Ma fábula palestina
“Encontrou no templo os que vendiam bois, ovelhas e pombas, e cambistas assentados negociando; tendo feito um chicote de cordas, expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e os bois, espalhou pelo chão o dinheiro dos cambistas e virou as mesas; e disse aos que vendiam as pombas: ‘Tirai essas coisas daqui; não façais da casa de meu Pai, casa de comércio’.”
João, 2, 14-16.
E, depois de ter feito isso, sofreu represália de muitos. Um mais ortodoxo chegou a repreendê-lo, dizendo: “Por que não fez uma nota de repúdio e a entregou às autoridades competentes?”. Já outro, menos legalista, admoestou-o aos brados: “vai pra Cuba! Para agir assim, deve estar chapado!”. Um terceiro lembrou, ao autor daquela cena, que em vez de chicotear e derrubar e empurrar, ele deveria tentar um movimento pela paz mundial pautado na não violência, encerrando com uma frase emblemática: “Mas Ghandi…”. Ouviu-se ainda de outro indignado com o vandalismo a seguinte exaração: “Não foi esse que disse que não veio trazer a paz, mas a espada?”. Diz-se, à moda de Foucault, que essa fábula sem serventia, posto prestar-se tão-somente à reflexão, foi ensinada nalguma esquina das ruas empoeiradas duma cidade palestina qualquer. Mas dizem, após o estranho evento, que tudo isso foi feito porque o protagonista tinha autoridade moral para tanto. Diz-se também, outrossim, que só não se conseguiram convencer dessa evidente verdade abatidos e empurrados. Publicado no Facebook em 31/5/2020Um golpe anunciado
Para quem ainda achava que um novo golpe civil e militar não mais caberia na nossa república, parece não haver mais surpresas desse mórbido projeto da quadrilha miliciana, haja vista as últimas declarações de seus maiores representantes.
Num breve contexto mui recente, podem-se listar os seguintes anúncios feitos pelas redes sociais e reverberados pelos grandes meios de comunicação:- A rebeldia pueril do general:
- A ameaça explícita do 03:
- A desobediência ao judiciário do “capo di tutti capi”:
Manifesto de espíritas progressistas pela cassação da chapa Bolsonaro-Mourão
Manifesto também assinado pelo coletivo “Espíritas à esquerda” e por muitos dos nossos membros espalhados pelo país.
Elton Rodrigues e Franklin Felix, com a colaboração de muitas mãos do movimento espírita progressista Blogue “Diálogos da fé” CartaCapital “Por que, neste mundo, os maus exercem geralmente maior influência sobre os bons? – Pela fraqueza dos bons. Os maus são intrigantes e audaciosos; os bons são tímidos. Estes, quando quiserem, assumirão a preponderância.” (“O livro dos espíritos”, questão 932) Espíritas, atravessamos um período conturbado, não apenas como consequência da pandemia ocasionada pela covid-19, mas, também, pela necropolítica de Bolsonaro e seus asseclas. Em “O livro dos espíritos”, “Lei de sociedade”, questão 768, os espíritos afirmam que a união social é essencial para assegurar o bem-estar e o progresso da sociedade. Já em “O evangelho segundo o espiritismo”, “Os trabalhadores da última hora”, Constantino afirma que “o obreiro da última hora tem direito ao salário, mas é preciso que a sua boa vontade o haja conservado à disposição daquele que o tinha de empregar e que o seu retardamento não seja fruto da preguiça ou da má vontade”. Por fim, Humberto Mariotti, em sua obra “Parapsicologia e materialismo histórico”, diz que “a filosofia espírita só estará definitivamente arraigada no mundo no dia em que se dedicar à consideração filosófica, social e religiosa da chamada lutas de classes”. O espiritismo não é doutrina apartada dos problemas sociais. É, em verdade, mais uma ferramenta que nos auxilia a construir os meios que permitirão alcançar, enfim, uma sociedade justa e fraterna. Assim, torna-se urgente a união dos