O espiritismo não é apolítico

Texto por Márcio Alexandre Ágora Espírita Uma questão está acalorando as conversas e até as prédicas nas casas espíritas do Brasil nos últimos anos: a política nacional. Em tempos de polarização desse cenário, o movimento não deixou de ser influenciado por esse momento que, vez ou outra, eleva ao ringue das discussões adeptos da causa kardeciana. Por que será que o exercício da política é ainda visto por muitos como algo malsão? O que tem de errado na política para que esta seja taxada como algo pernicioso no meio? Seria o espírita um indivíduo superior na escala dos encarnados e que por isso, inalcançável pelos problemas sociais para não ter que se (pre)ocupar com eles? Será que o adepto da doutrina dos imortais não pode abrir a guarda no trato de tais assuntos sem se enlamear com sua suposta “sujeira”? Ou o espírita é um ser de dupla vida social: uma pura, dentro da casa religiosa e outra, devassa, fora dela? Desejaria fugir do clichê de tentar usar o léxico para definir o verbete, mas não posso me furtar de expor o que, historicamente, entendo por política: Na Grécia antiga a palavra referia-se às questões relativas à vida da cidade. A “politikós” não era uma atividade qualquer: dela dependia a organização cotidiana e o futuro da “polis”. O “demos” (povo) de cada cidade-estado tinha que se interessar pelos problemas da comunidade, ou seja o indivíduo não seria um cidadão se não se interessasse pela política e não a praticasse. Tal concepção foi divulgada na obra “Política” de Aristóteles, o primeiro tratado sobre a natureza do governo, suas configurações e funções. A partir das revoluções liberais do século XVIII, a palavra passou a ser empregada para designar as atividades relativas ao controle do estado, ganhando os contornos que temos atualmente. Mas o verbo politicar não fica apenas restrito a essas definições técnicas e históricas e, muito menos, pode ficar dissociado da sua acepção comum. Por exemplo, quando Aristóteles afirma que “o homem é um ser político por natureza”, ele quer dizer que naturalmente temos a necessidade de viver em sociedade e que precisamos desse convívio para estabelecermos deliberações. Assim, nessa perspectiva não se deve deplorar a atividade política, classificando-a como algo pernicioso. Opinar, concordar, discordar, apresentar propostas, contrapropostas e até ficar isento, é fazer política. Mesmo quando alguém diz não gostar dela, está politicando (no sentido negativo), já que se omite e abre espaço para o outro sujeito que é pernicioso para a coletividade. Digo que é até uma posição confortável, pra não dizer fingida e, por consequência, hipócrita, um vez que somos políticos em todas as situações da vida, dentro e fora da casa espírita. Por quê? Respondo: quem, na vida em sociedade, não opina sobre os preços das coisas, as qualidades dos serviços públicos, sobre os problemas na saúde, na educação e na segurança públicas? Quem não expõe sua opinião em questões polêmicas como o aborto, a eutanásia, sobre a pena de morte? Quando levamos (e levamos!) estes assuntos para a casa espírita, não os tratamos de outra forma senão pela perspectiva do convencimento dos assistentes de que não se deve afrontar as leis divinas, de que devemos ser contra os projetos que relativizam a vida tramitados nas esferas dos poderes políticos e isso não é outra coisa senão politicar, ou seja, persuadir o outro sobre aquilo que achamos ser o correto. O mesmo acontece quando nos reunimos em assembleias para deliberar sobre decisões estatutárias ou regimentais na intenção de discutir, negociar ou convencer os associados sobre nossos projetos ou ainda quando deliberamos nas escolhas das chapas das diretorias que concorrem às direções das casas espíritas. Portanto, há várias esferas de atuação na política: as públicas, as de estado, as filosóficas, as ideológicas, as político-partidárias, como também há as que exigem dos espíritas e dos cidadãos envolvimento, quando elas implicam no exercício da cidadania. O problema é que muitos acham que tal exercício é partidário. Eis o erro! Porque é impossível, por exemplo, não discutir política na casa espírita quando falamos da fome, do racismo, da xenofobia, da violência doméstica, do aborto etc., pois tais problemas não estão limitados à bolha de nossas atividades espirituais, são problemas de nossa geração! E estes, além de exigirem preces e vibrações, necessariamente, exigem ações de nossa parte, como fez a própria Federação Espírita Brasileira ao assinar petições com objetivo de pressionar os parlamentares para que estes rejeitem qualquer projeto que vá de encontro aos fundamentos de defesa da vida que o espiritismo endossa. A política partidária, aquela que tem o papel de convencer terceiros a aderirem a projetos eleitorais não deve ser, claro, pautada nas casas espíritas. Não se deve fazer de palanque as tribunas do nosso movimento espiritual. Porque isso personifica e nos separa. Nesse sentido Kardec foi taxativo. E talvez seja esse o argumento levantado por muitos, de que política não deve fazer parte das reuniões espíritas. Baseiam-se no seguinte apontamento do codificador: “(…) Também não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reuniões tudo quanto disser respeito à política e às questões irritantes; nesse caso, as discussões não levarão a nada e apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém questionará a moral, quando ela for boa (…)”(1) Mas este é um exemplo de que não devemos fazer leituras apressadas de Kardec. De qual política o mestre de Lion estava falando? Por que o codificador teve tal cautela? O que o preocupava? Os desavisados esquecem que o cenário político da época em que esse texto foi escrito, era perigosamente nocivo às liberdades individuais, sob pena de prisão, deportação ou pena de morte. Luiz Bonaparte (1848-1870) deu um golpe de estado em 1851 e proclamou-se imperador (Napoleão III), governando até 1870. Seu governo foi marcado pela “forte repressão ao movimento operário, implantou censura em todos os níveis, proibiu as greves e as organizações sindicais, perseguiu adversários e manteve a jornada de doze horas diárias de trabalho.”