternidade e justiça social. E, como bem lembra mensagem famosa das obras espíritas,

[…] Se as imperfeições de uma pessoa só a ela prejudicam, nenhuma utilidade haverá nunca em divulgá-la. Se, porém, podem acarretar prejuízo a terceiros, deve-se atender de preferência ao interesse do maior número. Segundo as circunstâncias, desmascarar a hipocrisia e a mentira pode constituir um dever, pois mais vale caia um homem, do que virem muitos a ser suas vítimas. Em tal caso, deve-se pesar a soma das vantagens e dos inconvenientes.”[5]

Espíritas verdadeiros, unamo-nos na luta contra o talibã cristão, esteja ele onde estiver: numa igreja neopentecostal ou numa casa espírita qualquer.

Notas:

[1] https://www.brasildefato.com.br/2020/06/16/governo-gastou-r-30-milhoes-em-radios-e-tvs-de-pastores-que-apoiam-bolsonaro

[2] https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/09/07/congresso-perdoa-r-1-bi-em-dividas-de-igrejas-bolsonaro-precisa-sancionar.htm

[3] https://veja.abril.com.br/blog/matheus-leitao/os-tres-pastores-de-bolsonaro/

[4] KOELLER, Priscila. Investimentos federais em pesquisa e desenvolvimento: estimativas para o período 2000-2020. https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/202189_nt_investimento%20federais.pdf

[5] KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Cap. X. Item 21.