Autodestruição

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suicida
“O suicida”, pintura a óleo feita por Édouard Manet, entre 1877 e 1881.
Morrer pelo coronavírus ou morrer pelos crimes do energúmeno presidente: uma difícil escolha para o trabalhador brasileiro. Enquanto alguns países tomam medidas para garantir a renda do trabalhador, o presidente eleito pela mentira e pelo ódio segue em sua mórbida jornada em direção ao extermínio da dignidade e da vida dos trabalhadores. Essa estranha gente aproveita-se da situação de caos em que o mundo se encontra por causa da pandemia viral e toma medidas que levarão o povo trabalhador ao desespero, à indignidade e, claro, à morte. É a continuidade da necropolítica fascista em pleno vigor. O (des)governo de milicianos e corruptos publicou ontem à noite a Medida Provisória nº 927, que concede ainda mais benefícios ao capital enquanto, por outro lado, retira o único meio de sobrevivência do trabalhador: seu salário. O que essa gente cruel acha que ocorrerá à família trabalhadora sem 4 meses de salário? Não há adjetivos que possam classificar essa medida. É tão estúpida e cruel que até os mais insensatos e doentes seguidores dessa seita necropolítica devem ter ficado ruborizados. Mas, acreditem, haverá bolsoespíritas que ainda terão a desfaçatez de, pelas redes sociais, apoiar tal medonha decisão, argumentando que isso “preservará os empregos”. Ora, senhores médiuns e dirigentes espíritas afamados, ninguém quer emprego preservado sem renda para comer e sobreviver. Tenham um mínimo de compostura e dignidade. Esses espíritas de fancaria, muitos aboletados em importantes casas e federações espíritas pelo país, têm-se mostrado uma vergonha para qualquer pessoa que se diga minimamente cristã, quiçá para o movimento espírita. O povo brasileiro escolheu o caminho da autodestruição. Um dia, num futuro não tão distante, caberá a historiadores, sociólogos e cientistas políticos explicarem as consequências nefastas dessa escolha. E caberá a psiquiatras e psicólogos entenderem os traumas que levaram o povo brasileiro ao suicídio coletivo. A MPV n° 927, de 22 de março de 2020 pode ser lida aqui. Publicado no Facebook em 23/3/2020.

Um inepto no comando da nau em plena tempestade.

O Brasil foi pego no contrapé. Em plena tempestade social e econômica causada pela pandemia do coronavírus, tem-se um presidente completamente inepto e inapto às funções que lhe foram dadas pelas últimas eleições, quando, na oportunidade, o povo brasileiro escolheu dar um tiro no seu próprio pé. Ao eleger para liderá-lo um líder miliciano ligado à corrupção, às práticas imorais nas sombras dos gabinetes legislativos e à baixíssima produtividade nas três décadas no parlamento, a sociedade brasileira escolheu o risco óbvio de transitar na beira do abismo. Bastaria um vento mais forte para jogar o país ao caos, imagina uma tempestade perfeita como uma pandemia e uma catástrofe na saúde pública. Não há saída para o Brasil que não passe pelo impedimento do atual (des)governo. A destituição do energúmeno presidente, e toda a sua quadrilha, é premente e salvará vidas. Um inepto no comando da nau em plena tempestade.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A única saída é o impeachment

Vladimir Safatle – EL PAÍS Brasil Esse gesto tem força civilizadora. O Brasil não pode ter duas crises a gerenciar, a saber, o coronavírus e Bolsonaro. No dia 18 deste mês, três combativos deputados federais (Fernanda Melchionna, Sâmia Bonfim e David Miranda) protocolaram um pedido de impeachment contra Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Este pedido foi assinado por vários membros da sociedade civil, entre eles por mim. A este grupo, somaram-se mais de 100.000 assinaturas de apoio. O pedido motivou algumas críticas vindas, inclusive, da própria direção do partido de tais deputados, abrindo um debate importante a respeito das estratégias da oposição neste momento. Por isto, gostaria de aproveitar este espaço a fim de insistir que tais críticas estão profundamente equivocadas e expressam, na verdade, falta de clareza e direção em momento tão dramático de nosso país. Duas questões se colocam a respeito de tal problema. Primeiro, se devemos ou não devemos lutar pelo impeachment de Jair Bolsonaro. Segundo, caso a primeira resposta seja afirmativa, há de se discutir quando um pedido desta natureza deveria ser feito. Sobre o primeiro ponto, normalmente os que recusam a tese do impeachment afirmam que de nada adiantaria trocar Bolsonaro por seu vice, o general Mourão. Tal troca, na verdade, equivaleria a entregar de vez o controle do estado ao Exército, com consequências catastróficas. Há ainda aqueles que dizem ser miopia política e irresponsabilidade administrativa lutar pelo impeachment em meio a maior crise sanitária que o mundo conheceu desde há muito. Melhor seria aproveitar o enfraquecimento de Bolsonaro e levar o estado brasileiro a retomar investimentos no SUS, a revogar o teto de gastos, entre outras ações. Aos que dizem nada adiantar trocar Bolsonaro por seu vice gostaria de dizer que o foco de análise talvez esteja equivocado. A questão coloca pelo impeachment não é ‘quem assume’. Antes, trata-se de mostrar claramente que o país repudia de forma veemente quem age a todo momento para solapar os espaços mínimos de conflito político e que demonstrou irresponsabilidade e incapacidade absoluta de gerenciar forças para preparar o país para lidar com uma epidemia devastadora. Bolsonaro é um agitador fascista e um chefe de gangue narcísico que zombou do povo brasileiro e de sua vulnerabilidade no momento em que devia ter baixado as armas, convocado um governo de união nacional, sentado com a oposição e convergido forças para colocar a sobrevivência das pessoas à frente das preocupações econômicas imediatas e das preocupações políticas de seu grupo. Neste sentido, um impeachment neste momento teria um valor civilizatório, pois deixaria claro que a sociedade brasileira não admite ser comandada por alguém que se demonstra tão inepto e com interesses exclusivos de autopreservação. Bolsonaro demonstrou nos últimos dias como é capaz de produzir ações que desmobilizam as tentativas da sociedade em conscientizar todos da situação em que nos encontramos. Suas ações custam vidas. A questão sobre quem ocupará o lugar de Bolsonaro é um cortina de fumaça que demonstra desconfiança na força destituinte da soberania popular. Este mesmo argumento foi usado quando Michel Temer estava nas cordas, na ocasião da greve dos caminhoneiros. Dizia-se que não fazia sentido troca-lo por Maia. Hoje, Maia é endeusado por alguns como o esteio da racionalidade no Estado brasileiro. Já aos que afirmam que o momento é de lutar para empurrar o Estado a aplicar políticas de proteção social, eu diria que os últimos dias mostraram que isto é algo da ordem do delírio. Pois o Governo aproveita a situação de caos para permitir às empresas cortarem jornada de trabalho e salários pela metade, permitir licenciamentos sem custos, usar os parcos recursos públicos para salvar empresas aéreas monopolistas especializada em espoliar consumidores e pressionar pelas mesmas ‘reformas’ que destruíram a capacidade do Estado de operar em larga escala em situações de risco biopolítico com esta. Ou seja, achar que é possível negociar com quem procura toda oportunidade para preservar seus ganhos, com quem se serve do Estado para espoliar o povo em qualquer situação que seja, demonstra incapacidade de saber contra quem lutamos. Que aprendam de uma vez por todas: neoliberais não choram. Eles fazem conta, mesmo quando as pessoas estão a morrer à sua volta. Engana-se quem espera que Bolsonaro faça alguma forma de reconhecimento da necessidade de políticas públicas fortes, como fez o presidente francês Emmanuel Macron em momento de desespero. Isto apenas demonstra como há setores da esquerda brasileira que nada aprenderam a respeito de nossos inimigos. A eles, devemos insistir que a única maneira de realmente combater a pandemia é afastando Bolsonaro do poder em um movimento que mostraria, ao resto da classe política, o caminho da guilhotina diante da cólera popular pela inação e irresponsabilidade do governo diante das nossas mortes. Volto a insistir, esse gesto tem força civilizadora. O Brasil não pode ter duas crises a gerenciar, a saber, o coronavírus e Bolsonaro. Já os que falam que o momento é cedo para um pedido de impeachment, que é necessário compor calmamente com todas as forças, diria que isto nunca ocorrerá. A esquerda brasileira já se demonstrou, mais de uma vez, estar em uma posição de paralisia e esquizofrenia. Ela grita que sofreu um golpe enquanto se prepara rapidamente para a próxima eleição, sem querer ver a contradição entre os dois gestos. Ela luta contra a reforma previdenciária enquanto a aplica em casa. Ela não encontrará unidade para um pedido de impeachment ou só encontrará muito tarde, quando setores da centro-direita e da direita já tiverem monopolizado a pauta do impeachment. Por outro lado, 45% da população é a favor do impeachment de Bolsonaro (Atlas Político), a população manifesta-se cotidianamente através de panelaços em bairros até então solidamente ancorados no apoio a Bolsonaro, grupos que o apoiavam entrar em rota de colisão com ele. Se este não é um bom momento para a apresentação do pedido, alguém poderia me explicar o que significa exatamente ‘bom momento’? Quando estivermos todos mortos? Nestas circunstâncias, melhor respeitar um princípio autonomista de grande sabedoria estratégica. Em um campo comum, baseado na ausência de hierarquia e na confiança entre todos os que partilham os mesmos horizontes de luta, todos têm autonomia de ação e decisão. Ninguém precisa de autorização para fazer uma ação política efetiva. Dentro do campo comum ou seus membros implicam-se nas ações feitas de forma autônoma ou quem não concorda não atrapalha. Fora disto, é a posição subserviente de esperar que o líder (que não existe mais) dê sinal verde ou aponte o caminho para os demais. O que significa uma forma de submissão que nunca poderia fazer parte das estratégias daqueles que lutam por uma emancipação real. Publicado no Facebook em 21/3/2020.

