Que fez São Tomás de Aquino diante de Karl Marx

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Nesse texto de 2009, Grimaldo Zachariadhes, mestre em história social e pesquisador do trabalho social feito pela Companhia de Jesus no Brasil no século XX, inspirado pela palestra de Hélder Câmara na Universidade de Chicago em 1974, trata das relações entre o pensamento cristão e o marxismo. Uma ótima e profunda reflexão principalmente àqueles que veem com desconfiança insubstanciada as relações entre o materialismo marxista e o espiritualismo cristão.

Grimaldo Carneiro Zachariadhes – Revista Lua Nova (texto original e completo aqui)

RESUMO

O artigo aborda o diálogo de setores da Igreja Católica com o pensamento marxista. É privilegiado neste trabalho o Centro de Estudos e Ação Social (Ceas), uma instituição fundada pelos jesuítas na Bahia. Procurarei demonstrar como esta instituição da Companhia de Jesus reinterpretou o marxismo com base na sua visão cristã, contribuindo para a construção de um novo pensamento social católico no Brasil, durante a segunda metade do século XX.

INTRODUÇÃO

Que faria São Tomás de Aquino, o comentador de Aristóteles, diante de Karl Marx? Este foi o título de uma palestra realizada na Universidade de Chicago, no dia 29 de outubro de 1974, pelo então arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara, para a comemoração do 7º centenário da morte de São Tomás de Aquino. O sacerdote, nesta ocasião, fez um desafio para a universidade americana: que fizesse com o pensador Karl Marx o que São Tomás fizera com Aristóteles, ou seja, reinterpretasse-o, retirando dele aquilo que era positivo. E aos que poderiam se negar a fazê-lo, alegando que Marx era “materialista, ateísta militante, agitador, subversivo, anticristão”, ele lembrava que quando um homem:

“empolga milhões de criaturas humanas, sobretudo de jovens; quando um homem inspira a vida e a morte de grande parte da humanidade, e faz poderosos da terra tremer de ódio e de medo, este homem merece que o estudemos, como certamente o estudaria quem enfrentou Aristóteles e dele soube destacar tudo o que havia de certo” (Câmara, 1975, p. 53).

Este artigo pretende analisar o Que fez São Tomás de Aquino diante de Karl Marx, isto é, como se deu este diálogo entre católicos – especialmente os jesuítas – e marxistas, principalmente durante a segunda metade do século XX, no Brasil. Vou privilegiar neste texto o Centro de Estudos e Ação Social (Ceas) e buscar compreender como esta instituição, fundada pela Companhia de Jesus, promoveu este diálogo e como reinterpretou o marxismo com base na sua visão cristã, utilizando como fontes principalmente a sua revista intitulada Cadernos do Ceas.

O CONFLITO ABERTO

Em 1937, Pio XI publicava a encíclica Divini Redemptoris, na qual demonstrava aos católicos sua preocupação com o comunismo ateu, reafirmando as condenações feitas pelos seus predecessores e por ele mesmo em outros momentos. O Papa se preocupava com o crescimento dos comunistas e alertava aos “veneráveis Irmãos” que “não se deixem enganar! O comunismo é intrinsecamente perverso e não se pode admitir em campo nenhum a colaboração com ele”. Lembrava que nos países aonde os comunistas chegaram ao poder se manifestava “o ódio dos ‘sem-Deus'” contra os cristãos (Pio XI, 1937, p. 53).

Esta afirmação papal expressava muito bem as preocupações da Igreja Católica em relação aos comunistas naquele momento. A posição do clero era de enfrentamento aos comunistas, que eram vistos como inimigos que deveriam ser combatidos. Além da crítica ao ateísmo dos comunistas, os religiosos discordavam da solução que era proposta por eles nas questões sociais. A Igreja Católica, preocupada com as condições de pobreza dos trabalhadores e também com a influência dos comunistas sobre eles, começou a formular um pensamento social católico. O clero procurava construir uma alternativa para o socialismo e para o liberalismo econômico que era visto, também, como um mal e responsável pela penúria dos trabalhadores.