espíritas que se opõem aos discursos e às propostas fascistas que invadem a sociedade e o próprio movimento espírita, pois essa atmosfera de ódio, preconceitos e morte está em completo desacordo com a proposta espírita de transformação do mundo. Para frear tal situação, é necessário somar forças para reconhecer a necessidade de superar a dependência, assim como a miséria e as contradições históricas, com políticas orientadas aos interesses da maioria do povo, e não das classes dominantes. E essa somatória não deve estar circunscrita aos militantes partidários. É indispensável que todo e toda militante, nos diversos espaços sociais, estejam lutando por um mundo melhor, não apenas para uma pequena fração de falsos predestinados, mas para todos. Além disso, torna-se urgente conter essa onda neofascista que arruína o país, em que as classes dominantes, em tempos de incertezas e de possíveis revoltas populares, utilizam-se de quaisquer meios para resguardar a apropriação privada da riqueza produzida socialmente e todos os seus privilégios daí decorrentes. Por essa razão, os espíritas progressistas, movimento amplo, plural, suprapartidário, entendendo a gravidade do momento em que o Brasil está atravessando, reúnem-se em torno de três objetivos principais:- Maior proteção da população contra o contágio pelo novo coronavírus, principalmente das pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade social;
- Amparo econômico e social da população afetada pelas medidas de isolamento; e
- O afastamento imediato de Jair Bolsonaro e de toda sua equipe da presidência da República.
Os novos e fugazes aliados
O fim da 2ª Guerra e o papel soviético
No último dia 8 de maio foi comemorado o Dia da Vitória na Europa, que marca a rendição da Alemanha nazista na II Guerra Mundial, ocorrido há 75 anos, no dia 8 de maio de 1945.
Esse dia, “muitas vezes, é retratado como se fossem apenas as forças lideradas pelos EUA e Reino Unido que derrotaram a Alemanha, mas o papel da União Soviética foi crucial para derrotar os nazistas. Afastar a invasão alemã e pressionar pela vitória na Frente Oriental exigiu um tremendo sacrifício, pois os soviéticos sofreram o maior número de baixas na Segunda Guerra Mundial, perdendo mais de 20 milhões de pessoas, militares e civis.”[1]
O nazifascismo, nesses estranhos tempos em que se vive, levanta mais uma vez sua horrenda face, intentando levar ao mundo seus valores de ódio, horror, discriminação, preconceito e morte.
Suas personagens extravagantes e criminosas ganharam, ultimamente e em vários lugares do mundo, espaço e holofotes duma sórdida imprensa, que agora luta contra sua própria criatura, pois o fascismo não tolera a imprensa livre, não tolera a ciência, não tolera o conhecimento, não tolera a liberdade, não tolera…
Cabe a citação de famoso provérbio espanhol: “cria cuervos que te sacarán los ojos”, traduzindo, “cria corvos e eles te arrancarão os olhos”. Ou seja, é da natureza do fascismo esse comportamento da interdição da interlocução e da imposição dos piores horrores aos indivíduos, ultrapassando todos os limites do respeito aos direitos humanos.
Mais uma vez a humanidade é chamada para superar o ressurgimento dessa ideologia de extrema-direita que intenta contra a vida e a dignidade humanas. O fascismo está sempre à espreita, infiltrando-se nas mentes pelas dificuldades sociais e materiais dos mais inconscientes, buscando encontrar inimigos a serem abatidos e forjando uma doutrina de adoração messiânica a líderes sem caráter e sem escrúpulos. Como disse Bertolt Brecht, “a cadela do fascismo está sempre no cio”.
Os tempos que se avizinham serão difíceis, e, infelizmente, “faz-se mister que o mal chegue ao excesso, para tornar compreensível a necessidade do bem e das reformas”[2].