Coronavírus causa doença contagiosa. E ela não é um juízo moral.

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É preciso sensatez e serenidade para não cair nas bizarras falas que se ouvem por aí propaladas por bolsoespíritas.corona Hoje, um famoso médium, em desalinho com as informações de caráter científico e ombreado pelos mais fanáticos fundamentalistas religiosos, falou em anjo que soprou sobre a humanidade o coronavírus e que aqueles que têm “afinidade psíquica” e que desrespeitam as leis divinas serão os mais afetados pela doença. Nada mais asqueroso e abjeto do que associar uma doença contagiosa a uma opção moral qualquer. Essa indignidade seria esperada em religiosos medievais, sejam eles contemporâneos ou não, mas vindo de quem tem palco para falar em nome do movimento espírita, cujas propostas são de amor, compreensão e racionalidade, é degradante. Esse tipo de gente não deve mais falar em nome daquilo que foi proposto por Kardec e os espíritos que o auxiliaram. O movimento espírita vem sendo sistematicamente desmoralizado e desacreditado. A situação tem-se tornado simplesmente insustentável. Até quando se terá de ouvir tais desatinos e tão lamentável postura em nome do espiritismo? Recomenda-se fortemente que, em relação à pandemia causada pelo coronavírus, não se dê ouvidos a esse tipo de irracionalidade que poderá causar mais dor e morte. É preciso atentar-se apenas às informações oficiais sobre a prevenção dessa doença e a recuperação dos infectados. Má informação e mentiras espalhadas pela internet causarão mortes. Discursos religiosos que comparam doentes à imorais causarão mortes. E essa gente ignorante que faz isso causará morte. Há um limite para tanta insanidade. E esse limite hoje foi, infelizmente, ultrapassado. Publicado no Facebook em 15/3/2020.

Uma homenagem a “Moor”