Em 1891, o Papa Leão XIII publicou a encíclica Rerum Novarum. A partir desta obra, a Igreja Católica começou a formular oficialmente sua Doutrina Social, que serviria de direção para a atuação do clero e dos católicos nas questões sociais. Leão XIII afirmava que pretendia vir em “auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida”. O Papa constatava que “o que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços”. Para o diagnóstico do problema, porém, Leão XIII colocava a solução nas mãos dos patrões, pois, a eles competia a responsabilidade pelos operários, garantindo-lhes “plena satisfação” nas condições materiais (Leão XIII, 1891, pp. 10-23).

O Papa Pio XI, ao comemorar os 40 anos da Rerum Novarum, lembrava que, em certas regiões do mundo, os trabalhadores ainda estavam relegados “à ínfima condição e sem a mínima esperança de se verem jamais senhores de um pedaço de terra; se não se empregam remédios oportunos e eficazes, ficarão perpetuamente na condição de proletários” (Pio XI, 1931, p. 39). No entanto, esse remédio tem que de ser “segundo os princípios de um são corporativismo, que reconheça e respeite os vários graus da hierarquia social” (Pio XI, 1937, p. 33). A Doutrina Social Católica defendida pelo clero era assistencialista, paternalista e propunha como solução para os problemas socioeconômicos, uma conciliação entre as classes. E isso era proposto também pela hierarquia brasileira.

Alguns bispos paulistas pediam aos “cristãos abastados” iniciativas para a solução do flagelo social da tuberculose em nome “da piedade cristã em favor dos nossos queridos pobres e doentes” (“Pastoral Coletiva do Episcopado Paulista sobre alguns erros contra a fé e a moral”, 1941, p. 898). Não contém nenhuma referência neste documento à responsabilidade do Estado perante o flagelo da população ou de melhorias na Saúde Pública; defende-se apenas a ajuda dos ricos aos mais pobres. Um manifesto assinado pelos principais bispos do Brasil, que deveria servir de orientação de conduta aos católicos, defendia como solução para os problemas sociais, a assistência, pois constitui:

“Quando bem organizada e aplicada, um elemento de desafogo de milhares criaturas que, de outra forma, nas circunstâncias presentes, não encontrariam outra maneira de reajustamento nem outros meios imediatos para atender às necessidades urgentes de sua vida, na defesa da saúde, da educação, da alimentação, da moradia e da higiene” (“Manifesto do Episcopado Brasileiro sobre a Ação Social”, 1946, p. 479).

Estas manifestações do episcopado despolitizavam os problemas sociais. Os sacerdotes revelavam uma análise simplista da realidade brasileira e superestimavam o alcance real da assistência social, além de uma visão paternalista das relações sociais. A hierarquia não percebia que sem reformas que resolvessem as causas da pobreza, toda solução teria um alcance restrito. O clero via como causa dos problemas sociais menos as estruturas do que a falta de religiosidade da sociedade; os conflitos não estariam principalmente no sistema capitalista, mas sim nos corações dos homens. O Papa Pio XI questionava se não tinha sido a cobiça “que arrastou o mundo ao extremo que todos vemos e todos deploramos?” (Pio XI, 1932, p. 579).

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Publicado no Facebook em 29/4/2020.

Bolsonaro não é louco

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Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ruth de Aquino – Jornal O Globo (texto original integral aqui)

Vamos chamar a coisa pelo nome. O presidente eleito por milhões de brasileiros não é louco. Psicóticos e neuróticos podem ser classificados assim. Eles sofrem e enxergam o sofrimento do outro. Eles não têm método. Bolsonaro é diferente. Pelos estudos da psiquiatria inglesa no século XIX, Bolsonaro se encaixaria em outra categoria: a dos psicopatas.

Conversei com o psicanalista Joel Birman para entender essas fronteiras entre transtornos mentais. ‘A psicopatia não é uma loucura no sentido clássico, mas uma insanidade moral, um desvio de caráter de quem não tem como se retificar porque não sente culpa ou remorso’. Os psicopatas são ‘autocentrados, agem com frieza e método’. ‘Não têm empatia em relação ao outro, o que lhes interessa é o que lhes convém’. A palavra psicopatia vem do grego psyché, alma, e pathos, enfermidade.

A pandemia só tornou esses traços de Bolsonaro mais gritantes. Desde os primeiros grandes gestos do presidente, ficou claro, disse Birman, que seus atos ‘são marcados por crueldade e violência’. Proposição de liberar fuzis para civis. Proposição de acabar com os radares nas estradas. Proposição de não multar a falta de cadeirinha para crianças. Proposição de acabar com os exames toxicológicos para motoristas de caminhão e ônibus. Proposição de legalizar o garimpo predatório nas florestas e terras indígenas. Tudo isso é um atentado à vida.