Essa geração está sendo chamada para, mais uma vez, derrotar esse inimigo da evolução humana, porque, como é dito pelos espíritos que auxiliaram Kardec, o homem não tem o poder de paralisar a marcha do progresso, mas pode “embaraçá-la”[3]. Então cabe a todos que não se fascinaram pelas mentiras e não beberam do cálice venenoso de ódio do fascismo impedir que essa estranha gente embarace de novo a trajetória em direção à liberdade, à fraternidade e à justiça social, que são pedras angulares das propostas espíritas.
Notas:
[1] https://web.facebook.com/…/a.95607…/1158264141178772/…
[2] KARDEC, Allan. “O livro dos espíritos”, parte III, cap. VIII, questão 784.
[3] KARDEC, Allan. “O livro dos espíritos”, parte III, cap. VIII, questão 781.
Séculos de Brasil numa foto…
“Séculos de Brasil numa foto…”
A frase acima, dita pelo professor de filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS), Romero Venâncio, sobre a foto [1] dessa postagem, resume bem a situação da extrema desigualdade social no Brasil.
Nessa republiqueta laranjeira, presidida por uma quadrilha de milicianos e corruptos, cujo único projeto é dizimar as populações mais vulneráveis, retirando-lhes direitos e dignidade, a situação da desigualdade social é caótica. Segundo dados oficiais da ONU, publicados no Relatório Social Mundial 2020[2], o Brasil, que reduzia lentamente seu abismo social nas duas últimas décadas, voltou a aumentar a desigualdade social nos últimos cinco anos[3],
Num país que já ocupa as piores colocações mundiais em índices que medem a desigualdade social, vê-la aumentando de novo é um crime social sem tamanho.
A pandemia do novo coronavírus veio expor as entranhas dessa chaga social aberta[4]. A grande massa populacional que infla os números da desgraça social nacional não tem como fazer isolamento social, não tem como “ficar em casa”, não tem apoio dos governos federal, estaduais e municipais para manter um nível mínimo de renda ou subsidiar suas despesas básicas e, pior, não tem acesso a um sistema de saúde que lhe atenda com dignidade e eficácia. Os mortos, incluindo a quantidade inacreditável de subnotificação[5], serão pobres e moradores de comunidades, favelas e invasões espalhadas pelo caos urbano das grandes cidades brasileiras.
O Brasil precisa de um projeto revolucionário de sociedade. Já são mais de 500 anos de exploração do seu povo e do seu meio ambiente, que continua de forma avassaladora e sem perspectivas de mudança a curto ou médio prazos. A tarefa que a sociedade nacional tem pela frente, principalmente da sua imensa parte progressista, é a de criar e manter espaços de conscientização política e classista, fornecendo ao povo alienado pelas condições opressoras do trabalho as ferramentas necessárias para sua emancipação e libertação.
Os espíritas, apesar de poucos, têm um papel importante nessa tarefa, pois ocupam, conforme dados do IBGE, a fatia mais privilegiada economicamente e educacionalmente da classe trabalhadora[6]. Portanto têm obrigação moral e social de atuar politicamente para a promoção dessa emancipação popular. E essa é a tarefa dessa geração de espíritas, colocada nesse país, um caldeirão de desigualdades e opressão, para auxiliar na sua transformação.
É preciso superar as bobagens místicas de “coração do mundo”, porque não há pátria ou povo escolhidos, e trabalhar incansavelmente para a mudança social utópica proposta nas páginas das obras kardecistas.
Que fez São Tomás de Aquino diante de Karl Marx
Nesse texto de 2009, Grimaldo Zachariadhes, mestre em história social e pesquisador do trabalho social feito pela Companhia de Jesus no Brasil no século XX, inspirado pela palestra de Hélder Câmara na Universidade de Chicago em 1974, trata das relações entre o pensamento cristão e o marxismo. Uma ótima e profunda reflexão principalmente àqueles que veem com desconfiança insubstanciada as relações entre o materialismo marxista e o espiritualismo cristão.