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Ontem, 14 de março de 2020, completaram-se 137 anos da morte de Karl Marx (1818-1883). Poder-se-iam aqui fazer loas merecidas aos seus inigualáveis textos sobre as relações entre trabalho e capital ou às suas críticas sempre mordazes aos que não conseguiam entender suas reflexões. Não. A homenagem aqui é para o homem Marx, dentro das suas relações humanas mais íntimas: a família. Muito de falso e inescrupuloso se fala sobre essas relações familiares de Marx. Então, ouça-se o que diz Eleanor Marx, sua filha mais nova, sobre “Moor”, o pai e marido Karl. Carta publicada na Revista Germinal: Marxismo e Educação em Debate (Salvador, v. 10, n. 1, mai. 2018).
Na foto Karl Marx (direita) e Friedrich Engels, com as filhas do primeiro. Da esquerda para a direita, Jenny, Laura e Eleanor. MARKA / UIG / GETTY IMAGES
Karl Marx (1) Eleanor Marx-Aveling (2) (Algumas notas casuais) Meus amigos austríacos pedem-me que lhes envie algumas recordações de meu pai. Não poderiam ter me pedido nada mais difícil. Porém, os homens e mulheres austríacos estão sustentando uma luta tão bela pela causa por que Karl Marx viveu e trabalhou que não se pode dizer-lhes não. Por isso, tentarei mesmo mandar-lhes algumas notas casuais, esparsas, acerca de meu pai. Muitas histórias estranhas têm sido contadas a respeito de Karl Marx, desde as de seus “milhões” (em libras esterlinas, evidentemente, pois nenhuma moeda inferior serviria), até a de ele ter sido subvencionado por Bismarck, a quem por hipótese teria visitado constantemente em Berlim durante o tempo da Internacional(!). Mas, afinal de contas, para os que conheceram Karl Marx nenhuma lenda é mais engraçada do que a que o descreve comumente como um homem casmurro, virulenta, inflexível, trovejando, nunca visto sorrindo, sentado sozinho e aparatado no Olimpo. Essa imagem da mais jovial e alegre alma que jamais respirou, de um homem fervilhante de humor e bom humor, cuja gargalhada cordial era contagiosa e irresistível, do mais delicado, meigo e compadecido dos companheiros, é um permanente portento – e divertimento – para os que o conheceram. Em sua vida doméstica, assim como em colóquios com amigos, e até com meros conhecidos, creio poder se dizer que as principais características de Karl Marx eram seu ilimitado bom-humor e sua irrestrita compaixão. Sua delicadeza e paciência eram realmente sublimes. Um homem de temperamento menos brando teria muitas vezes ficado frenético com as interrupções constantes, as exigências contínuas a ele feitas por toda espécie de pessoas. Ter um refugiado da comuna – um rematado maçador antigo, por sinal – que retivera Marx durante três horas mortíferas, ao final lhe ser dito que o tempo estava correndo e ainda havia muito trabalho a fazer, respondido “Mon cher Marx, je vous excuse” é característico da cortesia e delicadeza de Marx. Como com esse velho paulificante, também com qualquer homem ou mulher que ele julgava honesto (e ele dedicou seu tempo precioso a não poucos que melancolicamente abusaram da sua generosidade), Marx era sempre o mais amigável e gentil dos homens. Seu poder para “puxar” pelas pessoas, fazendo-as crer que estava interessado naquilo que lhes interessava, era maravilhoso. Tenho ouvido homens das mais diversas profissões e posições falar da capacidade especial dele para compreendê-los e aos seus assuntos. Quando ele acreditava na sinceridade de alguém, sua paciência era irrestrita. Nenhuma pergunta era por demais trivial para ele responder, nenhum argumento demasiadamente infantil para merecer discussão séria. Seu tempo e sua vasta cultura estavam sempre a serviço de qualquer homem ou mulher que aparecesse ansioso por aprender. * * * Era em suas relações com os filhos, porém, que Marx talvez fosse mais fascinante. Por certo, nunca crianças tiveram um companheiro de brincadeiras mais encantador. Minha mais remota lembrança dele é de quando eu tinha cerca de três anos, e “Moor” (o velho apelido de casa escapou-me) me levava nos ombros em volta do nosso pequeno jardim em Grafton Terrace, pondo flores “campainha” nos meus cachos castanhos. “Moor” era reconhecidamente um cavalo esplêndido. Antes disso – não me lembro mas ouvi contar – minhas irmãs e o irmãozinho – cuja a morte logo após meu nascimento foi uma dor que afligiu meus pais a vida inteira – “atrelavam” “Moor” a cadeiras, em que eles montavam e ele tinha de puxar… Pessoalmente – talvez por não ter irmãs de minha idade – eu preferia “Moor” como cavalo de sela. Sentada em seus ombros, agarrando-me em sua vasta cabeleira então negra, mas com salpico grisalho, dei magníficos passeios em nosso jardinzinho e pelos campos – agora cheios de prédios – que rodeavam nossa casa em Grafton Terrace. Uma palavra quanto ao apelido “Moor”. Em casa, todos tínhamos apelidos. (Os leitores de “O capital” saberão como Marx era bom em pôr apelidos.) “Moor” era o nome comum, quase oficial, pelo qual Marx era chamado não só por nós, como por todos os amigos mais íntimos. Mas ele era também nosso “Challey” (originalmente, creio eu, uma corruptela de Charles) e “Old Nick”. Minha mãe era sempre nossa “Mohme”. Nossa velha e querida amiga Hélène Demuth – a amiga de uma vida inteira de meus pais –, após uma série de nomes, tornou-se a nossa “Nym”. Engels, depois de 1870, tornou-se nosso “General”. Uma amiga muito intima – Lina Schoeler – nossa “Velha Toupeira”. Minha irmã Jenny era “Qui Qui, Imperador da China” e “Di”. Minha irmã Laura (Madame Lafargue), “a Hotentote” e “Kakadou”. Eu era “Tussy” – um nome que ficou – e “Quo, Quo, Sucessor do Imperador da China”, e por muito tempo o “Getwerg Alberich” (dos Niebelungen Lied). Contudo, embora “Moor” fosse excelente cavalo, ele possuía uma outra qualidade ainda mais alta. Era um contador de histórias ímpar, sem rival. Ouvi minhas tias dizerem que em pequeno ele era um terrível tirano para as irmãs, a quem “guiara” ao longo do Markusberg em Trier, a toda velocidade, como cavalos dele, e, o que é pior, insistia em que comessem os “bolinhos” que ele fazia com massa suja e mãos ainda mais sujas. Elas, porém, aguentavam tudo sem murmurar, para poderem ouvir as histórias que Karl lhes contaria depois como recompensa por sua virtude. E assim, muitos anos depois, Marx contava histórias para os filhos. A minhas irmãs – eu era então muito pequena – contava histórias quando saiam caminhando, e elas eram medidas em quilômetros e não em capítulos. “Conta mais um quilômetro”, era o grito das duas meninas. De minha parte, dos muitos contos maravilhosos que “Moor” me contou, o mais notável, o mais delicioso, foi “Hans Roeckle”. Durou meses e meses; era uma série completa de histórias. Que pena ninguém estar ali escrevendo aqueles contos tão cheios de poesia, de espírito, de humor! Hans Rockle era um mágico à moda de Hoffmann, que possuía uma loja de brinquedos e vivia sempre “pronto” a loja dele estava cheia de coisas mais extraordinárias – homens e mulheres de madeira, gigantes e anões, reis e rainhas, trabalhadores e patrões, animais e pássaros tão numerosos como os que Noé colocou em sua Arca, mesas e cadeiras, carruagens, caixas de toda espécie de tamanho. E embora fosse mágico, Hans nunca conseguia satisfazer suas obrigações para com o diabo ou o açougueiro, e portanto – muito a contragosto – era obrigado constantemente a vender seus brinquedos – sempre acabando de volta à loja de Hans Roeckle. Algumas dessas aventuras eram tão horrendas, tão horríveis quanto qualquer uma de Hoffmann; algumas eram cômicas; todas eram narradas com inesgotável verve, espírito e humor. E “Moor” também lia para os filhos. Foi assim que para mim, como antes para as minhas irmãs, leu na íntegra Homero, os Niebelungen Lied, Gudrun, Dom Quixote, as Mil e Uma Noites etc. Quanto a Shakespeare, era a Bíblia de nossa casa, raramente fora de nossas mãos e de nossos lábios. Aos seis anos, eu já conhecia de cor cenas inteiras de Shakespeare. Em meu sexto aniversário “Moor” presenteou-me com minha primeira novela – o imortal Pedro Simplório. Essa foi acompanhada por um curso inteiro de Marryat e Cooper. E meu pai de fato lia cada um dos contos a medida que eu os lia e discutia-os seriamente com sua garotinha. E quando essa garotinha, inflamada pelos contos marítimos de Marryat, declarou que iria ser um “Capitão do Posto” (sei lá