Eu poderia lembrar o que muitos teimam em esquecer. Que Bolsonaro já era assim antes de ser eleito. Quem defende torturador e condena as vítimas, publicamente, no Congresso, não é uma pessoa que preza a vida. Não surpreende, portanto, que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, denuncie, sem meias palavras, a ‘política genocida’ de Bolsonaro. O presidente trocou seu ministro da Saúde, era sua prerrogativa, mas será barrado pelo STF se insistir em condenar o isolamento social e ameaçar a saúde pública.

Ao criar uma realidade paralela, Bolsonaro desfruta sua liberdade de ir e vir sem se importar com as consequências de seu exemplo. Ele refuta a ciência, ignora as normas sanitárias nacionais e internacionais, receita remédios polêmicos sem autoridade para isso, ironiza quem se isola, chamando a mim e a você de ‘moleques’. Coloca em maior risco os pobres. O presidente é uma temeridade ambulante. Troca um ministro da Saúde competente e popular em plena batalha.

Ao se recusar a divulgar o resultado de seu exame, Bolsonaro despreza a população, se acovarda e age diferente dos homens públicos que honram seus cargos. Pode até ser que esteja imune após uma versão branda da covid-19 e por isso se sinta apto a saracotear pelas ruas e padarias, mexendo em dinheiro e comida, enxugando o nariz e apertando as mãos do povo aglomerado. Bolsonaro não é burro nem louco. É perverso, ao estimular um comportamento de altíssimo risco.

A OMS classifica a psicopatia como um transtorno de personalidade caracterizado por um desprezo das obrigações sociais. A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa, autora do livro ‘Mentes perigosas’, diz que a ‘psicopatia não é uma doença, é uma maneira de ser’. O psicopata, segundo ela, sempre vai buscar poder, status e diversão. Enxerga o outro apenas como um objeto útil para conseguir seus objetivos.

Mandetta tinha deixado de ser útil. Por brilhar demais, por ter trânsito com o Congresso e por não se curvar a suas teses temerárias. Um ministro como esse, generoso e articulado, enlouquece um presidente transtornado. A ciência é a luz. O resto é escuridão.

Publicado no Facebook em 20/4/2020.

A pandemia da covid-19 e o espiritismo: há um mundo de regeneração por vir?

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Texto muito bom de Thiago Lima, para o Jornal GGN, que trata das elucubrações acerca do “mundo de regeneração” tão anunciado nesses tempos de pandemia por médiuns, místicos e assemelhados. Vale a leitura.

A pandemia da covid-19 e o espiritismo: há um mundo de regeneração por vir?

Thiago Lima da Silva – Jornal GGN (texto original e integral aqui).

A crise do novo coronavírus tem convidado o mundo todo à reflexão. Com os espíritas isso não tem sido diferente. A gravidade desta pandemia é tamanha, tanto em termos de extensão global quanto de intensidade, que muitas pessoas têm interpretado esta etapa que vivemos como um possível salto da Terra na escala planetária apontada por Allan Kardec. Estaríamos deixando um mundo de expiação e provas para entrar num mundo de regeneração. Embora isso pareça alentador, devemos refletir mais profundamente antes de concluirmos algo do tipo. Há algo que indica que o mundo já está se tornando um lugar melhor? Pode ser que sim; pode ser que não. O resultado dependerá das ações concretas das pessoas.

Desde que o mundo é mundo existem catástrofes de grandes proporções. A mais famosa, entre os cristãos pelo menos, é certamente o episódio bíblico do dilúvio. Além desse, para o qual não há comprovação científica, existem outros devidamente comprovados. A peste bubônica, que pode ter matado entre 70 e 200 milhões de pessoas no século XIV, e a gripe espanhola, que ceifou entre 50 e 100 milhões de encarnados há 100 anos, são dois exemplos de doenças que geraram mortandade intensa. Entre elas, diversos episódios de Fomes Coletivas, daquelas que geram morte por inanição, poderiam ser registrados. Catástrofes político-militares também caberiam no registro, desde as guerras mundiais do século passado até as “armas biológicas” utilizadas pelos europeus para exterminar os povos nativos das Américas há mais de 200 anos. Nestas, diversos tipos de vírus, como os da gripe e da varíola, foram propositalmente introduzidos no Novo Mundo para forçar o desencarne de populações que não possuíam os anticorpos para se defenderem das infecções. Esses episódios demonstraram que a Terra era um mundo de expiação e provas, ou de regeneração?