(2). Eis aqui um motivo da recomendação de Kardec aos irmãos de Lion: O mestre não queria –e com razão– expor a Sociedade Espírita, e muito menos os seus membros, às ameaças da repressão e aos embaraços de prisões políticas. Para um movimento nascente, que estava ainda por se estabelecer, não seria de bom tom peitar o regime autoritário do sobrinho de Napoleão Bonaparte, autoproclamado “Protetor da Igreja Latina”(3). Permitir discussões na Sociedade que afrontasse a política napoleônica aliada da Igreja não seria adequado naquela ocasião. Por isso, tomar a precaução de Kardec como justificativa de recomendação para não tratar de assuntos “políticos” na casa espírita é fazer interpretação superficial do codificador e mais ainda do conceito estudado por Aristóteles. Nesse sentido e apurando melhor o contexto de sua época, não podemos fazer das obras de Kardec o que muitas igrejas fazem com a bíblia: apoderar-se de suas letras como exclusivos intérpretes do que chamam a palavra de deus, numa explícita postura dogmática que toma para si a autoridade de ser a ‘única boca’ que Deus se utiliza na Terra para falar à humanidade. As políticas que visam o progresso moral e intelectual devem ser obrigações de cada tarefeiro espírita. Kardec chega a comentar, na questão 783 que o “progresso sendo uma condição da natureza humana ninguém tem o poder de se opor a ele. É uma força viva que as más leis podem retardar, mas não asfixiar.”(4). Ora, como derrubar essas “leis más” sem mudar nossas legislações –para que estas se aproximem cada vez mais das divinas– e sem praticarmos o exercício da persuasão e da educação moral de terceiros? O mundo de regeneração não virá como passe de mágica, nem será posto pelos espíritos nobres. A tal falada era da regeneração só virá depois que a fome não solapar mais as vidas, quando a pena de morte não fizer mais parte das legislações humanas, quando a xenofobia não for mais entrave à união dos povos, quando o machismo não mais existir e nem promover a violência contra a mulher, quando os empregadores não impuserem excessivos e humilhantes trabalhos aos seus inferiores. Esta “era nova” só será realizável a partir da mudança feita por cada um de nós, individualmente, influenciando os que estão ao nosso lado, trabalhando para acabar com tais mazelas e lutando o bom combate para que ninguém mais seja promotor desse estado inferior de coisas. Em outro texto, na questão 781(a), Kardec recebe dos espíritos a resposta taxativa sobre nossas influências nas leis humanas: “(…) Quando estas [leis humanas] se tornam incompatíveis com ele [progresso], despedaça-as juntamente com os que se esforcem por mantê-las”(5). Em seguida, na questão 783, se verifica: “As revoluções morais, como as revoluções sociais, se infiltram nas ideias pouco a pouco; dormitam durante séculos; depois, irrompem subitamente e produzem o desmoronamento do carunchoso edifício do passado.”(6). Portanto, está clara como o Sol a constatação dos espíritos nobres sobre as lutas sociais que, de tempos em tempos, animam as civilizações para uma ordem melhor das coisas. Ficou evidente a responsabilidade de cada indivíduo em fazer com que a sua realidade e a do seu próximo sejam melhores. Aliás, não foi outra a luta dos grandes mártires de nossa história, quando preferiram o cadafalso do que negar aquilo que acreditavam. As lutas pelas liberdades individuais e políticas derramaram muito sangue e não foram ações mágicas, de cima pra baixo, mas revoluções que “desmoronaram o carunchoso edifício do passado”. Por fim, acreditamos que o cristão e, principalmente o espírita, deve se envolver com os movimentos de transformação da sociedade. Temas como LGBTfobia, extermínio da juventude negra, violência contra a mulher, indígenas, sem terra, sem teto, refugiados etc., são pautas de nossos debates com o intuito de buscar na doutrina de Kardec e em Jesus, referências que possam fortalecer nossos discursos para minimizar o preconceito e toda e qualquer forma de discriminação dessas minorias sociais. Para nós, o Jesus histórico foi um dos primeiros e mais inspiradores defensores dos direitos humanos e morreu por isso. Jesus nasceu na ‘periferia’ (socialmente falando), viveu para a ‘periferia’ (seus contatos mais significativos eram com os despossuídos) e morreu na ‘periferia’ (a crucificação era a pena dada aos mais infames). Jesus, como disse o Frei Beto, não morreu de hepatite na cama nem de desastre de camelo numa esquina de Jerusalém. Morreu, como tantos presos políticos, da América Latina das décadas de 1960 a 1980: foi preso, torturado, julgado por dois poderes políticos e condenado a ser assassinado na cruz a pedido dos chefes religiosos de sua época, sob a acusação de ser desordeiro, imoral e subversivo da ordem estabelecida. Portanto, a pergunta para nós, do Ágora é: que fé cristã é essa que não questiona a desordem? Porque não há ninguém que não se envolva em política. Há quem, ingenuamente, se julgue neutro, isento ou alheio a ela e por isso se enquadra no perfil do analfabeto político declamado por Brecht. Inspirado pelo iluminado pastor Henrique Vieira, afirmo que Jesus optou pelos oprimidos e renegados, pelos miseráveis, leprosos e prostitutas. Solidarizou-se com o refugo da sociedade em que viveu e contestou a ordem que os excluía. Jesus democratizou e ampliou a experiência de Deus e desmanchou a crença de que o culto à divindade só seria verdadeiro se ocorresse nos recintos ou sob a tutela da religião tradicional. Jesus, no nosso entender, fez as mulheres serem protagonistas do seu movimento de renovação do planeta; denunciou o acúmulo de riquezas e exaltou os pobres. Na sociedade vazia de moral, andou com gente de má fama e denunciou a hipocrisia de líderes religiosos; naquela sociedade baseada na vingança do ‘olho por olho e do dente por dente’, ensinou o perdão infinito, por isso discordamos do discurso de ódio de que o “bandido bom é o bandido morto”. Jesus, no nosso entender, foi o grande defensor das minorias sociais do seu tempo, foi O POLÍTICO DO BEM. É essa a nossa proposta e não temos nenhuma intenção de “empurrar goela abaixo” das casas espíritas, nossas ideias. Somos trabalhadores –ainda imperfeitos– de Jesus e de Kardec. Referências: (1) KARDEC, Allan. Revista Espírita. Trad. Salvador Gentile. 1ª ed. São Paulo : IDE, 1994. 37 p. (2) CAMPOS, Flávio de. Oficina da história. Vol. 2. 2ª ed. São Paulo : LEYA, 2016. 165. (3) http://www.infosbc.org.br/…/2627-capitulo-lvi-napoleao… (acessado em 07/06/2020) (4) KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. José Herculano Píres. 64ª ed. São Paulo: LAKE, 2004. 262 p. (5) KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. José Herculano Píres. 64ª ed. São Paulo: LAKE, 2004. 262 p. (6) KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. José Herculano Píres. 64ª ed. São Paulo: LAKE, 2004. 262 p. Confira a publicação original clicando aqui. Publicado no Facebook em 25/06/2020