o que isso seria) e consultou o pai se não lhe seria possível “vestir-se como menino” e “fugir para alistar-se em um navio de guerra”, ele lhe garantiu que a ideia poderia muito bem ser seguida, mas só que não deveriam contar a ninguém até os planos estarem bem amadurecidos. Antes dos planos poderem amadurecer, contudo, pegara a mania de Scott, e a menina ouviu, para seu horror, que ela mesma em parte pertencia ao detestado clã dos Campbell. Em seguida, houve planos para sublevar os Highlands e para reviver “os quarenta e cinco”. Devo acrescentar que Scott era um autor a quem Marx repetidamente voltava, que admirava e conhecia tão bem quanto a Balzac e Fielding. E enquanto conversávamos sobre esses e muitos livros, ele ia indicando a essa menina, que se mostrava completamente inconsciente ao fato, onde procurar o que havia de melhor nos livros, ensinando-a – embora ela nunca imaginasse que estivesse sendo ensinada, ao que se teria oposto – a tentar e a pensar, a tentar e a entender por si mesma. E da mesma forma, esse “amargo” e “exasperado” homem falava de “política” e “religião” com a meninazinha. Quão bem me recordo, quando tinha talvez cinco ou seis anos, ter sentido certos escrúpulos religiosos e (tínhamos estado em uma igreja católica romana para escutar a linda música) confiando-os, naturalmente, a “Moor”, como ele calmamente deixou tudo tão claro e certo para mim que desse momento até hoje nenhuma dúvida jamais voltou a passar por meu pensamento. Lembro-me, agora, de ele me contar a história – não acho que poderia ter sido contada assim antes ou depois – do carpinteiro a quem os ricos mataram, e de dizer inúmeras vezes: “Afinal de contas podemos perdoar muita coisa ao cristianismo por nos ter ensinado o culto da criança.” E o próprio Marx poderia ter dito “deixem as criancinhas vir a mim”, porque onde quer que ele fosse também surgiam crianças. Se se sentava na charneca em Hampstead – um vasto espaço aberto no norte de Londres, perto de nossa antiga casa –, se descansava em um banco num dos parques, dentro em pouco um bando de crianças estava reunido em volta dele nos termos mais íntimos e amigáveis com o homem grande de cabelos e barba longos e os bondosos olhos castanhos. Crianças completamente estranhas vinham assim a ele, paravam-no na rua… uma vez, recordo-me, um pequeno escolar de uns dez anos bem sem cerimônia deteve o temível “chefe da Internacional” no Parque Maitland e pediu-lhe para “barganhar canivetes”. Após uma pequena explicação indispensável de que “barganhar” era o termo escolar para “trocar”, os dois canivetes apareceram e foram comprados. O do menino tinha só uma lâmina e o do homem duas, mas estas estavam inegavelmente cegas. Após muito debate, foi feita a barganha: O terrível “chefe da Internacional” acrescentou uma moeda, levando em conta que suas lâminas estavam cegas. Como me lembro bem da paciência e doçura infinitas com que, tendo a guerra norte-americana e os Livros Azuis substituído temporariamente Marryat e Scott, ele respondia a todas as perguntas e nunca se queixava de uma interrupção. No entanto, não deve ter sido pouco transtorno crianças pequenas tagarelando enquanto ele trabalhava em seu grande livro. À criança, porém, jamais era dado ensejo de perceber que podia estar atrapalhando. Nessa época, também, lembro, tive absoluta convicção de que Abraão Lincoln precisava urgentemente de meus concelhos sobre a guerra, e escrevia cartas extensas dirigidas a ele, todas as quais, está claro, “Moor” tinha de ler e por no correio. Muitos, muitos anos depois, ele mostrou-me aquelas cartas infantis que guardara porque o tinham divertido muito. E assim, através dos anos da infância e da juventude, “Moor” foi um amigo ideal. Em casa, todos éramos bons camaradas e ele sempre o mais dedicado e mais bem humorado. Mesmo durante os anos de sofrimento, quando padecia continuamente de dores, devido aos carbúnculos, mesmo até o fim… * * * Escrevinhei estas poucas reminiscências descosidas, mas mesmo assim ficariam incompletas se não acrescentasse uma palavra sobre a minha mãe. Não é exagero afirmar que Karl Marx nunca poderia ter sido o que foi sem Jenny von Westphalen. Nunca ouve dias de duas pessoas – ambas notáveis – tão unidas, tão completamente uma da outra. De beleza extraordinária – uma beleza de que ele se orgulhava e alegrava até o fim, e que merecera a admiração de homens como Heine, Herwegh e Lassalle –, de intelecto e espirito tão brilhantes quanto sua beleza, Jenny von Westphalen foi uma mulher entre milhões. Como rapaz e mocinha – ele mal fizera 17, ela 21 – ficaram noivos, e como ocorreu com Jacó em relação a Raquel, ele serviu sete anos antes de se casarem. Depois, através dos anos seguintes de tempestades e tensão, de exílio, pobreza áspera, calúnia, luta intrépida e batalha porfiada, esses dois, com sua fiel e leal amiga Hélène Demuth, enfrentaram o mundo, nunca titubeando, nunca recuando, sempre no posto do dever e do perigo. Em verdade, poderia ele dizer dela nas palavras de Browning: “Portanto,  ela é minha noiva imortal. A sorte não pode mudar meu amor, Nem o tempo debilitá-lo…” E eu, às vezes, penso que quase tão forte entre eles como foi o vínculo de seu devotamento à causa dos trabalhadores foi também o seu imenso senso de humor. Garanto que nunca duas pessoas apreciaram melhor uma brincadeira do que aqueles dois. Repetidas vezes – especialmente se a ocasião exigia compostura e seriedade – vi-os rir até as lagrimas correrem pelas faces a baixo, e mesmo as pessoas dispostas a ficar chocadas ante tamanha jovialidade intempestiva não podiam deixar de rir com eles. E quão amiúde vi-os sem se atreverem a olhar um para o outro, cada um sabendo que um mero vislumbre trocado resultaria em risadas incontroláveis! Ver os dois com os olhos fixos em qualquer coisa que não fosse o outro, parecendo, a todos, dois escolares, sufocando com o riso reprimido que acabava, a despeito de todos os esforços, arrebentando, é uma recordação que eu não trocaria por todos os milhões que as vezes atribuem a minha herança. Sim, malgrado todo o sentimento, as lutas, os desapontamentos, eles eram uma dupla alegre e o acirrado Júpiter Tonitruante uma ficção da imaginação burguesa. E se nos anos de luta houve muitas desilusões, se depararam com a ingratidão de estranhos, tiveram o que a poucos é dado – amigos sinceros. Onde é conhecido o nome de Marx, também é o de Friedrich Engels. E aqueles que conheceram Marx em seu lar também se lembram do nome da mais nobre das mulheres que jamais viveu, o nome honrado de Hélène Demuth. Aos estudiosos da natureza humana, não parecera estranho que esse homem, que foi um tal lutador, fosse ao mesmo tempo o mais dedicado e meigo dos homens. Entenderão que ele pôde odiar tão ferozmente só porque soube amar profundamente; que se sua caneta cortante podia certamente prender uma alma no inferno como o próprio Dante, foi por ele ser tão sincero e terno; que se seu humor sarcástico podia morder como ácido corrosivo, esse mesmo humor podia ser igualmente um lenitivo para os aflitos e os em dificuldade. Minha mãe morreu em dezembro de 1881. Quinze meses depois, ele, que nunca estivera separado dela em vida, reuniu-se-lhe na morte. Após a febre espasmódica da vida, eles dormem bem. Se ela foi uma mulher ideal, ele – bem, ele “foi um homem, considere-o no todo, não veremos igual jamais”. Notas:
  1. Transcrito de FROM, Erick. Conceito Marxista de Homem. 6a Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
  2. Personalidade do movimento operário inglês e internacional, filha mais nova de Marx, companheira do socialista inglês Eduard Aveling. Participou da Federação Democrática liderada por Henry Hyndman no início dos anos 1880. Junto com Eduard Aveling e William Morris participou da formação da Liga Socialista, tendo publicado, no Commonwal – jornal mensal da entidade – vários artigos e comentários sobre a questão feminina e outras questões. Foi uma ativa militante sindical, e em 1889 participou, como delegada, da fundação da Segunda Internacional. Após a morte de Engels dedicou-se à tarefa de organizar os manuscritos de Marx. Suicidou-se em 31 de março de 1898 com a idade de 43 anos. Marxist Internet Archive. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/eleanor/index.htm. Acesso em 21/05/2018. Publicado no Facebook em 15/3/2020

