Vacinas, corrupção e cortinas
Esquerda Dissidente na Revolução Russa
Esquerda dissidente na Revolução Russa
1919-1922: A Oposição Operária[1][2] Uma breve história de um grupo dentro do Partido Comunista Russo que lutou contra o aumento da burocracia partidária e pelo controle sindical sobre a indústria que, em 1922, havia sido dissolvida à força pelo partido. A Oposição Operária começou a se formar em 1919, como resultado das políticas do comunismo de guerra, que estabeleceram uma precedência para a dominação do Partido Comunista sobre filiais e sindicatos locais do partido. Durante a guerra civil, a Oposição Operária começou a agitar-se contra a falta de democracia no Partido Comunista como resultado das ações centralizantes da burocracia do partido. A Oposição Operária, composta quase inteiramente por trabalhadores sindicalizados (com força particular entre os metalúrgicos), defendeu a restauração do poder para os sindicatos e sindicatos locais do partido e foi liderada por respeitados bolcheviques veteranos como Alexander Shliapnikov, Alexandra Kollontai e Sergei Medvedev. Na 9ª Conferência Russa do Partido Comunista, em setembro de 1920, as discussões sobre o crescimento da burocracia partidária e o funcionamento da economia soviética levaram a uma grande controvérsia. Por um lado, Lênin argumentou que era papel dos burocratas partidários ensinar os trabalhadores sindicalizados a administrar a economia do país; e por outro lado, a Oposição Operária tomou a linha oposta; que deveriam ser os próprios sindicatos, não burocratas partidários, que deveriam assumir a tarefa de construir a economia comunista. Como Alexandra Kollontai escreveu em seu panfleto seminal da Oposição: “Não pode haver autoatividade sem liberdade de pensamento e opinião, pois a autoatividade se manifesta não só na iniciativa, na ação e no trabalho, mas também na independência. Não damos liberdade à atividade de classe, temos medo de críticas, deixamos de confiar nas massas: portanto, temos burocracia conosco. É por isso que a Oposição Operária considera que a burocracia é nossa inimiga, nosso flagelo e o maior perigo para a existência futura do próprio Partido Comunista. […] A Oposição Operária disse o que há muito tempo foi impresso no ‘Manifesto comunista’ por Marx e Engels: a construção do comunismo pode e deve ser obra das próprias massas trabalhadoras. A construção do comunismo pertence aos trabalhadores.” – Alexandra Kollontai, “A Oposição Operária”. O grupo exigiu que a administração industrial fosse responsabilidade dos sindicatos e que os sindicatos controlassem a economia nacional como um todo. Apesar de ter um apoio substancial entre as bases do Partido Comunista, a liderança do partido recusou sua plataforma em sua totalidade. Lênin chegou ao ponto de afirmar que o partido “deve combater o desvio sindicalista, que matará o partido a menos que esteja totalmente curado dele”. (Lênin, “A crise partidária”). A Oposição também argumentou que, para combater a burocratização, todos os não proletários deveriam ser expulsos do Partido Comunista e de posições administrativas do governo. Eles também argumentaram que tais cargos deveriam ser eleitos, não nomeados. Deve-se ressaltar, no entanto, que o apelo da Oposição Operária para que o controle da economia nacional fosse entregue aos sindicatos não era tão honroso quanto parece. O Conselho Central de Sindicatos Russos era inteiramente um braço do estado bolchevique, preocupando-se principalmente de disciplinar os trabalhadores em vez de lutar por melhores condições. Eles eram totalmente diferentes dos comitês de fábrica, que tinham sido organizados na base pelos próprios trabalhadores. Em 1918, Shliapnikov chegou a dizer que os comitês fabris estavam colocando o controle “nas mãos de uma multidão que, devido à sua ignorância e falta de interesse na produção, está literalmente colocando um freio em todo o trabalho” (citado no Controle dos Trabalhadores de Carmen Sirianni e democracia socialista: A Experiência Soviética). Embora a Oposição Operária argumentasse repetidamente que o comunismo só poderia ser construído pelos próprios trabalhadores e era a favor do controle sindical total da economia para conseguir isso, não era de forma alguma o mesmo que o controle real dos trabalhadores da economia. Para ser franco, eles preferiram que os burocratas que administravam a economia fossem dos sindicatos, e não do Partido Comunista. Tais problemas ideológicos internos que a Oposição Operária sofreu relacionavam-se quase inteiramente à sua incapacidade