Silvio de Almeida no Roda Viva e a representatividade negra de uma geração

0

O professor Silvio Luiz de Almeida foi o entrevistado do programa “Roda Viva”, da TV Cultura na última segunda-feira, dia 22 de junho. Sua entrevista sobre o racismo estrutural e os recentes movimentos pelo mundo de luta antirracista foi um dos temas mais comentados nas redes sociais na noite da entrevista, e também no dia seguinte, por conta de suas clareza e qualidade. Abaixo uma reflexão sobre a entrevista e sobre a contribuição teórica do professor.

Para assistir ao programa “Roda Viva” clique aqui. ——————————————————-

Silvio de Almeida no Roda Viva e a representatividade negra de uma geração

Texto por Martina Gomes Esquerda Diário Silvio de Almeida, que para muitas ativistas negras nesse país dispensa apresentações, é advogado, filósofo, doutor e pós-doutor em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP. Atua como professor da Escola de administração da Fundação Getúlio Vargas, da Universidade Mackenzie e professor visitante da Universidade de Duke, na Carolina do Norte, EUA. É presidente do Instituto Luiz Gama. Na noite desta segunda-feira (22) fomos brindados com sua excelente exposição no programa “Roda Viva” da TV Cultura, um programa com mais de três décadas de existência e que tradicionalmente realiza entrevistas com personalidades importantes de cada momento do país. Silvio de Almeida é de fato uma dessas personalidades. Ele é responsável por cunhar o conceito de RACISMO ESTRUTURAL, em livro com o mesmo título, lançado em 2018 na Coleção Feminismos Plurais, reeditado pela editora Pólen, em 2019. A primeira edição do livro esgotou rapidamente, e isto tem uma justificativa óbvia, a compreensão da atual situação de desigualdade racial/social e violência que vivemos no Brasil parte necessariamente da ideia de que o racismo não está apenas no campo moral, da cultura, das instituições, ele é algo estrutural na sociedade em que vivemos. Todos interessados em intervir nessa realidade tão complexa como a que vivemos deveriam ler o livro de Silvio de Almeida. Ele constrói uma síntese sobre a visão marxista da sociedade sob a ótica do peso da raça para a constituição do mundo tal como conhecemos. Suas referências partem das contribuições da “Crítica a economia política” de Marx com intelectuais como Abdias do Nascimento, Clóvis Moura, Lélia Gonzáles, Guerreiro Ramos entre outros para pensar a partir do pensamento negro brasileiro. Porém, Silvio também utiliza outros instrumentos de análise vinculados a Foucault, em especial quando dialoga com Achille Mbembe. E este último, para além do conceito de necropolítica, tão disseminado nos dias de hoje, Silvio realiza uma reflexão densa sobre o sair da grande noite e o peso da colonização para  constituição dos atuais estados. Sem dúvida este livro é uma obra que já consta como imprescindível para entender a formação social brasileira e suas consequências até os dias atuais. Neste sentido, na entrevista dada ao “Roda Viva” (22), ele foi categórico na demonstração de como todas as mazelas dessa crise sem precedentes que a humanidade enfrenta reforçam ainda mais as desigualdade construídas a partir da ideia de raça. Exemplificação de como o capitalismo em seu processo de exploração não pode prescindir das ferramentas de dominação para sua organização social. Mas Silvio falou sobre uma totalidade, e isso inclusive pode ter causado espanto em uma parcela que acredita que o tema de enfrentamento ao racismo ainda é algo lateral, ou secundário.