Quando os mansos herdarão a terra?

Nova coluna de Isabel Guimarães para a página “Espíritas à esquerda”. Nesse seu texto exclusivo para nossa página, Isabel discute a mansidão. mansos

Quando os mansos herdarão a terra?

“Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.” Jesus, em Evangelho de Mateus, 5, 5

O discurso das bem-aventuranças para mim é a mais bela passagem do Evangelho, porque nela parece que Jesus quis resumir a totalidade de sua proposta revolucionária para as relações humanas ontem e hoje. Destaco uma delas, por considerá-la muito pertinente ao cenário que se descortinou em nosso país nos últimos anos, gosto do termo descortinar porque remete a algo que estava oculto e se revela. Escrever esse texto foi um grande desafio, demorei um tempo fora do meu padrão de escrita, achei muito difícil encontrar as palavras que traduzissem o que gostaria de transmitir, só muito tempo depois compreendi que estava resistindo, certamente a mesma resistência que muitos companheiros e companheiras espíritas, do campo da esquerda, talvez enfrentem, para falar do par de opostos: mansidão x violência. Então optei por escrever um texto provocativo, muito mais para questionar do que para responder, só assim passei a me sentir menos desconfortável com o tema. Afinal somos chamados em toda a nossa formação, no espiritismo, a sermos mansos, brandos e pacíficos, a nos contrapormos firmemente a qualquer tipo de violência, então o dilema está posto, ele consiste em nos perguntarmos como encaminhar a luta da ideologia que sustenta nossa visão de mundo sem sermos violentos? Afinal como lidar com um mundo conturbado, onde assistimos diariamente a aparente vitória dos violentos? Violência que se expressa na polícia, braço armado do estado, que agride negros e pobres; no estado, que não garante as mínimas condições e sobrevivência do povo e ainda desmonta as poucas políticas de bem-estar social de nosso país; no homem machista, que agride, violenta, silencia, coage e mata as mulheres; na violência urbana, que nos torna prisioneiros dos espaços seguros, obstruindo a nossa liberdade de ir e vir na hora e para onde quisermos; na degradação ambiental, com destruição de reservas vitais para a sustentabilidade da vida no planeta; nas guerras comercias e militares, que destroem famílias, deixam órfãs as crianças num rastro de destruição e terra arrasa; na fome de milhões de seres humanos morrendo de inanição, enquanto poucos vivem chafurdados em verdadeiras orgias alimentares; na degradação do corpo, seja pela promiscuidade sexual, seja pela ditadura de um padrão de beleza que mata e infelicita  homens e mulheres; na homofobia, que grotescamente assassina, com requintes de crueldade, o outro que apenas busca ser o que é; nos religiosos mercadores da fé, que distorcem os ensinamentos de Jesus para caberem em suas ganância e fome de poder; nos empresários corruptos, que compram os políticos, e nos políticos, que se vendem aos empresários; e no racismo estrutural, que ignora 300 anos de escravidão e suas perversas sequelas para o povo negro. A pergunta é: como ser manso diante de tanta opressão, violência, perversidade e loucura? Como ser manso diante, da injustiça, da hipocrisia e do cinismo? Talvez estejamos precisando compreender melhor o que é mansidão? De que mansidão falava Jesus quando lidava com uma sociedade na qual a violência também imperava? Sim, porque a cultura do Império Romano se caracterizava por sua dureza, crueldade, violência e pela instabilidade política e religiosa, e, por outro lado, os judeus, apesar de subjugados política e economicamente ao império Romano, seguiam suas tradições religiosas, que não se separavam da política e das normas sociais, a lei mosaica regia a vida do povo judeu. Leis essas extremamente rígidas e duras, em especial para as mulheres. Então como Jesus exerceu a mansidão diante de um cenário de extrema violência? Ele defendeu ideias e agiu de forma absolutamente coerente com aquilo que defendia, aproveitando cada experiência da vida cotidiana para ensinar e agir contrapondo-se à injustiça, à hipocrisia e à violência reinantes no seio daquela sociedade. Porque a cada momento evolutivo, a sociedade se organiza e constrói sua dinâmica de acordo com o conjunto das individualidades dos seus membros, tendo como resultante uma estrutura social com seus avanços e retrocessos, com suas virtudes e perversidades. Portanto não podemos utilizar a proposta de mansidão para justificar nossa passividade diante da injustiça, perversidade, opressão e hipocrisia. Jesus não pregou a violência armada mas atuou no campo das ideias, buscando encontrar nos corações humanos solo fértil para plantar as sementes de amor, de solidariedade de fraternidade para que a árvore do bem coletivo crescesse e desse frutos. Jesus se armou de um ideal e com força, coragem e firmeza o defendeu até a morte, e nós até que ponto estamos defendendo nossas ideias? Até que ponto estamos sendo coerentes entre o que defendemos na oratória e na escrita e as nossas atitudes? Porque as ideias são sustentadas e nutridas pelas atitudes. São as ideias que mudam o mundo, porque ideias não morrem jamais, ela estão sempre se espalhando e fecundando corações até que se coagulam e se transformam em ação, e aí as mudanças ocorrem. Todas as transformações das sociedades humanas, ocorreram porque indivíduos e grupos se colocaram à frente do seu tempo e enfrentaram suas mazelas, e todos, sem exceção, sofreram represálias dos que não desejavam as mudanças. Não confundir mansidão com passividade, porque expressar a indignação diante da injustiça não é ser violento, desmascarar a hipocrisia não é ser perverso, e foi isso que fez Jesus e podemos ter certeza que ele se insurgiu contra aquela ordem social vigente. Por que ele foi assassinado? Por que o crucificaram se ele não pegou em armas, não ofendeu ninguém, não tentou tomar o lugar de ninguém? Ele defendeu um ideal e agiu de acordo com esse ideal. Talvez possamos nos inspirar em sua conduta, e aproveitarmos todos os espaços e oportunidades da vida cotidiana para exercitarmos nosso ideal, ainda que por conta dessa defesa sejamos desprezados por uns, incompreendidos por outros e até presos ou mortos por terceiros. Afinal que herança deixaremos para os mansos que herdarão a terra quando aqui não mais estivermos? Deixaremos a única coisa que não morre jamais, mataram Jesus, mas suas ideias atravessaram o tempo e alcançaram nossos corações. E, como diz a belíssima canção “Luzes da Ribalta”, composta pelo inesquecível Charles Chaplin (1889-1977), na versão de Antônio Almeida, “para que chorar o que passou, lamentar perdidas ilusões, se o ideal que sempre nos acalentou renascerá em outros corações”.