de rejeitar alguns dos princípios centrais do bolchevismo e romper inteiramente com o Partido Comunista Russo. Geralmente, os membros da Oposição Operária eram experientes bolcheviques organizadores de base, oriundos da classe trabalhadora que passaram a vida inteira agitando sua classes. Como tal, eles naturalmente tinham uma lealdade aos órgãos do poder de classe que haviam sido criados em tempos de luta. No entanto, sua lealdade simultânea ao bolchevismo e ao Partido confundiu a questão do papel da organização revolucionária e sua relação com a classe trabalhadora. Assim, embora eles possam ter argumentado que a “construção do comunismo pode e deve ser o trabalho das próprias massas trabalhadoras”, sua incapacidade de rejeitar o vanguardismo do socialismo autoritário significava que eles também argumentavam que “o Partido Comunista Russo é o único líder político responsável da luta revolucionária na construção das massas operária e camponesa”. (Shliapnikov, sobre as relações entre o Partido Comunista Russo, os soviéticos e os sindicatos de produção). Lendo os textos da Oposição Operária, um fato gritante é que, embora argumentassem repetidamente pelo controle sindical da economia e por uma maior democracia dentro do Partido Comunista, eles não desafiaram a dominação política do próprio partido. Embora a Oposição Operária quisesse maior controle sindical da economia, os cargos reais de poder administrativo deveriam ser eleitos através das filiais locais do partido. O problema básico que a Oposição Operária tinha com o Partido Comunista Russo era que ele estava nomeando burocratas em posições de poder a partir do centro, em vez de elegê-los em nível local. Eles não pretendiam desafiar o monopólio do próprio Partido Comunista. Os eventos de Kronstadt, e sua reação a ele, mostram mais claramente esses problemas. Quando Kronstadt entrou em erupção em oposição à dominação comunista da Rússia e exigiu um retorno ao slogan “Todo o poder aos sovietes”, a Oposição Operária se apoiou em seu partido e muitos até se ofereceram para ajudar no ataque militar à revolta. Kronstadt marcou um problema para a Oposição Operária: por que sua classe estava atacando o Partido Comunista, os únicos “líderes políticos responsáveis da luta revolucionária”? Sua incapacidade de romper com a bagagem vanguardista do leninismo significava que eles finalmente encontraram falhas com sua classe e não com os novos burocratas do Estado. No entanto, mesmo com uma lealdade tão grande ao leninismo, a Oposição Operária foi um desvio muito grande do leninismo ortodoxo do partido. No 10º Congresso do Partido, em março de 1921, as posições da Oposição Operária foram rejeitadas, suas ideias condenadas, e foram ordenadas a dissolver-se. Embora os membros da Oposição continuassem sua agitação, eles ainda se encontravam sob ataque da burocracia do Partido Comunista. Shliapnikov falou de como os membros da Oposição dos Trabalhadores foram expulsos do partido, às vezes sistematicamente transferidos para diferentes distritos, às vezes totalmente expulsos do partido. Ações semelhantes foram tomadas contra sindicatos que tinham uma lealdade tradicional à Oposição Operária. Por exemplo, a conferência sindical dos metalúrgicos de 1921 votou uma lista de candidatos recomendados para a liderança sindical do Comitê Central do Partido Comunista. Esta votação, no entanto, foi ignorada e os líderes partidários nomearam seus próprios candidatos para o cargo, no intuito de lembrar os metalúrgicos quem estava no poder, pois seu sindicato tinha sido um centro de atividade da Oposição Operária. Em 1922, a Oposição dos Trabalhadores seria finalmente derrotada. O 11º Congresso do Partido veria a liderança do partido apresentar uma moção para expulsar os líderes da Oposição Operária do partido. Embora os laços estreitos da Oposição com as bases do partido significaram que a moção falhou, o grupo foi quase totalmente dissolvido como resultado do esforço conjunto dos líderes partidários. Por exemplo, dos 37 delegados da Oposição Operária ao 10º Congresso, apenas quatro conseguiram retornar como delegados votantes para o próximo congresso. Após tal pressão, a Oposição Operária entrou em colapso. Em seu Apelo dos 22, distribuídos no congresso do partido em 1922, eles imploraram aos delegados do Comintern para reconhecer as “medidas repressivas contra a expressão [de suas] opiniões dentro do partido” e ajudar a “acabar com todas essas anormalidades”. Esses gritos de socorro, no entanto, caíram em ouvidos surdos. Em 1926, os membros