Intelectualidade negra

Em diálogo com o livro “A armadilha da Identidade” do paquistanês Asad Haider (2019, ed. Veneta), o qual Silvio escreveu o prefácio e mencionou ontem em um momento do debate, é possível problematizar o lugar da intelectualidade negra na produção de conhecimento. Neste prefácio, ao trabalhar o conceito de identidade  a partir de sua experiência pessoal Silvio afirma que “…independentemente das minhas escolhas, sempre esteve além da minha vontade ser reconhecido, medido e avaliado como homem negro” (p. 8). Ele afirma isto num contexto em que explica como o ser negro é algo objetivo e vinculado a materialidade do mundo, ou seja, a identidade negra é algo, que num patamar, independente da sua consciência individual sobre se enxergar como negro ou não. A identidade negra, assim como a identidade branca, são construções sociais carregadas de intencionalidade econômica e política para estratificação da sociedade, portanto, independem da ação do sujeito, e sim dos mecanismo sociais. Pois bem, coloco esta discussão aqui para fazer referência à fala do professor Silvio de Almeida nesta segunda, quando ele diz que  os principais intelectuais negros brasileiros só elaboraram sobre racismo porque entendiam de outras coisas. “A visão de que intelectuais, políticos e ativistas dos movimentos sociais negros sejam limitados pela fala sobre o tema racial não pode ser tratada como uma premissa a priori.” Me parece que ainda hoje, em 2020, essa afirmação precisa ser reforçada. A visão de que intelectuais, políticos e ativistas dos movimentos sociais negros sejam limitados pela fala sobre o tema racial não pode ser tratada como uma premissa a priori. Por óbvio, dentre os intelectuais existem uma gama de vertentes teóricas distintas, e é preciso analisá-las com atenção. Porém, o que está em jogo aqui, é compreender que falar sobre o todo, deve partir de entender as partes. A luta racial, a identidade negra não é o todo da sociedade que vivemos, porém ela é parte estrutural, e qualquer análise realizada que não parta dessa compreensão deve ter seu status de ciência questionado. Portanto, retomando a experiência citada no prefácio por Silvio de Almeida, ainda que intelectuais negros não falem sobre o tema racial, suas vidas estão determinadas pela sua identidade. E só é assim, porque a identidade não é algo externo às relações sociais, ou um conjunto de experiências individuais em somatórias. Pelo contrário, pensando a necessária superação do racismo devemos encarar a identidade como um dado analítico concreto para organização de estratégias e táticas políticas. Por fim, ser um intelectual negro é encarar a totalidade a partir das especificidades sociais. Ser uma ou um intelectual negra ou negro é estar comprometido com a superação das piores mazelas desse sistema. Para isso, Silvio de Almeida é hoje um intelectual negro marxista que a todo momento nos lembra que a análise das estruturas sociais precisam ser racializadas para que possam ser transformadas. Por fim: a história não transita em julgado! Ao final no “Roda Viva”, quando questionado sobre a superação do racismo, ele não teve dúvida mais um vez em afirmar a necessidade de findar um sistema exploração de lógica racial e misógina para a construção de uma outra sociedade. Exemplar na teoria e na prática que defendeu, ainda nos lembrou que o futuro não virá de algo espontâneo, senão de muita luta política pela construção do novo. Com certa serenidade demonstrou que sabe que viemos de longe e somos continuidade de muitas histórias de resistência. Portanto, devemos estar dispostos a construir o futuro e entregar uma sociedade de fato mais humana para as gerações que virão. Para ler a publicação original clique aqui. Publicado no Facebook em 24/06/2020

Paulo, o FreirePaulo, o Freire

0
Mural em homenagem a Paulo Freire em frente ao ministério da Educação, feito pelo artista plástico Henrique Gougon e patrocinado pela Unesco. O mural é todo construído em mosaico de mármores e granitos e contém cerca de mil assinaturas de adultos alfabetizados de todas as partes do país. O monumento tem a forma de um livro em pé e na sua lombada está impressa a frase de Cristóvam Buarque, ex-ministro de Educação no primeiro governo Lula: “Um homem que viveu para que os outros escrevessem”
O agora ex-ministro da Educação, uma ignomínia para a humanidade, ao ser empossado no cargo, no dia 9 de abril de 2019, que o alçaria ao posto de pior ministro da Educação da história, disse sobre Paulo Freire[1]: “Se o Brasil tem uma filosofia de educação tão boa, Paulo Freire é uma unanimidade, por que a gente tem resultados tão ruins comparativamente a outros países? A gente gasta em patamares do PIB igual aos países ricos.” Em maio de 2019, já como ministro, ameaçou retirar o mural em homenagem a Paulo Freire que está colocado em frente ao ministério da Educação, afirmando[2]: “Devemos retirar o mural de Paulo Freire em frente ao MEC? Acho que deve ser mantido, até que o Brasil deixe de ser o PIOR país na América do Sul (PISA 2018). Paulo Freire representa o fracasso da educação esquerdista (FHC+PT). Um dia, o Brasil terá outro patrono da educação!” Ainda no mesmo maio, na sua fixação freudiana em relação ao patrono da educação brasileira, insistiu[3]: “Vejo o Paulo Freire sendo muito mais uma bandeira do que realmente uma referência tão importante assim. Vejo, nesse caso, como um bom adversário. Porque o sistema que ele montou é ruim, as falas dele são super confusas, o resultado é péssimo e ele é muito feio, então é fácil de bater.” Em agosto voltou a demonstrar seu incômodo em relação ao mural de Paulo Freire no MEC[4]: “Acabo de oferecer esse belo mural para que o Deputado Eduardo leve para Washington ?. Brincadeira… Os EUA são uma nação amiga do Brasil.” Em dezembro, em mais um ataque àquele que o ex-ministro odeia, ilustrando os méritos inequívocos de Freire, expôs[5] mais uma vez suas dificuldades cognitivas: “O símbolo máximo do fracasso da gestão do PT começou quando foi construída a lápide da educação. Ela está lá embaixo na entrada do MEC, que é esse mural do Paulo Freire. Representa esse fracasso total e absoluto.” Já em 2020, em fevereiro, voltou à sua fixação[6]: “O que que acontece objetivamente é que eu vi a importância das características que eu tinha para a importância da batalha, da guerra, que precisa ser travada aqui. Primeiro é a busca da verdade, falar a verdade. Paulo Freire, ele funcionou, ele conseguiu deixar uma população ignorante e doutrinada.” Paulo Freire obteve trinta títulos de Doutor Honoris Causa ainda em vida –morreu em maio de 1997– e mais cinco “in memoriam”, além do prêmio da Unesco de “Educação para a Paz” em 1986. Paulo Freire é o brasileiro mais citado no mundo e é considerado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial, tendo influenciado o movimento chamado pedagogia crítica. Seu livro “Pedagogia do oprimido”, escrito em 1968, é o terceiro mais citado em trabalhos acadêmicos na área de humanidades em todo o mundo[7]. Por conta desse currículo inquestionável e incomparável em terras tupiniquins, foi homenageado com o título de “Patrono da Educação Brasileira”. Óbvio que incompetentes e energúmenos teriam mesmo dificuldades em lidar com tamanho gigantismo intelectual, haja vista suas liliputianas capacidades cognitiva e moral. Ser ofendido reiteradamente por essa escória eleita pela mentira e pelo ódio ao poder executivo federal é um elogio a ser inserido no currículo de qualquer ser humano minimamente normal. Mas para a estatura intelectual de Paulo Freire, tais ofensas sequer arranham sua biografia incomparável. Notas: [1] https://www.cartacapital.com.br/…/na-posse-weintraub…/ [2] https://educacao.uol.com.br/…/weintraub-ameaca-tirar… [3] https://veja.abril.com.br/…/weintraub-a-sofisticacao…/ [4] https://www.cartacapital.com.br/…/weintraub-ataca…/ [5] https://www.brasil247.com/…/weintraub-ofende-paulo… [6] https://www.conversaafiada.com.br/…/weintraub-o… [7] https://revistaforum.com.br/…/brasil-ultrapassa-oito…/ Publicado no Facebook em 19/06/2020