No livro “Há um mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins”, os antropólogos Deborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro refletem sobre algumas vezes em que o mundo já acabou e algumas em que ele vem se acabando[i]. Por exemplo, o mundo dos maias já acabou, mas o mundo de outros indígenas nativos das Américas vem acabando há mais de 500 anos. Há meio milênio os índios que habitam o solo onde hoje é o Brasil vêm se confrontando com o contínuo desmoronamento dos elementos que compõe a sua cosmovisão, e muitos ainda seguem na luta para “adiar o fim do mundo”, como argumenta ambientalista Ailton Krenak[ii]. Para outra parte substantiva das pessoas do globo –possivelmente aquela parte que irá se interessar por ler este texto–, aquelas que vivem numa sociedade capitalista e marcada pela globalização, o mundo começou a acabar com a revolução industrial, no século XIX, que acelerou brutalmente não apenas a emissão de gases nocivos ao equilíbrio da temperatura no planeta, mas também a extração de recursos naturais em escalas cada vez maiores. É um processo que não apenas gera “expulsões” da vida biológica em todas as suas formas, como sustenta a socióloga holandesa Saskia Sassen[iii], mas também a alteração dos regimes climáticos que regem a Terra há milênios. Pela primeira vez na História há uma era geológica denominada a partir da ação do ser humano, isto é, o Antropoceno. Isso quer dizer que, para o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da Organização Meteorológica Mundial e da Organização das Nações Unidas, o principal fator que afeta negativamente o clima no planeta (regime de chuvas e de secas, altas e baixas nas temperaturas, correntes oceânicas, procriação de animais selvagens, germinação de sementes etc.) são as atividades econômicas e sociais do ser humano a partir de uma lógica industrial, extrativista e de globalização, lógica esta que é dinamizada pelo capitalismo. As experiências socialistas, por sua vez, não demonstraram ser muito diferentes no que toca à preservação do meio ambiente. Na verdade, a competição da Guerra Fria estimulava a ampliação da produção industrial nas mais altas escalas ao invés de apresentar alternativas para proteger o planeta.

É possível dizer, em qualquer um desses fins de mundo, que estávamos numa fase de expiação e provas ou no limiar da regeneração planetária? Faça um esforço empático e se imagine vivendo essas catástrofes. Qual seria sua opinião?

Pois bem, há algo que indica que o mundo atual –no qual escrevo e você lê– já está se tornando um lugar melhor? Por um lado, vemos redes de solidariedade se formando entre pessoas para enfrentar a doença e lidar com seu melhor tratamento por enquanto: o isolamento social. Certamente, é algo bonito de se ver. Notamos também que a natureza pode estar aproveitando a redução da atividade econômica e da mobilidade social para respirar e se renovar –embora saibamos que processos profundos de recuperação da natureza devem ser medidos em anos e não em dias. Por outro lado, notamos que os governos dos países não têm sido tão solidários quanto poderiam. As grandes potências não cooperam entre si para organizar uma solução para crise e, enquanto isso, os países em desenvolvimento vão sofrendo com a ausência de equipamentos, profissionais de saúde e de recursos financeiros.

Nosso país, o Brasil, é um caso emblemático. Possuímos um presidente que promove aglomerações justamente quando os principais cientistas do mundo recomendam o isolamento social. Vemos um esforço sistemático para manter igrejas e templos abertos, quando o recomendável seria incentivar as pessoas a ficarem em casa. Os alertas de desmatamento na Amazônia atingem nível recorde atualmente e, quando a polícia federal agiu para coibir as operações ilegais, o governo tratou de imobilizá-la. Quanto aos trabalhadores e trabalhadoras que perderam sua renda devido à inevitável retração econômica decorrente dos processos de quarentena, estes penam para conseguir o mínimo de ajuda financeira do governo federal. Ao mesmo tempo, os trabalhadores que possuem carteira assinada são submetidos a negociações assimétricas de redução salarial. Ainda, o projeto da tal carteira de trabalho ‘verde e amarela’, aquela na qual o trabalhador registrado teria menos direitos trabalhistas, avança no congresso justamente quando a proteção dos direitos deveria ser reforçada. Quer dizer, parece ser muito cedo para apontar que a Terra entrou numa fase de regeneração.