Os fascistas mostram suas garras

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O professor Felipe Boff, que leciona jornalismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), foi hostilizado pela plateia durante a leitura de seu discurso de paraninfo na formatura da turma de jornalismo, na última sexta-feira, 7 de março, em São Leopoldo, Rio Grande do Sul. O assédio e a virulência das reações da audiência fascista foram motivados pelas muitas citações feitas no discurso do professor dos tenebrosos ataques proferidos pelo inominável, o chefe do clã miliciano, aos jornalistas quase diariamente. Ao final do evento, em função das ameaças sofridas, o professor teve de sair escoltado por seguranças da instituição de ensino. Felipe Boff manifestou-se posteriormente por meio de sua conta no Facebook, apresentando o conteúdo completo de seu corajoso discurso. Seguem abaixo a notícia e a publicação do professor: Aqui a notícia no Jornalistas Livres.

Hoje à noite, algumas pessoas pouco afeitas à liberdade de expressão e à democracia tentaram, aos gritos, me impedir de prosseguir com meu discurso de paraninfo na formatura da turma de Jornalismo da Unisinos. A virulência desse ataque – que fez até a instituição colocar seguranças para me acompanharem na saída do auditório – só reforçou a importância do que foi dito. Por isso, compartilho a seguir o discurso, que pôde ser proferido até o fim graças ao apoio de professores, formandos, alunos, ex-alunos e muitos mais.

Felipe Boff

DISCURSO DE FORMATURA

A imprensa brasileira vive seus dias mais difíceis desde a ditadura militar. Entre 1964 e 1985, jornalistas foram censurados, perseguidos, presos, torturados e até assassinados, como Vladimir Herzog. Hoje, somos insultados nas redes e nas ruas; perseguidos por milícias virtuais e reais; cerceados e desrespeitados por autoridades que se sentem desobrigadas de prestar contas à sociedade. Todos sabem – mesmo aqueles que não acompanham as notícias – quem é o principal propagador dessa ameaça crescente à liberdade de imprensa. É o mesmo que também considera como inimigos os cientistas, professores, artistas, ambientalistas – como se vê, estamos bem acompanhados. No ano passado, segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas, o presidente da República atacou a imprensa 116 vezes em postagens nas suas redes sociais, pronunciamentos e entrevistas. Um ataque a cada 3 dias. Querem exemplos? “É só você fazer cocô dia sim, dia não.” “Você está falando da tua mãe?” “Você tem uma cara de homossexual terrível.” “Pergunta pra tua mãe o comprovante que ela deu para o teu pai.” É dessa forma chula e rasteira que o presidente da República, a maior autoridade do país, costuma responder aos jornalistas. Seus xingamentos tentam desviar a atenção das respostas que ele ainda deve à sociedade. Nos casos citados, explicações sobre o retrocesso da preservação ambiental no país, sobre os depósitos do ex-assessor Fabrício Queiroz na conta da hoje primeira-dama, sobre o esquema da “rachadinha” de salários no gabinete do filho hoje senador, sobre o envolvimento da família presidencial com milicianos. O presidente das fake news, que bate na imprensa cada vez que ela informa um fato negativo sobre ele e seu governo, é o mesmo que deu 608 declarações falsas ou distorcidas – quase duas por dia – ao longo de 2019. O levantamento é da agência de checagem Aos Fatos. Querem exemplos? “O Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente no mundo.” “Leonardo Di Caprio tá dando dinheiro pra tacar fogo na Amazônia.” “O Brasil é o país que menos usa agrotóxicos.” “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira.” “Nunca teve ditadura no Brasil.” Em 2020, depois de completar um ano de mandato com resultados pífios na economia e desastrosos na educação, na cultura, na saúde e na assistência social, o presidente não serenou. Redobrou os ataques à imprensa. Aplicou o duplo sentido mais tosco à expressão jornalística “furo” para caluniar a repórter que denunciou a manipulação massiva do WhatsApp na campanha eleitoral. Atacou outra jornalista, mentindo descaradamente, para negar a revelação de que compartilhou vídeos insuflando manifestações contra o Congresso e o STF. E segue promovendo o boicote à imprensa, com exceção daqueles que aproveitam o negócio de ocasião para vender subserviência e silêncios estratégicos. Aos veículos que não se dobram ao seu despotismo, o presidente da República impinge pessoalmente retaliações financeiras diretas, pressão sobre anunciantes e difamação de seus profissionais. Pratica, enfim, toda sorte de manobras sórdidas para tentar asfixiar o jornalismo e alienar a população dos fatos. E já nem se preocupa em disfarçar suas intenções. Querem um último exemplo? Declaração de 6 de janeiro deste ano, dita pelo presidente aos jornalistas “Vocês são uma raça em extinção”. Não, presidente, não somos uma raça em extinção. Ao contrário. Somos uma raça cada dia mais forte, mais unida, mais corajosa, mais consciente. Basta olhar para estes 21 novos jornalistas que estamos formando hoje. Basta ler os dizeres na camiseta deles: “Não existe democracia sem jornalismo”. Esta é a mensagem a ser destacada nesta noite: quando tenta calar e desacreditar a imprensa, o atual presidente da República ameaça não só o jornalismo e os jornalistas. Ameaça a democracia, a arte, a ciência, a educação, a natureza, a liberdade, o pensamento. Ameaça a todos, até aqueles que hoje apenas o aplaudem – estes, que experimentem deixar de bater palma para ver o que acontece. Para encerrar, gostaria de citar o exemplo e as palavras do grande escritor e jornalista argentino Rodolfo Walsh. Precursor da reportagem literária e investigativa e destemida voz contra o autoritarismo e o terrorismo de Estado, Walsh pregava que “Ou o jornalismo é livre, ou é uma farsa, sem meios-termos”. Dizia também que “um intelectual que não compreende o que acontece no seu tempo e no seu país é uma contradição ambulante; e aquele que compreende e não age, terá lugar na antologia do pranto, não na história viva de sua terra”. Rodolfo Walsh foi sequestrado e assassinado pela ditadura argentina em 25 de março de 1977. Na véspera, publicara corajosamente uma “carta aberta à junta militar”, denunciando os crimes do sanguinário regime, que então completava apenas seu primeiro ano. Estas foram as últimas palavras que Walsh escreveu: “Sem esperança de ser escutado, com a certeza de ser perseguido, mas fiel ao compromisso que assumi, há muito tempo, de dar testemunho em momentos difíceis”. Jornalistas, este é o nosso compromisso. Não deixaremos que a tirania nos cale mais uma vez. Publicado no Facebook em 8/3/2020.