Leituras em tempo de quarentena

1

Nesse texto, Sinuê Miguel, membro do Coletivo Nacional Espíritas à esquerda e autor do livro “Movimento Universitário Espírita: religião e política no espiritismo brasileiro (1967-1974)”, publicado pela Alameda Editorial, fala sobre a experiência de autogestão dos trabalhadores na antiga Iugoslávia, tema bastante pertinente a todos que têm como objetivo a transformação das relações de trabalho na sociedade.

A luta é para mudar

0
A grande virtude daquele que luta pela transformação da sociedade, aliada à perseverança, é a capacidade de compreender com clareza a sua realidade, pois é por meio do melhor entendimento do mundo à sua volta que o artífice do novo mundo atua com eficácia na obra de preparação da nova sociedade. A sociedade, como de resto toda a realidade do mundo material, segue, pouco a pouco, transformando-se num contínuo fluxo histórico. No caso do movimento da história das sociedades, essa transformação se dá por meio de processos dialéticos que a explicam e permitem seu melhor entendimento. Seja no mundo físico, com suas mudanças geológicas contínuas que fazem do planeta um organismo em mutação, ou na esfera biológica, que se expressa pelas transformações constantes de corpos e espécies, tudo, como já dissera Heráclito, é um devir, um vir a ser, e a única substância do real é a mudança. As transformações da organização das sociedades humanas, em específico, são mais bem compreendidas se vistas como ciclos contínuos de pequenas mudanças que acabam por formar estruturas sociais completamente novas, muito diferentes das que as originaram. Essa transformação gradual que gera algo novo, sem paralelo com sua origem, é chamada de movimento dialético.
Fotografia de Vladimir Lênin falando à multidão na Praça Vermelha, Moscou, em 25 de maio de 1919, tirada por W. A. Wovschin. A fotografia original é em preto e branco
A partir das propostas de entendimento das relações sociais humanas por meio do movimento dialético feitas por Hegel, dois discípulos dessa construção da dialética hegeliana, Karl Marx e Friedrich Engels, propuseram um método[1] para a análise histórica das sociedades que desvelou a todos a forma como se dão as transformação das organizações sociais. Entendeu-se, a partir da luz hegeliana e da senda aberta pelo método dialético de análise marxista, que as mudanças históricas no fenômeno social são regidas por leis tanto quanto as mudanças nas espécies biológicas também o são, como ensinou Darwin. A importância do uso do método dialético para o entendimento de determinado momento histórico é dada pela melhor capacidade de leitura do real de quem o aplica. Portanto, o método marxista de análise, conhecido como materialismo dialético, é ferramenta essencial para todo aquele que se propõe a transformar a sociedade e a melhor compreender a realidade em que está inserido. Lênin, em sua crítica ao “esquerdismo”[2], insiste, em muitos momentos do seu texto, sobre a importância da percepção correta da realidade para que se possa atuar da melhor forma possível e com os melhores resultados. Plekhánov, um dos primeiros marxistas russos e opositor de Lênin e do Partido Bolchevique, ainda no fim do século XIX, também ressalta a importância de se fazer uma leitura correta do mundo real para que se possa nele atuar com a eficácia pretendida, e foi assim, usando a análise marxista na realidade em que vivia, que percebeu a impossibilidade de um processo revolucionário proletário na Rússia semifeudal de Alexandre III[3]. Armado do método adequado, é necessário também compreender que o processo dialético que transforma as sociedades ocorre por meio de mudanças contínuas, que se acumulam até haver um momento de ruptura. A mudança que se dava de forma quantitativa e sequencial, nalgum momento apresenta-se como uma nova realidade, de outra qualidade. Ainda Plekhánov, em seu artigo sobre o processo das mudanças históricas[4], ressalta essa etapa de toda transformação dialética, seja da natureza ou das sociedades humanas: a mudança qualitativa. Esse momento do processo dialético, em que uma nova realidade se apresenta em substituição a outra, é uma ruptura abrupta com a ordem anterior. As placas tectônicas do planeta, por exemplo, vão-se movendo pouco a pouco até que uma grande explosão se apresenta como fundadora duma nova condição da superfície terrestre. O mesmo se dá com a crisálida que, numa mudança de estado completa, irrompe-se em borboleta. Ou ainda a água que esquenta pouco a pouco e, de repente, ao atingir o momento de ruptura, transforma-se radicalmente num estado completamente novo. Todos são exemplos tirados do próprio texto indicado de Plekhánov. O mesmo se dá com as sociedades. Suas mudanças, muitas vezes insignificantes ou imperceptíveis, acumulam-se até um momento em que uma estrutura completamente nova se apresenta. Esses momentos de ruptura são bem conhecidos na história como aqueles que foram marcados por processos revolucionários, geralmente violentos, e que foram capazes de instituir uma nova ordem social. Todos os países independentes que experimentaram as transformações internas do sistema feudal de produção, que acabaram por gerar uma nova ordem socioeconômica, o sistema capitalista de produção, viveram processos violentos de ruptura que instauraram a nova estrutura de sua organização social. E esse entendimento dos processos dialéticos históricos de transformação social é também uma forma de melhor compreender a realidade em que se está inserido e as consequência dessa ação transformadora. Portanto, se se pretende lutar por uma nova sociedade, em que homens e mulheres vivam em plena liberdade e sem a exploração da sua força de trabalho, é preciso compreender que num momento qualquer as forças dessa transformação, que se somam ao longo dos anos e séculos pelo acúmulo das conquistas pontuais de direitos, desencadearão eventos disruptores que instaurarão uma nova realidade nas sociedades humanas. Concluindo, então, essa breve reflexão, pode-se afirmar, àqueles que têm fome e sede de justiça e lutam por uma nova realidade nas relações humanas, que o caminho do consolo aos que choram é a capacidade de compreender com clareza a realidade em que se vive, usando o método adequado, para que nela se possa atuar na busca da sua transformação, obtendo os melhores resultados e entendendo a necessidade dialética da ruptura, porque, afinal, não basta interpretar o mundo, mas sim transformá-lo[5]. Notas: [1] Ver “A ideologia alemã”, de Marx e Engels, em que é aplicado o método dialético para o entendimento da história das sociedades. [2] Ver “Esquerdismo: doença infantil do comunismo”, de Vladimir Lênin. [3] Comentário feito por China Miéville em sua obra “Outubro: história da Revolução Russa”. [4] Ver “Os saltos na natureza e na história”, de Georgi Plekhánov. [5] Essa é a 11ª das “Teses sobre Feuerbach”, de Karl Marx. Publicado no Facebook em 10/06/2020