Grimaldo Carneiro Zachariadhes – Revista Lua Nova (texto original e completo aqui)
RESUMO
O artigo aborda o diálogo de setores da Igreja Católica com o pensamento marxista. É privilegiado neste trabalho o Centro de Estudos e Ação Social (Ceas), uma instituição fundada pelos jesuítas na Bahia. Procurarei demonstrar como esta instituição da Companhia de Jesus reinterpretou o marxismo com base na sua visão cristã, contribuindo para a construção de um novo pensamento social católico no Brasil, durante a segunda metade do século XX.
INTRODUÇÃO
Que faria São Tomás de Aquino, o comentador de Aristóteles, diante de Karl Marx? Este foi o título de uma palestra realizada na Universidade de Chicago, no dia 29 de outubro de 1974, pelo então arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara, para a comemoração do 7º centenário da morte de São Tomás de Aquino. O sacerdote, nesta ocasião, fez um desafio para a universidade americana: que fizesse com o pensador Karl Marx o que São Tomás fizera com Aristóteles, ou seja, reinterpretasse-o, retirando dele aquilo que era positivo. E aos que poderiam se negar a fazê-lo, alegando que Marx era “materialista, ateísta militante, agitador, subversivo, anticristão”, ele lembrava que quando um homem:
“empolga milhões de criaturas humanas, sobretudo de jovens; quando um homem inspira a vida e a morte de grande parte da humanidade, e faz poderosos da terra tremer de ódio e de medo, este homem merece que o estudemos, como certamente o estudaria quem enfrentou Aristóteles e dele soube destacar tudo o que havia de certo” (Câmara, 1975, p. 53).
Este artigo pretende analisar o Que fez São Tomás de Aquino diante de Karl Marx, isto é, como se deu este diálogo entre católicos – especialmente os jesuítas – e marxistas, principalmente durante a segunda metade do século XX, no Brasil. Vou privilegiar neste texto o Centro de Estudos e Ação Social (Ceas) e buscar compreender como esta instituição, fundada pela Companhia de Jesus, promoveu este diálogo e como reinterpretou o marxismo com base na sua visão cristã, utilizando como fontes principalmente a sua revista intitulada Cadernos do Ceas.
O CONFLITO ABERTO
Em 1937, Pio XI publicava a encíclica Divini Redemptoris, na qual demonstrava aos católicos sua preocupação com o comunismo ateu, reafirmando as condenações feitas pelos seus predecessores e por ele mesmo em outros momentos. O Papa se preocupava com o crescimento dos comunistas e alertava aos “veneráveis Irmãos” que “não se deixem enganar! O comunismo é intrinsecamente perverso e não se pode admitir em campo nenhum a colaboração com ele”. Lembrava que nos países aonde os comunistas chegaram ao poder se manifestava “o ódio dos ‘sem-Deus'” contra os cristãos (Pio XI, 1937, p. 53).
Esta afirmação papal expressava muito bem as preocupações da Igreja Católica em relação aos comunistas naquele momento. A posição do clero era de enfrentamento aos comunistas, que eram vistos como inimigos que deveriam ser combatidos. Além da crítica ao ateísmo dos comunistas, os religiosos discordavam da solução que era proposta por eles nas questões sociais. A Igreja Católica, preocupada com as condições de pobreza dos trabalhadores e também com a influência dos comunistas sobre eles, começou a formular um pensamento social católico. O clero procurava construir uma alternativa para o socialismo e para o liberalismo econômico que era visto, também, como um mal e responsável pela penúria dos trabalhadores.
Em 1891, o Papa Leão XIII publicou a encíclica Rerum Novarum. A partir desta obra, a Igreja Católica começou a formular oficialmente sua Doutrina Social, que serviria de direção para a atuação do clero e dos católicos nas questões sociais. Leão XIII afirmava que pretendia vir em “auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida”. O Papa constatava que “o que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços”. Para o diagnóstico do problema, porém, Leão XIII colocava a solução nas mãos dos patrões, pois, a eles competia a responsabilidade pelos operários, garantindo-lhes “plena satisfação” nas condições materiais (Leão XIII, 1891, pp. 10-23).
