Não existe Deus no céu

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Hoje estrearemos uma nova coluna nas redes sociais do Espíritas a esquerda: é a “Releituras kardecistas”, do teólogo e sociólogo Marcio Sales Saraiva. É uma honra para nós contar com a presença do Marcio entre nossos colunistas.

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Releituras kardecistas

Não existe Deus no céu

O povo —chamemos de senso comum— costuma dizer que “Deus está vendo” porque ele “sabe de todas as coisas”, “castiga” e “abençoa”. Nos momentos difíceis, recomendam-nos: “segura na mão de Deus e vai”.
Todas essas expressões populares de fé têm lá sua beleza e sabedoria prática, mas nada tem com o espiritismo fundado por Allan Kardec. Basta ler a resposta da questão 1 de “O livro dos espíritos” (tradução de Herculano Pires):
“O que é Deus? — Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.”
Os espíritos negam que Deus seja uma pessoa (teísmo), tal como creem os cristãos católicos e evangélicos. Para o espiritismo, seguindo a concepção que se tornou clássica na modernidade iluminista, Deus é um mecanismo cósmico, uma “inteligência suprema” posto que é incognoscível para nós, os humanos, sapiens que derrotaram os outros humanos “concorrentes”. Além disso, Deus ou Deusa (existe sexo?) é causa primária de todas as coisas existentes no mundo espiritual e físico. Deusa é a causa, o mecanismo, a inteligência.
Esta concepção kardecista dialoga com as concepções filosóficas mais avançadas da contemporaneidade, em que existe uma imensa resistência em relação às explicações metafísicas e totalitárias, supostamente detentoras da verdade absoluta.
Se para o kardecismo, Deus não é uma pessoa lá no céu sentado em trono de ouro, mas um mecanismo cósmico-causal e inteligente, então Deus é imanente, está “dentro” da vida e não fora (concepção transcendental) ou em algum lugar especial. É este Deus imanente, causal, cósmico e criativo que irá aparecer em falas importantes do profeta Jesus de Nazaré quando interrogado pelos ortodoxos fariseus. Estes últimos queriam saber onde (lugar) está o Reino de Deus.
“[não] dirão: Ei-lo aqui! ou: Ei-lo ali! pois o reino de Deus está dentro de vós” (Lucas 17,21).
Jesus apresenta aqui uma concepção imanente de Reino de Deus. É uma realidade interior. De igual forma, a presença do Cristo. É o que diz em Marcos 13:21:
“Se, todavia, alguém lhes anunciar: ‘Eis aqui o Cristo!’ Ou ainda: ‘Ei-lo logo ali!’ Não deis qualquer crédito a isso!”
Assim como o Reino, Cristo, a Luz, a Palavra que vem de Deus, a Palavra criadora (veja no capítulo 1 de Gênesis) está dentro de cada um de nós. Somos descendentes da causa primária, da inteligência suprema.
Na questão 3 (“O livro dos espíritos”), os mentores invisíveis da vida nos alertam para a pobreza de nossa linguagem (“incompleta”) para nomear a divindade ou mesmo defini-la em seus supostos atributos.
“Pobreza da linguagem dos homens, insuficiente para definir coisas
que estão além da sua inteligência.”
De fato, como pode a inteligência humana e limitada pelo espaço-tempo da cultura, definir com clareza o que é a inteligência suprema, a causa de todas as coisas?
O kardecismo nos ensina a sermos humildes diante da grandiosidade cósmica do sagrado. A ideia de um “pensamento fraco”, abandonando os velhos e arrogantes sistemas filosóficos que tudo explicavam, é uma ideia presente na filosofia pós-moderna de Gianni Vattimo. Nela encontramos a ênfase na caridade-amor diante de um “deus morto” (o deus do teísmo, diga-se).
“Quando rejeitamos a religião, em especial o cristianismo, como verdade e o adotamos como caridade, aí se torna possível um diálogo inter-religioso honesto onde eu não sou o portador da verdade aceitando conversar com ignorantes. Eu passo a reconhecer no outro uma fé legítima, tão legítima como a minha. E isso tem a ver com a afirmação do pluralismo cultural que, também em consequência das relações políticas alteradas entre Ocidente e outros mundos culturais, que passaram do estado de colônia ao de nações independentes, fez emergir a parcialidade daquilo que por muitos séculos a filosofia europeia considerou a essência da humanitas; tem a ver ainda com a crítica da ideologia de fundo marxista; com a descoberta do inconsciente por parte de Freud, com a desmitização radical a que Nietzsche submeteu a moral e a metafísica tradicionais, inclusive o próprio ideal da verdade” (VATTIMO, p. 185).
Pensar o espiritismo como “pensamento fraco” centrado na caridade não numa “verdade objetiva”, temos aí uma das possibilidades de hermenêutica da vida humana e do sentido da existência. Fazer isso é repensar Allan Kardec para o século 21, retomando o espanto diante das coisas novas. É pegar o pensamento de Kardec e colocá-lo em novos barris de onde sairá um vinho novo para que possamos celebrar com alegria, sem aquela repetição nostálgica do anteontem. É recriar Kardec. E não era este o sonho dele, de manter o espiritismo atualizado?
Referências:
A Bíblia Sagrada. Tradução Almeida revista e atualizada. Barueri: SBB, 1993.
KARDEC, Allan (1804-1869). O livro dos espíritos: filosofia espiritualista; tradução de J. Herculano Pires. São Paulo: FEESP, 1995.
VATTIMO, Gianni. Adeus à verdade. Petrópolis: Vozes, 2016.

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