Thomas Sankara

0

“O escravo que não é capaz de assumir a sua rebelião não merece que tenhamos pena dele. Este escravo será o único responsável pela sua desgraça se ele se iludir sobre a condescendência de um mestre que afirma libertá-lo. Apenas a luta pode ser livre.”

“É justo sacrificar-se pelo futuro.”

A seguir, texto de Vascomunistas: “Capitão militar burquinense, revolucionário marxista & presidente de Burkina Faso de 1983 a 1987, esse foi Thomas Isidore Noël Sankara. O movimento negro brasileiro é em sua grande maioria abertamente liberal e anticomunista. Sankara compreendeu que não há capitalismo sem racismo e como bom marxista, fundamentou sua luta para além de antirracista, sistematicamente anticolonialista, anti-imperialista e acima de tudo, anticapitalista.
Thomas Isidore Noël Sankara foi um militar, revolucionário marxista, pan-africanista e líder político de Burkina Faso
Muitos acusam falsamente o marxismo de eurocêntrico, porém, viram o rosto pra figuras como Sankara, Carlos Marighella, Ho Chi Minh, Lumumba, sem contar da fundamental contribuição das nações socialistas na libertação da África. Ironicamente, idolatram os Panteras Negras, mas, parece que o apreço é apenas pelo logotipo bonito, tendo em vista que desprezam o fato de serem essencialmente marxistas-leninistas. Sankara, à frente de Burkina, promoveu inúmeros avanços, inclusive, possibilitando a autonomia e participação das mulheres no processo político. ‘As origens da dívida remontam às origens do colonialismo. Aqueles que nos emprestaram dinheiro são os mesmos que nos colonizaram. São os mesmos que geriam as nossas economias. Os colonizadores endividaram África através dos seus irmãos e primos que eram os credores. Não temos nenhuma ligação com essa dívida. Portanto, não podemos pagar por isso’.” Para saber mais sobre Thomas Sankara, vale ouvir o ótimo episódio de “Camaradas” da página Revolushow: clique aqui. Publicado no Facebook em 06/06/2020    

Uma fábula palestina – II

1

“Chegaram ao outro lado do mar, ao território dos gerasenos. Quando Jesus desembarcou, veio logo ao seu encontro dos túmulos um homem possesso de espírito imundo, o qual tinha ali a sua morada, e nem mesmo com cadeias podia já alguém segurá-lo; porque tendo sido muitas vezes seguro com grilhões e cadeias, tinha quebrado as cadeias e despedaçado os grilhões, e ninguém tinha força para o subjugar; e sempre, de dia e de noite, gritava nos túmulos e nos montes, ferindo-se com pedras. Vendo de longe a Jesus, correu para ele e adorou-o, gritando em alta voz: ‘Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Por Deus te conjuro que não me atormentes’. Pois Jesus lhe dissera: ‘Espírito imundo, sai desse homem.’ Perguntou-lhe: ‘Qual é o teu nome?’ Respondeu ele: ‘Legião é o meu nome, porque somos muitos.’ E rogava a Jesus com instância que os não mandasse para fora do território. Pastava ali pelo monte uma grande manada de porcos; e os espíritos imundos suplicaram-lhe, dizendo: ‘Envia-nos para os porcos, a fim de que entremos neles.’ Ele o permitiu. Eles, saindo, entraram nos porcos; a manada, que era cerca de dois mil, precipitou-se pelo declive no mar; e ali se afogaram. Os pastores fugiram e foram dar notícia disto na cidade e nos campos; e muitos foram ver o que tinha acontecido. Chegando-se a Jesus, viram o endemoninhado que havia tido a legião, sentado, vestido e em perfeito juízo; e ficaram com medo. Os que presenciaram o fato, contaram-lhes o que havia acontecido ao endemoninhado e aos porcos. Começaram a rogar-lhe que se retirasse daqueles termos. Ao entrar ele na barca, aquele que fora endemoninhado rogou-lhe que o deixasse estar com ele. Jesus não o permitiu, mas disse-lhe: ‘Vai para tua casa, para teus parentes e conta-lhes tudo o que o Senhor te fez e como teve compaixão de ti.’ Retirando-se, começou a publicar em Decápolis tudo o que lhe havia feito Jesus; e todos ficaram maravilhados.”