Como demonstrado, o mundo já passou por outras catástrofes e fins. Mas o que será dele dependerá das ações de nós, encarnados. As mensagens que nos chegam pelos médiuns podem ser alentadoras e nos encherem de esperança, mas não deveriam ser tomadas como certezas. Deveriam, sim, nos inspirar a revisar nossos princípios e a estimular, em nós, a tal da reforma íntima que expurgue nossos traços de egoísmo –o principal dos males, segundo Kardec. Além disso, se estamos falando de transição planetária, a depuração do egoísmo não pode ser individual. Ela deve se reverter em ações coletivas e tanto mais amplas quanto possíveis, em associações, comunidades, cidades, estados etc. etc. Isso implicará, do nosso ponto de vista, na revisão do sistema capitalista e das desigualdades que gera[iv]. Na prática, significaria revisão dos sistemas tributários e o fortalecimento do financiamento das estruturas de saúde pública, por exemplo. Implicará também no fortalecimento da concepção de direitos humanos, por meio de políticas e de financiamento que possibilitem, de fato, a elevação das condições para que o ser humano e suas comunidades atinjam seu potencial. E isso deveria significar, entre outras coisas, que passasse a ser inaceitável que qualquer pessoa ou comunidade sofresse com a fome, com a falta de higiene, com doenças facilmente preveníveis, com a falta de educação, com a falta de igualdade de gênero e de segurança física e emocional. Precisaremos ampliar as “Fronteiras da justiça”, como defende a filósofa estadunidense Martha Nussbaum[v], e este terá de ser, necessariamente, um processo político. E o que é um processo político? É aquele em que se disputa não apenas qual visão de mundo pautará o comportamento humano por meio dos princípios que carrega, mas também pelos instrumentos institucionais de que o estado dispõe para fazer valer esta visão de mundo[vi].

Para os espíritas progressistas, portanto, a construção de um mundo de regeneração passará, necessariamente, pela assunção de responsabilidades e pelo agir concreto e prático de construção de um novo mundo. Se as almas que aqui desembarcarem na esteira desta crise forem mais elevadas, ótimo, pois encontrarão condições melhores para desenvolverem seu potencial. E, se forem mais das mesmas almas, ótimo também, pois coletivamente teremos mais meios para auxiliá-las a encontrar um caminho de desenvolvimento. O importante, de um modo ou de outro, é trabalhar para acontecer.

*Thiago Lima da Silva é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba e membro da Associação de Estudos e Pesquisas Espíritas de João Pessoa.

Notas:

[i] DANOWSKI, D,. CASTRO, E. V. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fns. Florianópolis, Instituto Socioambiental, 2014.

[ii] KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

[iii] SASSEN, S. Expulsões. Brutalidade e Complexidade na Economia Global. . Paz & Terra. 2016.

[iv] DOWBOR, L. A era do capital improdutivo – a nova arquitetura do poder: dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta. São Paulo: Outras Palavras & Autonomia Literária, 2017.

[v] NUSSBAUM, M. C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. Tradução de Susana de Castro. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

Publicado no Facebook em 18/4/2020.

Espíritas, extrema-esquerda e atavismos

Manifestações, barricadas e distúrbios contra a reunião do G-20 na Alemanha, em agosto de 2017. Foto de Kai Pfaffenbach, para Reuters.
Por Elton Rodrigues

Camaradas, não é de hoje que a propaganda que parte dos poderosos dos meios de comunicação imprime um imaginário coletivo em torno do que seja a extrema-esquerda ou, também chamada, esquerda radical.

O esforço dos oligopólios da comunicação é tão grande, e eficiente, que mesmo dentro do grande grupo chamado “esquerda” encontramos a reverberação dos discursos criados e impulsionados por esses conglomerados. Até os nomes “esquerda moderada” e “esquerda radical” são discutíveis. Enquanto a adjetivação “moderada” indica razoabilidade, prudência, “radical” aponta violência, intransigência. Ou seja, simplificar as diferentes visões e métodos dos “dois” grupos nos termos “moderada e radical” não é sem motivo.