O Papa Pio XI, ao comemorar os 40 anos da Rerum Novarum, lembrava que, em certas regiões do mundo, os trabalhadores ainda estavam relegados “à ínfima condição e sem a mínima esperança de se verem jamais senhores de um pedaço de terra; se não se empregam remédios oportunos e eficazes, ficarão perpetuamente na condição de proletários” (Pio XI, 1931, p. 39). No entanto, esse remédio tem que de ser “segundo os princípios de um são corporativismo, que reconheça e respeite os vários graus da hierarquia social” (Pio XI, 1937, p. 33). A Doutrina Social Católica defendida pelo clero era assistencialista, paternalista e propunha como solução para os problemas socioeconômicos, uma conciliação entre as classes. E isso era proposto também pela hierarquia brasileira.
Alguns bispos paulistas pediam aos “cristãos abastados” iniciativas para a solução do flagelo social da tuberculose em nome “da piedade cristã em favor dos nossos queridos pobres e doentes” (“Pastoral Coletiva do Episcopado Paulista sobre alguns erros contra a fé e a moral”, 1941, p. 898). Não contém nenhuma referência neste documento à responsabilidade do Estado perante o flagelo da população ou de melhorias na Saúde Pública; defende-se apenas a ajuda dos ricos aos mais pobres. Um manifesto assinado pelos principais bispos do Brasil, que deveria servir de orientação de conduta aos católicos, defendia como solução para os problemas sociais, a assistência, pois constitui:
“Quando bem organizada e aplicada, um elemento de desafogo de milhares criaturas que, de outra forma, nas circunstâncias presentes, não encontrariam outra maneira de reajustamento nem outros meios imediatos para atender às necessidades urgentes de sua vida, na defesa da saúde, da educação, da alimentação, da moradia e da higiene” (“Manifesto do Episcopado Brasileiro sobre a Ação Social”, 1946, p. 479).
Estas manifestações do episcopado despolitizavam os problemas sociais. Os sacerdotes revelavam uma análise simplista da realidade brasileira e superestimavam o alcance real da assistência social, além de uma visão paternalista das relações sociais. A hierarquia não percebia que sem reformas que resolvessem as causas da pobreza, toda solução teria um alcance restrito. O clero via como causa dos problemas sociais menos as estruturas do que a falta de religiosidade da sociedade; os conflitos não estariam principalmente no sistema capitalista, mas sim nos corações dos homens. O Papa Pio XI questionava se não tinha sido a cobiça “que arrastou o mundo ao extremo que todos vemos e todos deploramos?” (Pio XI, 1932, p. 579).
[…]
Bolsonaro não é louco
Ruth de Aquino – Jornal O Globo (texto original integral aqui)
Vamos chamar a coisa pelo nome. O presidente eleito por milhões de brasileiros não é louco. Psicóticos e neuróticos podem ser classificados assim. Eles sofrem e enxergam o sofrimento do outro. Eles não têm método. Bolsonaro é diferente. Pelos estudos da psiquiatria inglesa no século XIX, Bolsonaro se encaixaria em outra categoria: a dos psicopatas.
Conversei com o psicanalista Joel Birman para entender essas fronteiras entre transtornos mentais. ‘A psicopatia não é uma loucura no sentido clássico, mas uma insanidade moral, um desvio de caráter de quem não tem como se retificar porque não sente culpa ou remorso’. Os psicopatas são ‘autocentrados, agem com frieza e método’. ‘Não têm empatia em relação ao outro, o que lhes interessa é o que lhes convém’. A palavra psicopatia vem do grego psyché, alma, e pathos, enfermidade.
A pandemia só tornou esses traços de Bolsonaro mais gritantes. Desde os primeiros grandes gestos do presidente, ficou claro, disse Birman, que seus atos ‘são marcados por crueldade e violência’. Proposição de liberar fuzis para civis. Proposição de acabar com os radares nas estradas. Proposição de não multar a falta de cadeirinha para crianças. Proposição de acabar com os exames toxicológicos para motoristas de caminhão e ônibus. Proposição de legalizar o garimpo predatório nas florestas e terras indígenas. Tudo isso é um atentado à vida.