Marcos, 5, 1-20.

A cura do endemoniado, pintado por Sébastien Bourdon entre 1653-1657 e exposto no Musée Fabre, Montpellier, França
Dizia-se, pelos caminhos da urbe grega, que esse homem que vivia entre mortos e era subjugado por demônios autodenominados “Legião” gritava e urrava palavras sem sentido pelos túmulos daquela necrópole decapolitana: “É só uma gripezinha!”, “Alguns vão morrer, lamento, é a vida!”, “E daí?”. Algumas vezes o tom de voz mudava e as palavras vomitadas pela boca imunda do possesso geraseno soavam, quando compreendidas, mais ou menos assim: “AI-5!”, “Intervenção militar já!”, “Art. 142 neles!”, dentre outras expressões do aquém umbralino. Após a cura da grave obsessão do pobre endemoniado, que se livrou daquela infâmia verborrágica que o envergonhava moral e cognitivamente, os demônios aportaram na vara tupiniquim que, incauta, chafurdava na pocilga da inconsciência social e política. Dizia a patuleia de Gadara e Gérasa que o persigal, não tendo mais ouvidos para sua insensatez, jogou-se no abismo das mentiras, grunhindo seu ódio pelas redes sociais decapolitanas e culpando a luz por sua desgraça moral perante o resto do mundo civilizado. Diz-se, à moda de Foucault, que essa fábula sem serventia, posto prestar-se tão-somente à reflexão, foi ouvida nalguma esquina das veredas empoeiradas dalguma cidade helênica ao leste do Mar da Galileia. Mas dizem, após a libertação daquela grave obsessão demoníaca, que o homem sarado daquela doença fascista assinou algum manifesto para registrar sua cura da doença que afligia, à época, cerca de 30% da plebe ignara. E que o curandeiro saiu por todos os lugares a pregar a vitória contra aquele mal e a libertar os que ainda eram passíveis de cura. E, quanto aos incuráveis, por conta da adiantada metástase moral, restariam apenas os abismos suínos e os eventos federativos. Publicado no Facebook em 06/06/2020

Espiritismo e a práxis política

Mais um texto exclusivo de Elton Rodrigues para sua coluna na página “Espíritas à esquerda”. Nesse novo artigo, o autor nos convida a pensar passos para a transformação social para além da resistência.

Resistir é preciso, mas é apenas o primeiro passo

“Para a esquerda, a política deve ser a arte de tornar possível o impossível. E não se trata de uma declaração voluntarista. Trata-se de entender a política como a arte de construir força social e política capaz de mudar a correlação de forças em favor do movimento popular, de tal modo que possa tornar possível no futuro o que hoje aparece como impossível”.

Marta Harnecker, “Ideias para a luta”.

Em princípio, a doutrina espírita como corpo teórico é examinada e reconsiderada, por espíritas, para que a regeneração da sociedade seja empreendida. Enquanto o espiritismo fornece subsídios lógico-morais para a transformação dos indivíduos, o espírita que compreende que a lei de Deus é de justiça e de amor precisa, com todas as suas forças, passar da teoria à prática. Isso, porque só é possível alcançar a paz e a justiça se houver luta por esse objetivo não só no mundo íntimo, mas, também, na concretude da vida de encarnado. De forma inusitada, muitas e muitos espíritas manifestam uma completa separação entre o que dizem acreditar, pela coerência, e aquilo que se esforçam para imprimir na sociedade. Não estou, aqui, falando das inúmeras dificuldades e imperfeições humanas que geram uma dissonância entre o que está e aquilo que deseja ser, pois que isso seria um desatino. Digo acerca das exposições e práticas homofóbicas, misóginas, racistas, antipobres, fascistas, enfim. Esse descompasso não é elucidado por uma possível ausência de leitura ou de uma incompreensão dos textos de Allan Kardec ou dos ensinamentos de Jesus de Nazaré. Há um esforço gigantesco por deturpar a concatenação das ideias desses, e de outros pensadores, para defender posicionamentos arcaicos. Ou seja, há hipocrisia e método para que essas teses sejam absorvidas pelo maior número possível de espíritas. Como, então, frear a proliferação dessas teses esdrúxulas? Inicialmente, é necessário ocupar os espaços, físicos e digitais, para que um espiritismo mais conectado com o mundo e com o povo seja apresentado. Em verdade, o objetivo não é apresentar algo novo, mas simplesmente mostrar o verdadeiro espiritismo. Há quem diga que o espiritismo é elitista. Discordamos. O movimento espírita pode ser elitista, mas a tese espírita é para todos, voltada, principalmente para a promoção dos despossuídos do mundo. Em um planeta regenerado, não há espaço para fome e preconceitos. Não há espaço para as explorações –do corpo e da alma– tão comuns no tempo presente. Será, então, que é factível um mundo regenerado coordenado pelo capitalismo e pelo capital? Acreditamos que não. Logo, são essas reflexões que precisam ser abordadas e aprofundadas. Esse é apenas um primeiro passo para que haja o fortalecimento da resistência contra o discurso fascista que adentrou o movimento espírita brasileiro. Porém, resistir é um e apenas o primeiro passo. Temos que avançar, ganhar terreno, criar as condições ideais para a ruptura completa com esta sociedade assentada nos padrões burgueses. Como tão bem disse Allan Kardec[1], “Mas, uma mudança tão radical como a que se está elaborando não pode realizar-se sem comoções. Há, inevitavelmente, luta de ideias. Desse conflito forçosamente se originarão passageiras perturbações, até que o terreno se ache aplanado e restabelecido o equilíbrio. É, pois, da luta das ideias que surgirão os graves acontecimentos preditos e não de cataclismos ou catástrofes puramente materiais. Os cataclismos gerais foram consequência do estado de formação da Terra. Hoje, não são mais as entranhas do planeta que se agitam: são as da humanidade.” Nota: [1] KARDEC, Allan. “A gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo”, Capítulo XVIII, “Sinais dos tempos”, item 7. Coluna anterior: https://www.facebook.com/espiritasaesquerda/posts/1002552926805698 Publicado no Facebook em 05/6/2020  