A campanha dos poderosos é rica em estratégias, mas possui um único objetivo: mitigar o desejo de mudanças da população. Essa cruzada é tão eficaz que muitos acreditam que as ideias que pululam em suas mentes são construções próprias, sem perceber que são manipulados. Como exemplo dessas construções, a partir do que é ditado para que todos permaneçam no jogo capitalista, temos: a defesa do capital e da propriedade privada em detrimento das pessoas; desejo -abafado- por maior poder aquisitivo para satisfazer o impulso consumista; preconceitos diante dos que almejam caminhos diversos daqueles que são considerados “vitoriosos na vida”; indignação diante das manifestações populares –esses geralmente defendem vidraças de bancos, mas ficam incólumes diante do sofrimento diário dos desvalidos-; afirmações do teor “manifestante é vagabundo”; defesa cega da meritocracia, utilizando casos isolados para exemplificar que todos podem atingir o sucesso (econômico, é claro); aceitação da falácia que o problema hídrico mundial se resolverá a partir de banhos mais curtos e não com uma nova maneira de gerir indústrias e a agropecuária; e, por fim, a aceitação cega da interpretação que a esquerda radical é formada por bárbaros violentos e por revolucionários avessos à ideia de religião e à existência de pacifistas.

Vejam, não estou me isentando dessa situação. Todos nós somos manipulados em algum grau –seja por encarnados ou desencarnados. Minha intenção é chamar atenção para esse fato, e não para apontar dedos com ar de superioridade. Dito isso, como enfrentar o problema da propaganda que exerce uma força considerável na mente dos que desejam mudanças positivas para a população?

O primeiro passo é derrubar alguns mitos bastante propagados pela direita e por alguns obnubilados da própria “esquerda moderada”. Existem muitos mitos, mas nesse texto iremos comentar apenas dois.

Primeiro: todo marxista é ateu ou materialista.

Ora, essa tentativa de atrelar marxismo e ateísmo é tão antiga que me sinto repetitivo em ter que falar sobre o tema com os camaradas. Por outro lado, faz-se necessário em tempos tão estranhos como esses.

Essa ideia foi bem trabalhada pelo governo dos EUA para justificar, diante do seu povo, sua posição belicosa em relação à União Soviética, no pós-guerra. Para saber mais sobre o assunto eu indico o ótimo livro de Noam Chomsky, “Mídia, propaganda política e manipulação”. Porém, vemos a tentativa de imputar aos marxistas tais visões em momentos bem mais recuados na história. Como exemplo, podemos citar a luta socialista na Irlanda. Diversos padres foram excomungados por ficarem do lado do povo, com as mesmas justificativas por parte da Igreja. Para maiores informações, leiam o artigo que escrevi para o Jornal Crítica Espírita, “Derrapando na propaganda antissocialista”[1].

Hoje, repetindo a mesma fórmula do passado, espíritas afirmam que não é possível encontrar um marxista espírita, pois todo marxista é ateu e materialista. É muito curioso encontrar tais afirmações em pleno século XXI, quando o acesso à informação foi expandido vertiginosamente, desde o período da Guerra Fria. Porém, para o espírita não é tão difícil explicar pessoas defendendo esses absurdos em 2020. Esses atavismos religiosos são evidenciados pela lei de reencarnação. Quem sabe se os que defendem essas insensatezes de agora, não foram os mesmos apologistas de uma igreja ortodoxa e descolada da realidade no passado?

Segundo: a extrema-esquerda é belicosa e ansiosa por uma revolução armada.

A partir dessa afirmação, se eu sou contra a violência, vou preferir aceitar o que o grupo “moderado” diz que dá para fazer e ficar quieto. Conclusão: eu interiorizo que não há possibilidades de luta, de conquistas que não sejam aquelas “permitidas” dentro do próprio jogo capitalista. Mas a dita extrema-esquerda não aceita a ideia que a luta deva permanecer dentro dos limites estabelecidos por aqueles que detêm o poder. Esses últimos não querem, obviamente, que os explorados construam estratégias e apontem para a supressão das estruturas econômica e social que oportunizam poucos privilegiados abusarem –em vários níveis– de um mar de despossuídos.

