Em novembro de 2020 a coordenação do coletivo Espíritas à Esquerda (EàE) acompanhou estarrecida a repercussão do caso de racismo dentro de um supermercado em Porto Alegre, no qual o desfecho foi a morte de um homem negro. Como Kardec afirma em “O livro dos médiuns” que (…) os jornais formigam de fatos, de narrativas, de acontecimentos, de rasgos de virtudes ou de vícios, que levantam graves problemas morais, cuja solução só o Espiritismo pode apresentar (…)”1, a coordenação do EàE iniciou as discussões sobre o problema do racismo e como a doutrina espírita pode nos instrumentalizar na luta antirracista. Porém, nos deparamos com o primeiro desafio: “conteúdo de determinados trechos das obras literárias de ALLAN KARDEC, vistos como supostamente discriminatórios e preconceituosos em relação a pessoas negras e de outras etnias”, os quais foram listados pelo Ministério Público Federal da Bahia (MPF-BA) em 2007. Por isso, entendemos que o primeiro passo da luta antirracista deveria ser estudar e debater esses textos dentro do próprio movimento espírita. Foi assim que surgiu o Evangelho segundo o espiritismo – edição antirracista lançado pelo EàE no dia 20 de novembro de 2022, dia da Consciência Negra.
Antonio Isuperio, ativista do movimento negro e membro do EàE à época, foi o grande incentivador para o estudo e o debate do racismo científico reproduzido por Allan Kardec nos textos da doutrina espírita apontados pelo TAC do MPF-BA. A coordenação do EàE continuou com o estudo daqueles trechos e se prepara para o lançamento da segunda obra da Coleção Antirracista: O livro dos espíritos – edição antirracista, em 18 de abril de 2023, dia escolhido pela sua relevância para o movimento espírita, pois é a data celebrada como a fundação do espiritismo, quando Allan Kardec lançou a primeira edição de O livro dos espíritos, em 1857, com apenas 501 questões, que posterirmente ele revisou e ampliou para as atuais 1019 questões.
A Coleção Antirracista seguirá adiante, limitando-se, nessa primeira fase, aos 106 trechos que foram apontados pelo Termo de Ajuste de Conduta – TAC, mesmo que haja outros textos identificados como problemáticos. O objetivo das propostas de redações antirracistas permanece o mesmo: propor o diálogo com o movimento espírita sobre o racismo científico do séc. XIX e o racismo estrutural e estruturante da sociedade que mata e deixa morrer milhares de pessoas negras no Brasil e no mundo. Porém, até agora, passados quase cinco meses, poucas pessoas e grupos espíritas responderam ao nosso convite ao diálogo de propostas para um espiritismo laico e livre pensador. Continuamos com esperança de chegarmos logo à fase de aceitação do necessário debate sobre o racismo e, mais importante do que isso, o combate ao racismo e demais propostas para a luta antirracista dentro do movimento espírita. “É necessário que o escândalo venha”2 como disse Jesus e anotou Kardec comentando que “quando estiverem cansados de sofrer devido ao mal, procurarão remédio no bem”.
1- KARDEC, Allan. O livro dos médiuns, ou, guia dos médiuns e dos evocadores: Espiritismo experimental. Segunda parte – Cap. XXIX – Assuntos de estudo. p. 368.
2- KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Cap. VIII – Bem-aventurados os que têm puro o coração. pág. 129.
Mudar o que ele disse ou excluir o que ele disse, não faz ele deixar de ser racista. E como acreditar na “sabedoria” de um ser racista?
Kardec foi um homem de seu tempo. Ele reproduziu o pensamento científico da época em que viveu. A Europa era racista, a Igreja Católica era racista. Julgarmos Kardec com os critérios da sociedade atual é anacronismo.