A fascinação e a necropolítica miliciana

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“239. A fascinação tem consequências muito mais graves. É uma ilusão produzida pela ação direta do espírito sobre o pensamento do médium e que, de certa maneira, lhe paralisa o raciocínio, relativamente às comunicações. O médium fascinado não acredita que o estejam enganando: o espírito tem a arte de lhe inspirar confiança cega, que o impede de ver o embuste e de compreender o absurdo do que escreve, ainda quando esse absurdo salte aos olhos de toda gente. A ilusão pode mesmo ir até ao ponto de o fazer achar sublime a linguagem mais ridícula. Fora erro acreditar que a este gênero de obsessão só estão sujeitas as pessoas simples, ignorantes e baldas de senso. Dela não se acham isentos nem os homens de mais espírito, os mais instruídos e os mais inteligentes sob outros aspectos, o que prova que tal aberração é efeito de uma causa estranha, cuja influência eles sofrem.”

Allan Kardec, “O livro dos médiuns”. 2ª parte, cap. XXIII.

O grito da decomposição social”, feita pelo chargista mexicano Rocha em 2015, reinterpretando a famosa tela “O grito”, de Edvard Munch, pintada em 1893.
No pior momento da história recente do mundo, com uma pandemia que mata milhares e milhares, os brasileiros foram pegos com a calça nas mãos e, infelizmente, por sua própria escolha suicida. Além da luta contra um vírus que se propaga de forma estonteante e mata sem pudor, por aqui se luta também contra um verme, eleito por meio da mentira e do ódio, que tem tentado insistentemente piorar as consequências da pandemia mortal. Se esse verme, que ataca principalmente a mente desavisada e pouco elaborada, não for parado a tempo, o país viverá um período de caos, morte e agonia. Pelo que se vê nas notícias e nas redes sociais, esse verme cruel já infectou diversas pessoas, fazendo lembrar cenas da ficção de contos de zumbis, que agora pretendem sair às ruas para defender seu direito de morrer e matar indistintamente. Sim, é isso que essa estranha gente pretende com suas carreatas e protestos a favor da liberação irrestrita, ou “vertical”, do isolamento social decretado pelos entes federados subnacionais: a morte. A necropolítica miliciana, guiada por espíritos mal intencionados, nunca esteve tão explícita e à vontade para pregar seus reais objetivos. Cabe aos espíritas, amparados pelos ensinos de fraternidade e compaixão exarados por Jesus e pelos espíritos que auxiliaram Kardec, levantar a bandeira da racionalidade e lutar contra a necropolítica bolsonarista que se espalhou como uma obsessão coletiva, uma fascinação, no meio dos fracos de espírito e dos interessados no lucro acima da vida. Não há outra opção racional e moral nesse grave momento: é preciso, para quem pode, ficar em casa.

Precisamos falar do sistema patriarcal que predomina nas instituições espíritas

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Ótimo artigo feito por quatro mulheres do coletivo “Espíritas pela transformação social”, publicado na coluna “Diálogos da fé”, na Carta Capital, acerca da palestra promovida pela FEESP para homenagear a mulher pela passagem do dia 8 de março, com o tema “A participação da mulher no espiritismo”, feita por um… homem, sem participação da mulher.
Foto Bixabay

Precisamos falar do sistema patriarcal que predomina nas instituições espíritas

Aline Bueno de Godoy, Ana Paula Coelho, Andrea Ronqui e Marcela Lino – CartaCapital Publicação original e completa aqui. É uma questão urgente que as mulheres tenham mais visibilidade e credibilidade no meio espírita. A Federação Espírita do Estado de São Paulo anunciou em suas redes sociais uma palestra que será realizada no dia 8 de março, em homenagem ao dia das mulheres, com o título ‘A participação da mulher no espiritismo’. Um título bastante interessante, não fosse o fato de o palestrante ser um homem. Ao ser questionado no Instagram, o palestrante respondeu que se a intenção é de homenagem não há necessidade de representatividade. Pois bem. Nós, mulheres espíritas, progressistas, viemos para dizer que não nos sentimos homenageadas, mas sim, desrespeitadas. […] Assim, se nas casas temos um grande número de mulheres, por que quando se fala de levar o espiritismo à luz de todos/as não conseguimos listar mulheres? Será que as mulheres são limitadas? Será que Deus deu a missão mediúnica de levar a palavra apenas a homens? Temos certeza de que se você estuda bem o espiritismo, sabe que isso não condiz com os princípios da doutrina. Portanto, precisamos falar do sistema patriarcal que predomina nas instituições espíritas. Esse sistema ainda molda as instituições espíritas de forma estruturante. Para ficar com o exemplo da Feesp, além da palestra que citamos, temos também o exemplo do congresso que será realizado este ano: a imensa maioria de palestrantes é homem, isso sem mencionar que também são brancos, héteros, cis, tudo bem de acordo com a sociedade patriarcal. […] Enquanto as pautas identitárias se destacam mais na sociedade, e são cada dia mais necessárias, espaços influenciadores e formadores como a Feesp continuam recusando-se a rever e desconstruir paradigmas institucionais. Não acreditamos que a equipe Feesp tenha feito isso por má intenção ou por recusa, mas sim por desatenção, por estarem alheios às pautas sociais e não terem compreendido a importância dessa nova postura. Mas é essa desatenção que ainda fortalece problemas sérios como as violências contra a mulher, o feminicídio etc. Em 2018, 40,5% das mortes de mulheres foram por questões de gênero. Em 2019, esse percentual subiu para 52% e não houve nenhum mês em que uma mulher não fosse morta por causas relacionadas a gênero (segundo o portal G1). Essas diferenças aparecem também quando o assunto é emprego: em 2019, segundo dados do IBGE, as mulheres eram maioria entre os desempregados. Entre os homens, a taxa de desemprego ficou em 10,9% no 1º trimestre, ao passo que entre as mulheres foi de 14,9%. […] Se o Espiritismo se pretende como um dos impulsionadores do progresso do mundo, faz-se urgente que as federações se atentem para a representatividade nas casas espíritas. As mulheres contribuem nas casas espíritas de forma total, desde o cafezinho até a tesouraria, e muitas vezes são elas que fazem a instituição funcionar, provando todos os dias sua capacidade. Não é raro encontrar uma casa em que toda a assistência, administração e gestão sejam feitas por mulheres, mas o presidente e sua chapa sejam maioria masculina. Este dado seria um ótimo início para uma palestra que fala da participação das mulheres no Espiritismo: dizendo que, sem elas, o espiritismo não existiria. Kardec precisou de médiuns mulheres para conseguir decodificar o Espiritismo e sua esposa, Amélie, foi essencial no processo. Podemos mencionar, ainda, as irmãs Fox, a quem coube a missão de trazer as manifestações mediúnicas à tona para que pudessem ser estudadas. Vale lembrar da emblemática e importante figura de Maria de Magdala, a quem Jesus se apresentou quando ressuscitou e qual foi a reação dos apóstolos senão de duvidar de seu testemunho? E a igreja apagar por completo sua visão amorosa e caridosa de apostolado e entregar a história fantasiosa de uma prostituta quando na verdade Maria de Magdala foi uma mulher dona de si e subversiva aos moldes da época? […] Querem nos homenagear? Unam-se, então, em vossos centros, casas, na mesa de bar, onde puderem e discutam o patriarcado, o machismo, a masculinidade tóxica que também oprimem vocês. Desconstruam e desçam do patamar de detentores da voz e da verdade, escutem, ouçam de verdade as mulheres à sua volta. Se temos um dia no calendário específico é para que todos nos lembremos do quanto ainda é preciso dizer o óbvio. Se você não encarnou como mulher, por favor, deixe que falemos por nós mesmas, não precisamos de porta-vozes. Puiblicado no Facebook em 2/3/2020.