restantes da Oposição se juntaram brevemente à Oposição de Esquerda liderada por Trótski, que, agora se descobrindo em desvantagem com a burocracia do partido, começou a lutar contra a crescente burocracia e a falta de democracia que ele mesmo ajudou a criar. De fato, o destino de Trótski se assemelharia ao da Oposição. Depois de abandonar a classe operária russa em favor do poder político e da lealdade partidária, a Oposição Operária foi expulsa do partido e muitos de seus líderes (incluindo Shliapnikov e Medvedev) mais tarde seriam julgados e executados por seus pequenos desvios da ideologia partidária ortodoxa. Assim como Trótski, a Oposição Operária seria destruída pelas estruturas autoritárias que ajudaram a criar com o abandono dos rebeldes de Kronstadt, marcando a derrota final da única força na Rússia que poderia tê-los resgatado de seu destino. Publicado no Facebook em 03 de Setembro de 2020. Referências: Notas: [1] Traduzido por Medvedev Sergei Pavlovich a partir do original, disponível em: https://libcom.org/history/1919-1922-workers-opposition [2] Publicado pela página Crítica Desapiedada Link Postagem original: https://criticadesapiedada.com.br/…/esquerda…/ Imagem da postagem: Lideranças da Oposição Operária participando de evento do Partido Comunista, com destaque para Alexandra Kollontai, autora do famoso panfleto “A Oposição Operária”.Paulo Freire e a Pedagogia do Oprimido
Primeiras palavras[1] Paulo Freire AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO E AOS QUE NELES SE DESCOBREM E, ASSIM DESCOBRINDO-SE, COM ELES SOFREM, MAS, SOBRETUDO, COM ELES LUTAM. As páginas que se seguem e que propomos como uma introdução à “Pedagogia do oprimido” são o resultado de nossas observações nestes cinco anos de exílio. Observações que se vêm juntando às que fizemos no Brasil, nos vários setores em que tivemos oportunidade de exercer atividades educativas. Um dos aspectos que surpreendemos, quer nos cursos de capacitação que damos e em que analisamos o papel da conscientização, quer na aplicação mesma de uma educação realmente libertadora, é o “medo da liberdade”, a que faremos referência no primeiro capítulo deste ensaio. Não são raras as vezes em que participantes destes cursos, numa atitude em que manifestam o seu “medo da liberdade”, se referem ao que chamam de “perigo da conscientização”. “A consciência crítica (… dizem…) é anárquica.” Ao que outros acrescentam: “Não poderá a consciência critica conduzir à desordem”? Há, contudo, os que também dizem: “Por que negar? Eu temia a liberdade. Já não a temo”! Certa vez, em um desses cursos, de que fazia parte um homem que fora, durante longo tempo, operário, se estabeleceu uma dessas discussões em que se afirmava a “periculosidade da consciência critica”. No meio da discussão, disse este homem: “Talvez seja eu, entre os senhores, o único de origem operária. Não posso dizer que haja entendido todas as palavras que foram ditas aqui, mas uma coisa posso afirmar: cheguei a esse curso, ingênuo e, ao descobrir-me ingênuo, comecei a tornar-me crítico. Esta descoberta, contudo, nem me faz falta e me dá a sensação de desmoronamento”. Discutia-se, na oportunidade, se a conscientização uma situação existencial, concreta, de injustiça, não poderia conduzir os homens dela conscientizados, a um “fanatismo destrutivo” ou a uma “sensação de desmoronamento total do mundo em que estavam esses homens”. A dúvida, assim expressa, implicita uma afirmação nem sempre explicitada, no que teme a liberdade: “Melhor será, que a situação concreta de injustiça não se constitua num ‘percebido’ claro para a consciência dos que a sofrem”. Na verdade, porém, não é a conscientização que pode levar o povo à “fanatismos destrutivos”. Pelo contrário, a conscientização, que lhe possibilita inserir-se no processo histórico, como sujeito, evita os fanatismos e o inscreve na busca de sua afirmação. “Se a tomada de consciência abre o caminho à expressão das insatisfações sociais, se deve a que estas são componentes reais de uma situação de opressão”[2]. O medo da liberdade, de que necessariamente não tem consciência o seu portador, o faz ver o que não existe. No fundo, o que teme a liberdade se refugia na segurança vital, como diria Hegel[3], preferindo-a à liberdade arriscada. Raro, porém, o que manifesta explicitamente este receio da liberdade. Sua tendência é, antes, camuflá-la, num jogo manhoso, ainda que, às vezes, inconsciente. Jogo artificioso de palavras em que aparece ou pretende aparecer como o que defende a liberdade e não como o que a