Eu poderia lembrar o que muitos teimam em esquecer. Que Bolsonaro já era assim antes de ser eleito. Quem defende torturador e condena as vítimas, publicamente, no Congresso, não é uma pessoa que preza a vida. Não surpreende, portanto, que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, denuncie, sem meias palavras, a ‘política genocida’ de Bolsonaro. O presidente trocou seu ministro da Saúde, era sua prerrogativa, mas será barrado pelo STF se insistir em condenar o isolamento social e ameaçar a saúde pública.
Ao criar uma realidade paralela, Bolsonaro desfruta sua liberdade de ir e vir sem se importar com as consequências de seu exemplo. Ele refuta a ciência, ignora as normas sanitárias nacionais e internacionais, receita remédios polêmicos sem autoridade para isso, ironiza quem se isola, chamando a mim e a você de ‘moleques’. Coloca em maior risco os pobres. O presidente é uma temeridade ambulante. Troca um ministro da Saúde competente e popular em plena batalha.
Ao se recusar a divulgar o resultado de seu exame, Bolsonaro despreza a população, se acovarda e age diferente dos homens públicos que honram seus cargos. Pode até ser que esteja imune após uma versão branda da covid-19 e por isso se sinta apto a saracotear pelas ruas e padarias, mexendo em dinheiro e comida, enxugando o nariz e apertando as mãos do povo aglomerado. Bolsonaro não é burro nem louco. É perverso, ao estimular um comportamento de altíssimo risco.
A OMS classifica a psicopatia como um transtorno de personalidade caracterizado por um desprezo das obrigações sociais. A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa, autora do livro ‘Mentes perigosas’, diz que a ‘psicopatia não é uma doença, é uma maneira de ser’. O psicopata, segundo ela, sempre vai buscar poder, status e diversão. Enxerga o outro apenas como um objeto útil para conseguir seus objetivos.
Mandetta tinha deixado de ser útil. Por brilhar demais, por ter trânsito com o Congresso e por não se curvar a suas teses temerárias. Um ministro como esse, generoso e articulado, enlouquece um presidente transtornado. A ciência é a luz. O resto é escuridão.
A pandemia da covid-19 e o espiritismo: há um mundo de regeneração por vir?
Texto muito bom de Thiago Lima, para o Jornal GGN, que trata das elucubrações acerca do “mundo de regeneração” tão anunciado nesses tempos de pandemia por médiuns, místicos e assemelhados. Vale a leitura.
A pandemia da covid-19 e o espiritismo: há um mundo de regeneração por vir?
Thiago Lima da Silva – Jornal GGN (texto original e integral aqui).
A crise do novo coronavírus tem convidado o mundo todo à reflexão. Com os espíritas isso não tem sido diferente. A gravidade desta pandemia é tamanha, tanto em termos de extensão global quanto de intensidade, que muitas pessoas têm interpretado esta etapa que vivemos como um possível salto da Terra na escala planetária apontada por Allan Kardec. Estaríamos deixando um mundo de expiação e provas para entrar num mundo de regeneração. Embora isso pareça alentador, devemos refletir mais profundamente antes de concluirmos algo do tipo. Há algo que indica que o mundo já está se tornando um lugar melhor? Pode ser que sim; pode ser que não. O resultado dependerá das ações concretas das pessoas.