O espiritismo será o que os homens fizerem dele

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Charge de Toni D’Agostinho
Pelas redes sociais, muitos bolsoespíritas afamados, que há muito vêm defendendo o energúmeno presidente, agora passaram a apoiar e divulgar o chamamento à manifestação criminosa que tem como objetivo o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal. Essa estranha gente, que durante o processo eleitoral que elegeu a farsa e o ódio como bandeiras morais mostrou suas severas dificuldades no respeito ao outro, agora passa a fazer parte da articulação que pretende destruir a República e implantar um regime de exceção, e isso sem nenhum pudor e fantasiados de verde e amarelo. Mas a fantasia nacionalista, farsante e impregnada de ódio, começa a ser retirada e o que aparece não é nada elevado. Ao contrário, o que se vê sob a fantasia em verde e amarelo dessa estranha gente bolsoespírita é aterrorizante e faz lembrar as piores cenas do inferno dantesco. O movimento espírita vem sendo solapado por dentro, vem sendo destruído pela mentira e pelo ódio, e tudo muito bem travestido de “defesa da família” e com voz mansa em palestras e congressos promovidos por grandes casas espíritas e federações. “O espiritismo será o que os homens o fizerem”, já ensinava Léon Denis. É preciso reagir e formar um grande movimento contra essa podridão moral que se apossou do já alquebrado movimento espírita. Publicado no Facebbok em 27/2/2020.

Desigualdade e luta de classes no Brasil

Favela do Metrô-Mangueira, no Rio de Janeiro – Foto de Tânia Rêgo/Agência Brasil
Bruna Machado dos Reis –  Esquerda Marxista Publicação completa e original aqui. O Relatório de Desenvolvimento Humano divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) no dia 9 de dezembro de 2019 mostra que o Brasil tem a 2ª maior concentração de renda do mundo. A desigualdade, principal foco do relatório intitulado ‘Além da renda, além das médias, além do hoje: desigualdades no desenvolvimento humano no século 21’, é o resultado de uma tendência natural do capitalismo. Quando a condição da maioria, dos trabalhadores, é extremamente precarizada, o lucro da parcela mais rica da burguesia só cresce. Obviamente, como órgão da burguesia que é, a ONU alimenta um falso discurso de que a desigualdade pode ser superada. Logo no início do relatório, ao explicar a metodologia, escrevem que as estatísticas ajudam a embasar ações acadêmicas e governamentais para diminuir a desigualdade. Mentira. Desde a Revolução Francesa, ‘Igualité’ é a promessa falsa da burguesia para esse modelo de sociedade, que só pode ser atingida com sua própria extinção enquanto classe. A pesquisa, além de apresentar dados isolados dos países, analisa-os em três blocos: países africanos; Brasil, Rússia, Índia e China (o BRIC, ou países ‘em desenvolvimento’, como o imperialismo gosta de alimentar a ilusão) e EUA e Europa (países ‘desenvolvidos’). Como mostra o gráfico abaixo, o aumento da desigualdade é a tendência em todos os grupos: […] Embora a vida dos trabalhadores durante a crise do capitalismo já esteja insuportável em todos os cantos do mundo, nos países explorados a desigualdade se aprofunda mais. O aumento da desigualdade na Europa, por exemplo, foi mais moderado do que em outras regiões. Já o nível de desigualdade na África Subsaariana, no Brasil e no Oriente Médio ficou extremamente alto, com a participação dos 10% mais ricos em torno de 55 a 60% da renda total do país. A Rússia, que na década de 1990 ainda trazia resquícios da igualdade atingida pela planificação da economia após a Revolução de 1917, teve uma ascensão extrema da concentração de renda com o restabelecimento do capitalismo. […] O Brasil também caiu uma posição no Índice de Desenvolvimento Humano em relação à última pesquisa de 2017 (de 78 para 79). E, embora o tempo esperado de escolaridade seja de 15,4 anos, a média real é de apenas 7,8 anos (a metade!). […] Apesar do discurso bonito, sabemos que a dinâmica da sociedade capitalista, em sua fase imperialista, após atingir o ápice do desenvolvimento das forças produtivas, só pode oferecer retrocesso para o conjunto da humanidade. Mesmo quando os índices apresentam algum tipo de melhora em saúde, expectativa de vida, cuidados desde antes do nascimento, isso está restrito a uma parcela cada vez menor da população, que exclui os 40% mais pobres em detrimento de rendas cada vez maiores para os 1%. […] As ações de Bolsonaro, seguindo a cartilha do imperialismo, só irão piorar as condições de vidas dos jovens e trabalhadores que sofrem com os já ruins serviços públicos, repressão e assassinatos pela polícia nas favelas e bairros operários, aumento do custo de vida (carne, combustíveis, preço do transporte) e a ameaça constante do desemprego ou de trabalho precarizado. Ou seja, a revolta dos trabalhadores está sendo gestada pelas ações desse governo, combinadas à crise do sistema. Mas as direções do movimento ainda estão à direita de suas bases e funcionam como um arrefecedor do ânimo para o combate. Nesse 20 de fevereiro, por exemplo, a Federação Única dos Petroleiros traiu vinte mil trabalhadores ao pôr fim à greve nacional da categoria e negociar a demissão dos trabalhadores da Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados (FAFEN-PR). […] Não vai demorar muito para os trabalhadores brasileiros, assim como os chilenos, argentinos e libaneses, para ficar em somente três exemplos dos vários que estão em movimento no mundo hoje, não aguentem mais a exploração e saiam às ruas para lutar contra o governo e o sistema, passando por cima das direções conciliadoras. É por isso que surgem nesse momento acenos do retorno do AI-5 e leis ‘anticrime’. A única alternativa para os governos burgueses é aumentar a repressão. Mas mesmo essa alternativa possui seus limites: vimos em vários países, e mesmo no Brasil em 2013, a repressão servindo para aumentar ainda mais a fúria das massas. […] Publicado no Facebook em 25/2/2020.