teme. Às suas dúvidas e inquietações empresta um ar de profunda seriedade. Seriedade de quem fosse o zelador da liberdade. Liberdade que se confunde com a manutenção do status quo. Por isto, se a conscientização põe em discussão este status quo ameaça, então, a liberdade. As afirmações que fazemos neste ensaio, não são, de um lado, fruto de devaneios intelectuais nem tampouco, de outro, resultam, apenas, de leituras, por mais importantes que nos tenham sido estas. Estão sempre ancoradas, como sugerimos no início destas páginas, em situações concretas. Expressam reações de proletários, camponeses ou urbanos, e de homens de classe média, que vimos observando, direta ou indiretamente, em nosso trabalho educativo. Nossa intenção é continuar com estas observações para retificar ou ratificar, em estudos posteriores, pontos afirmados neste ensaio. Ensaio que, provavelmente, irá provocar em alguns de seus possíveis leitores, reações sectárias. Entre estes, haverá, talvez, os que não ultrapassarão suas primeiras páginas. Uns, por considerarem a nossa posição, diante do problema da libertação dos homens, como uma posição idealista a mais, quando não um “blablablá” reacionário. “Blablablá” de quem se “perde” falando em vocação ontológica, em amor, em diálogo, em esperança, em humildade, em simpatia. Outros, por não quererem ou não poderem aceitar as críticas e a denúncia que fazemos da situação opressora, situação em que os opressores se “gratificam”, através de sua falsa generosidade. Daí que seja este, com todas as deficiências de um ensaio puramente aproximativo, um trabalho para homens radicais. Cristãos ou marxistas, ainda que discordando de nossas posições, em grande parte, em parte ou em sua totalidade, estes, estamos certos, poderão chegar ao fim do texto. Na medida, porém, em que, sectariamente, assumam posições fechadas, “irracionais”, rechaçarão o diálogo que pretendemos estabelecer através deste livro. É que a sectarização é sempre castradora, pelo fanatismo de que se nutre. A radicalização, pelo contrário, é sempre criadora, pela criticidade que a alimenta. Enquanto a sectarização é mítica, por isto alienante, a radicalização é critica, por isto libertadora. Libertadora porque, implicando no enraizamento que os homens fazem na opção que fizeram, os engaja cada vez mais no esforço de transformação da realidade concreta, objetiva. A sectarização, porque mítica e irracional, transforma a realidade numa falsa realidade, que, assim, não pode ser mudada. Parta de quem parta, a sectarização é um obstáculo à emancipação dos homens. Daí que seja doloroso observar que nem sempre o sectarismo de direita provoque o seu contrário, isto é, a radicalização do revolucionário. Não são raros os revolucionários que se tornam reacionários pela sectarização em que se deixam cair, ao responder à sectarização direitista. Não queremos, porém, com isto dizer –e o deixamos claro no ensaio anterior[4]– que o radical se torne dócil objeto da dominação. Precisamente porque inscrito, como radical, num processo de libertação, não pode ficar passivo diante da violência do dominador. Por outro lado, jamais será o radical um subjetivista. É que, para ele, o aspecto subjetivo toma corpo numa unidade dialética com a dimensão objetiva da própria ideia, isto é, com os conteúdos concretos da realidade sobre a qual exerce o ato cognoscente. Subjetividade e objetividade, desta forma, se encontram naquela unidade dialética de que resulta um conhecer solidário com o atuar e este com aquele. É exatamente esta unidade dialética a que gera um atuar e um pensar certos na e sobre a realidade para transformá-la. O sectário, por sua vez, qualquer que seja a opção de onde parta na sua “irracionalidade” que o cega, não percebe ou não pode perceber a dinâmica da realidade ou a percebe equivocadamente. Até quando se pensa dialético, a sua é uma “dialética domesticada”. Esta é a razão, por exemplo, por que o sectário de direita que, no nosso ensaio anterior, chamamos de “sectário de nascença” pretende frear o processo, “domesticar” o tempo e, assim, os homens. Esta é a razão também porque o homem de esquerda, ao sectarizar-se, se equivoca totalmente na sua interpretação “dialética” da realidade, da história, deixando-se cair em posições fundamentalmente fatalistas. Distinguem-se, na medida em que o primeiro pretende “domesticar” o presente para que o futuro, na melhor das hipóteses, repita o presente “domesticado”, enquanto o segundo transforma o futuro em algo pré-estabelecido, uma espécie de fado, de sina ou de destino