Desde que o mundo é mundo existem catástrofes de grandes proporções. A mais famosa, entre os cristãos pelo menos, é certamente o episódio bíblico do dilúvio. Além desse, para o qual não há comprovação científica, existem outros devidamente comprovados. A peste bubônica, que pode ter matado entre 70 e 200 milhões de pessoas no século XIV, e a gripe espanhola, que ceifou entre 50 e 100 milhões de encarnados há 100 anos, são dois exemplos de doenças que geraram mortandade intensa. Entre elas, diversos episódios de Fomes Coletivas, daquelas que geram morte por inanição, poderiam ser registrados. Catástrofes político-militares também caberiam no registro, desde as guerras mundiais do século passado até as “armas biológicas” utilizadas pelos europeus para exterminar os povos nativos das Américas há mais de 200 anos. Nestas, diversos tipos de vírus, como os da gripe e da varíola, foram propositalmente introduzidos no Novo Mundo para forçar o desencarne de populações que não possuíam os anticorpos para se defenderem das infecções. Esses episódios demonstraram que a Terra era um mundo de expiação e provas, ou de regeneração?
No livro “Há um mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins”, os antropólogos Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro refletem sobre algumas vezes em que o mundo já acabou e algumas em que ele vem se acabando[i]. Por exemplo, o mundo dos maias já acabou, mas o mundo de outros indígenas nativos das Américas vem acabando há mais de 500 anos. Há meio milênio os índios que habitam o solo onde hoje é o Brasil vêm se confrontando com o contínuo desmoronamento dos elementos que compõe a sua cosmovisão, e muitos ainda seguem na luta para “adiar o fim do mundo”, como argumenta ambientalista Ailton Krenak[ii]. Para outra parte substantiva das pessoas do globo –possivelmente aquela parte que irá se interessar por ler este texto–, aquelas que vivem numa sociedade capitalista e marcada pela globalização, o mundo começou a acabar com a revolução industrial, no século XIX, que acelerou brutalmente não apenas a emissão de gases nocivos ao equilíbrio da temperatura no planeta, mas também a extração de recursos naturais em escalas cada vez maiores. É um processo que não apenas gera “expulsões” da vida biológica em todas as suas formas, como sustenta a socióloga holandesa Saskia Sassen[iii], mas também a alteração dos regimes climáticos que regem a Terra há milênios. Pela primeira vez na História há uma era geológica denominada a partir da ação do ser humano, isto é, o Antropoceno. Isso quer dizer que, para o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da Organização Meteorológica Mundial e da Organização das Nações Unidas, o principal fator que afeta negativamente o clima no planeta (regime de chuvas e de secas, altas e baixas nas temperaturas, correntes oceânicas, procriação de animais selvagens, germinação de sementes etc.) são as atividades econômicas e sociais do ser humano a partir de uma lógica industrial, extrativista e de globalização, lógica esta que é dinamizada pelo capitalismo. As experiências socialistas, por sua vez, não demonstraram ser muito diferentes no que toca à preservação do meio ambiente. Na verdade, a competição da Guerra Fria estimulava a ampliação da produção industrial nas mais altas escalas ao invés de apresentar alternativas para proteger o planeta.
É possível dizer, em qualquer um desses fins de mundo, que estávamos numa fase de expiação e provas ou no limiar da regeneração planetária? Faça um esforço empático e se imagine vivendo essas catástrofes. Qual seria sua opinião?
Pois bem, há algo que indica que o mundo atual –no qual escrevo e você lê– já está se tornando um lugar melhor? Por um lado, vemos redes de solidariedade se formando entre pessoas para enfrentar a doença e lidar com seu melhor tratamento por enquanto: o isolamento social. Certamente, é algo bonito de se ver. Notamos também que a natureza pode estar aproveitando a redução da atividade econômica e da mobilidade social para respirar e se renovar –embora saibamos que processos profundos de recuperação da natureza devem ser medidos em anos e não em dias. Por outro lado, notamos que os governos dos países não têm sido tão solidários quanto poderiam. As grandes potências não cooperam entre si para organizar uma solução para crise e, enquanto isso, os países em desenvolvimento vão sofrendo com a ausência de equipamentos, profissionais de saúde e de recursos financeiros.