Eusínio Lavigne: um breve resumo

0

Eusínio Lavigne, 1873-1973, esse baiano de Ilhéus foi espírita, político, jurista, jornalista, escritor e marxista.

Eusínio foi casado com ninguém menos que Maria Odília Teixeira, a baiana de São Félix do Paraguaçu, que superou as estatísticas e formou-se em medicina em 1909 e tornou-se a primeira médica negra do Brasil.
Capa do livro de Eusínio Lavigne
Autor de diversos livros, dentre eles, alguns com análises sobre as relações entre o espiritismo e o socialismo, sendo certamente um dos mais interessantes o livro “Os espiritualistas perante a paz e o marxismo: a perfectibilidade do espírito, pelo socialismo”, que traz na sua capa a seguinte proposta: “Interpretação progressista do Livro dos Espíritos”. Essa obra, uma das primeiras em português com tal proposta, pois de 1955, teve como prefaciador o célebre romancista e comunista Jorge Amado, amigo e admirador de Eusínio. Na explicação que introduz seu texto, encontra-se a seguinte passagem: “Ora, o socialismo, ou comunismo, fundamentado, com ‘lógica assombrosa’, pelos gênios de Marx e Engels, é o único sistema, precisamente por ser científico, capaz de preparar aquela ‘organização social, criteriosa e previdente’, a que se referiu Kardec. Isso, porque, acabando não só com a ‘exploração do homem pelo homem’, mas com a concorrência de classes entredevorantes, o socialismo, à Marx, liquida com o egoísmo e possibilita, inelutavelmente, o aprimoramento da inteligência e do coração humano (resp. 913-916, Livro dos espíritos). E, por isso mesmo, abrirá ilimitadas perspectivas à liberdade das investigações psíquicas.
Prefácio de Jorge Amado
Assim, a doutrina materialista do marxismo, paradoxalmente, por seu amor à paz e à ciência, nos assegura, através do socialismo, que é o seu campo de luta proletária, o mais propício ambiente ao estudo do verdadeiro espiritualismo, com resultados definitivos para o secular problema da imortalidade do espírito. Eis a tese que procuramos sustentar nas cartas trocadas com o nosso prezado amigo Leopoldo Machado, e, aliás, em outros escritos nossos.” Um clássico espírita de leitura fundamental a todos os que se interessam pela proposta do movimento espírita progressista. Para saber mais sobre Eusínio Lavigne clique aqui. Para saber mais sobre Maria Odília Teixeira clique aqui.
Maria Odília Teixeira e Eusínio Lavigne
Publicado no Facebook em 02/6/2020

Ma fábula palestina

0

“Encontrou no templo os que vendiam bois, ovelhas e pombas, e cambistas assentados negociando; tendo feito um chicote de cordas, expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e os bois, espalhou pelo chão o dinheiro dos cambistas e virou as mesas; e disse aos que vendiam as pombas: ‘Tirai essas coisas daqui; não façais da casa de meu Pai, casa de comércio’.”

João, 2, 14-16.

Cristo expulsando os mercadores do templo, pintado por volta do ano 1600, por Doménikos Theotokópoulos, conhecido como El Greco, e está exposto na National Gallery, Londres.
E, depois de ter feito isso, sofreu represália de muitos. Um mais ortodoxo chegou a repreendê-lo, dizendo: “Por que não fez uma nota de repúdio e a entregou às autoridades competentes?”. Já outro, menos legalista, admoestou-o aos brados: “vai pra Cuba! Para agir assim, deve estar chapado!”. Um terceiro lembrou, ao autor daquela cena, que em vez de chicotear e derrubar e empurrar, ele deveria tentar um movimento pela paz mundial pautado na não violência, encerrando com uma frase emblemática: “Mas Ghandi…”. Ouviu-se ainda de outro indignado com o vandalismo a seguinte exaração: “Não foi esse que disse que não veio trazer a paz, mas a espada?”. Diz-se, à moda de Foucault, que essa fábula sem serventia, posto prestar-se tão-somente à reflexão, foi ensinada nalguma esquina das ruas empoeiradas duma cidade palestina qualquer. Mas dizem, após o estranho evento, que tudo isso foi feito porque o protagonista tinha autoridade moral para tanto. Diz-se também, outrossim, que só não se conseguiram convencer dessa evidente verdade abatidos e empurrados. Publicado no Facebook em 31/5/2020