irremediáveis. Enquanto, para o primeiro, o hoje ligado ao passado, é algo dado e imutável; para o segundo, o amanhã é algo pré-dado, prefixado inexoravelmente. Ambos se fazem reacionários porque, a partir de sua falsa visão da história, desenvolvem um e outro formas de ação negadoras da liberdade. É que, o fato de um conceber o presente “bem comportado” e o outro, o futuro como predeterminado, não significa que se tornem espectadores, que cruzem os braços, o primeiro, esperando a manutenção do presente, uma espécie de volta ao passado; o segundo, à espera de que o futuro já “conhecido” se instale. Pelo contrário, fechando-se em um “círculo de segurança”, do qual não podem sair, estabelecem ambos a sua verdade. E esta não é a dos homens na luta para construir o futuro, correndo o risco desta própria construção. Não é a dos homens lutando e aprendendo, uns com os outros, a edificar este futuro, que ainda não está dado, como se fosse destino, como se devesse ser recebido pelos homens e não criado por eles. A sectarização, em ambos os casos, é reacionária porque, um e outro, apropriando-se do tempo de cujo saber se sentem igualmente proprietários, terminam sem o povo, uma forma de estar contra ele. Enquanto o sectário de direita, fechando-se em “sua” verdade, não faz mais do que o que lhe é próprio, o homem de esquerda, que se sectariza e também se encerra, é a negação de si mesmo. Um, na posição que lhe é própria; o outro, na que o nega, ambos girando em torno de “sua” verdade, sentem-se abalados na sua segurança, se alguém a discute. Daí que lhes seja necessário considerar como mentira tudo o que não seja a sua verdade. “Sofrem ambos da falta de dúvida”[5]. O radical, comprometido com a libertação dos homens, não se deixa prender em “círculos de segurança”, nos quais aprisione também a realidade. Tão mais radical, quanto mais se inscreve nesta realidade para, conhecendo-a melhor, melhor poder transformá-la. Não teme enfrentar, não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo. Não teme o encontro com o povo. Não teme o diálogo com ele, de que resulta o crescente saber de ambos[6]. Não se sente dono do tempo, nem dono dos homens, nem libertador dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do tempo, para com eles lutar. Se a sectarização, como afirmamos, é o próprio do reacionário, a radicalização é o próprio do revolucionário. Daí que a pedagogia do oprimido, que implica numa tarefa radical, cujas linhas introdutórias pretendemos apresentar neste ensaio e a própria leitura deste texto não possam ser realizadas por sectários. Queremos expressar aqui o nosso agradecimento a Elza, de modo geral nossa primeira leitora, por sua compreensão e estímulos constantes a nosso trabalho, que também é seu. Agradecimento que estendemos a todos quantos leram os originais deste ensaio pelas críticas que nos fizeram, o que não nos retira ou diminui a responsabilidade pelas afirmações nele feitas. Publicado no Facebook em 30 de Agosto de 2020. Ref: [1] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. [2] WEFFORT, Francisco. Prefácio a Paulo Freire: educação como prática da liberdade. [3] HEGEL, Georg W. F. A fenomenologia do espírito. [4] FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. [5] ALVES, Márcio Moreira. Conversa de Paulo Freire com o autor. [6] “Enquanto o conhecimento teórico permaneça como privilégio de uns quantos ‘acadêmicos’ dentro do Partido, este se encontrará em grande perigo de ir ao fracasso”. LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução?
A luta por um estado laico é de todos
Toda nudez será castigada
Gilead é aqui ou uma defesa do estado laico
Farsas e Mentiras
Uma aula de racismo estrutural
Da necessidade de um novo movimento espírita
Permitido usar shortinho
Coluna Feminismos, por Elizabeth Hernandes
Espíritas à Esquerda é um dos muitos coletivos que ora estão propondo uma renovação no movimento espírita. Dentre os pontos a serem revistos, está o modo como o movimento tradicional trata a condição dos espíritos encarnados como mulheres.
No espiritismo tradicional, a mulher é sempre CIS, no sentido “senso comum” citado por Joana Burigo[1]: “confortable in skin”, traduzido livremente como “confortável na própria pele”. Mas a história é longa e apenas esse termo já rende muita discussão. Segundo Burigo, o “cis” dos estudos de gênero não vem do acrônimo de uma expressão coloquial e sim do prefixo latino que significa “do mesmo lado”, sendo usado em outras esferas da linguagem e não apenas no contexto dos estudos de gênero.