Nosso país, o Brasil, é um caso emblemático. Possuímos um presidente que promove aglomerações justamente quando os principais cientistas do mundo recomendam o isolamento social. Vemos um esforço sistemático para manter igrejas e templos abertos, quando o recomendável seria incentivar as pessoas a ficarem em casa. Os alertas de desmatamento na Amazônia atingem nível recorde atualmente e, quando a polícia federal agiu para coibir as operações ilegais, o governo tratou de imobilizá-la. Quanto aos trabalhadores e trabalhadoras que perderam sua renda devido à inevitável retração econômica decorrente dos processos de quarentena, estes penam para conseguir o mínimo de ajuda financeira do governo federal. Ao mesmo tempo, os trabalhadores que possuem carteira assinada são submetidos a negociações assimétricas de redução salarial. Ainda, o projeto da tal carteira de trabalho ‘verde e amarela’, aquela na qual o trabalhador registrado teria menos direitos trabalhistas, avança no congresso justamente quando a proteção dos direitos deveria ser reforçada. Quer dizer, parece ser muito cedo para apontar que a Terra entrou numa fase de regeneração.
Como demonstrado, o mundo já passou por outras catástrofes e fins. Mas o que será dele dependerá das ações de nós, encarnados. As mensagens que nos chegam pelos médiuns podem ser alentadoras e nos encherem de esperança, mas não deveriam ser tomadas como certezas. Deveriam, sim, nos inspirar a revisar nossos princípios e a estimular, em nós, a tal da reforma íntima que expurgue nossos traços de egoísmo –o principal dos males, segundo Kardec. Além disso, se estamos falando de transição planetária, a depuração do egoísmo não pode ser individual. Ela deve se reverter em ações coletivas e tanto mais amplas quanto possíveis, em associações, comunidades, cidades, estados etc. etc. Isso implicará, do nosso ponto de vista, na revisão do sistema capitalista e das desigualdades que gera[iv]. Na prática, significaria revisão dos sistemas tributários e o fortalecimento do financiamento das estruturas de saúde pública, por exemplo. Implicará também no fortalecimento da concepção de direitos humanos, por meio de políticas e de financiamento que possibilitem, de fato, a elevação das condições para que o ser humano e suas comunidades atinjam seu potencial. E isso deveria significar, entre outras coisas, que passasse a ser inaceitável que qualquer pessoa ou comunidade sofresse com a fome, com a falta de higiene, com doenças facilmente preveníveis, com a falta de educação, com a falta de igualdade de gênero e de segurança física e emocional. Precisaremos ampliar as “Fronteiras da justiça”, como defende a filósofa estadunidense Martha Nussbaum[v], e este terá de ser, necessariamente, um processo político. E o que é um processo político? É aquele em que se disputa não apenas qual visão de mundo pautará o comportamento humano por meio dos princípios que carrega, mas também pelos instrumentos institucionais de que o estado dispõe para fazer valer esta visão de mundo[vi].
Para os espíritas progressistas, portanto, a construção de um mundo de regeneração passará, necessariamente, pela assunção de responsabilidades e pelo agir concreto e prático de construção de um novo mundo. Se as almas que aqui desembarcarem na esteira desta crise forem mais elevadas, ótimo, pois encontrarão condições melhores para desenvolverem seu potencial. E, se forem mais das mesmas almas, ótimo também, pois coletivamente teremos mais meios para auxiliá-las a encontrar um caminho de desenvolvimento. O importante, de um modo ou de outro, é trabalhar para acontecer.
*Thiago Lima da Silva é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba e membro da Associação de Estudos e Pesquisas Espíritas de João Pessoa.
Notas:
[i] DANOWSKI, D,. CASTRO, E. V. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fns. Florianópolis, Instituto Socioambiental, 2014.
[ii] KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[iii] SASSEN, S. Expulsões. Brutalidade e Complexidade na Economia Global. . Paz & Terra. 2016.
[iv] DOWBOR, L. A era do capital improdutivo – a nova arquitetura do poder: dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta. São Paulo: Outras Palavras & Autonomia Literária, 2017.
[v] NUSSBAUM, M. C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. Tradução de Susana de Castro. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
Publicado no Facebook em 18/4/2020.