Segundo se percebe nos textos e ações do espiritismo tradicional, uma mulher, além de ter pele de mulher e, supostamente, estar confortável nesta, também deve atender a certos pré-requisitos. A ela é solicitado, por gentileza, que seja esteio –moral, emocional, econômico e quantos esteios se façam necessários– do lar, do ambiente de trabalho, do centro espírita, do condomínio, da comunidade etc. Melhor ainda que seja a imagem da renúncia e do trabalho incansável, preferencialmente não remunerado. Que seja uma personagem abnegada, caridosa, modesta, recatada e silenciosa. A recompensa virá no futuro.
Ocorre que os espíritos encarnam e reencarnam na condição de mulher e parece que essas recompensas nunca chegam ou que o mérito nunca é suficiente. Seria a promessa do Reino válida apenas para quem reencarna no gênero masculino?
Esta coluna vai tratar de assuntos relacionados ao feminismo e ao feminino, na acepção construída por Márcia Tiburi[2]: “O que eu chamo de feminino? A construção dos ideais da masculinidade que pesam sobre as mulheres: maternidade, sensualidade, formas corporais, gênero, gestos, papéis. Eu penso a teoria feminista como um gesto feminista de desconstrução que tem que passar pela desconstrução do feminino. A liberdade real das mulheres –travestis, transhomens e todo mundo– surge desse processo. Por que as pessoas precisam ser femininas? Não precisam. Mas ‘quem’ precisa que outra pessoa seja feminina??? Esta é uma pergunta melhor… Já o feminismo, eu o defendo sempre. E assumo o meu como um desejo de dialogar com o mundo em defesa da singularidade de cada pessoa, no qual estejam inclusas mulheres em sua pluralidade radical.”
É isso. Essa coluna terá como objetivo apresentar artigos, crônicas, poesias, reflexões, questionamentos, entrevistas e o que mais for possível sobre “defesa da singularidade de cada pessoa, no qual estejam inclusas mulheres em sua pluralidade radical.”[2]
Será editada por uma especialista em ser mulher, que se esforça em permanecer do próprio lado.
A ideia surgiu de uma discussão no Coletivo Nacional Espíritas à Esquerda (e como se discute, em coletivo, né?). Entretanto, a pessoa convidada para editar a coluna (esta que ora vos escreve) não tem tempo para abraçar mais uma tarefa. Alguma mulher se identifica com isso?
Ocorre que as questões femininas são tão urgentes e diárias que… a coluna surge assim mesmo, sem tempo. E a urgência do momento foi ditada pela notícia acerca de um “Conselho de Mulheres” de um condomínio de bairro de classe média, em Brasília. Esse “Conselho” enviou correspondência a uma moradora, com uma “solicitação de vestuário apropriado”. O texto pede que a moça não use “vestes que não sejam bermudas ou roupas mais adequadas”. A justificativa é que a vizinha estava fazendo os casais se sentirem constrangidos.[3]
Esta notícia é um berro sobre a necessidade de estudarmos, discutirmos e praticarmos o feminismo.
Talvez alguém proponha uma passeata em frente ao prédio, com muitas mulheres usando shortinho. Talvez haja reações agressivas ou de apoio. O modo de agir dos Espíritas à Esquerda é sempre na linha do mestre Paulo Freire[4] e pode ser passeata quando for possível e decidido coletivamente. As mulheres desse tal “Conselho”, que se arrogam o direito de determinar como uma “outra” mulher deve-se vestir, precisam ser defendidas delas mesmas, em primeiro lugar e a melhor defesa é… estudo, reflexão, diálogo (dialética também, mas isso fica pra outro dia, quem sabe). Então nasce essa coluna: Permitido Usar Shortinho.
É necessário defender as mulheres que usam shortinhos e também as que não usam, pelo menos de dois em dois minutos, tempo médio de registro de agressões que se enquadram na Lei Maria da Penha[5].
Notas.
[1] https://www.cartacapital.com.br/…/mulher-cis-e-a…/
[2] https://revistacult.uol.com.br/…/diferenca-entre…/
[3] https://g1.globo.com/…/vizinhas-mandam-mensagem-para…
[4] https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/…/art…/view/10398
[5] https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia…/