Existem 1.942 bilionários no mundo. Juntos, valem 6,8 trilhões de dólares[2]. Enquanto isso, a fome atinge 820 milhões de pessoas no mundo. Só na América Latina e Caribe, são 42,5 milhões de pessoas que passam fome[3]. Em 2015, a ONU afirmou que seria necessário cerca de 239 bilhões de euros por ano, até 2030, para erradicar a fome no mundo[4]. Façam as contas.

Algumas questões podem ser levantas com o exemplo supracitado.

1) O capitalismo deu certo?

2) Um sistema que permite 1.942 pessoas terem mais do que 60% da riqueza mundial é viável?

3) Existe maneira de acabar com a fome e a exploração dos pobres mantendo parcerias com os grandes capitalistas?

Não, não e não!

A extrema-esquerda luta para não mais existir esses absurdos!

Esse é o objetivo principal, e não fazer guerrilhas por aí.

Ser radical não significa gostar de armas, mas não aceitar as migalhas dadas pela burguesia, como se alguns poucos pontos na área social fossem o suprassumo da política voltada para o povo.

Por fim, qual a principal diferença entre a “esquerda moderada” e a “esquerda radical”?

A esquerda moderada tenta fazer algo dentro do jogo capitalista, acreditando que os ricos e poderosos irão abdicar de seus privilégios para o bem comum. Já a esquerda radical força o debate para além desse falso limite. A luta da esquerda radical é pela emancipação real do povo. E não haverá emancipação, para todos, dentro do sistema capitalista.

Irmãs e irmãos, que sejamos o sal da terra[5], levando a ideia do amparo espiritual, das vidas sucessivas, da comunicabilidade com os espíritos e de um Deus amoroso.

Que estejamos atentos à sugestão de Kardec e tenhamos um pensamento crítico dentro da doutrina espírita, mas, também, nos assuntos que estão em outras áreas do conhecimento. Pois, em verdade, não há separação entre espiritismo e secularidade, visto que o nosso adiantamento moral se dará apenas, e somente, em sociedade[6]. Assim, lutemos, camaradas, por uma sociedade mais justa para todos!

Que Jesus possa fortalecer a todos nesse momento de isolamento. Saibam que, mesmo distanciados fisicamente, estamos unidos pelo ideal espírita.

Preces e trabalho, camaradas.

Amanhã será melhor.

Notas:

[5] Mateus 5, 13-16
[6] Ler “O livro dos espíritos”, Lei de Sociedade.

Publicado no Facebook em 18/4/2020.

O culto da morte como ideologia

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Bolsonaristas e, entre eles, bolsoespíritas estão em campanha aberta pelo fim do isolamento social e das restrições ao livre funcionamento das atividades econômicas.

Sabe-se que a posição dessa estranha gente não se fundamenta em absolutamente nenhum número, nenhum dado da realidade, mas apenas em memes e mentiras espalhados pelo núcleo de comunicação instalado no Palácio do Planalto e comandado por seus tresloucados filhos, já bem conhecido como “gabinete do ódio”.

Todos os líderes de países do mundo que, nalgum momento, tiveram a postura de negar a realidade cruel da pandemia do novo coronavírus e optaram por preservar a economia em detrimento das vidas humanas voltaram atrás por conta dos números de mortos que se acumulavam em seus respectivos países e em suas contas políticas.

Foi assim com Giuseppe Sala, prefeito de Milão, na Itália[1], com Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido[2], e até com o amalucado e inconsequente Donald Trump, presidente dos EUA[3].

Por aqui, o energúmeno presidente, contrariando o consenso internacional e as recomendações técnicas da OMS, ainda insiste na flexibilização do isolamento social e dobra sua aposta na teoria da “gripezinha” em oposição à pandemia que assola o mundo.

Em vez de tomar medidas concretas para salvar vidas e manter a renda do trabalhador, o presidente miliciano insiste na mágica solução da hidroxicloroquina, produzida no Brasil por uma empresa farmacêutica cujo proprietário é um engajado militante bolsonarista[4].

O resultado dessa insistência insana será o acúmulo de corpos tombados pelo covid-19 vistos nos telejornais e nos portais de notícias diariamente. E isso será, infelizmente, inexorável.

Enquanto os brasileiros já morrem às centenas, quiçá aos milhares, levando muita dor e tristeza aos lares atingidos, a trupe bolsonarista festeja a morte em suas carreatas e manifestações a favor do fim do isolamento social. Sim, essa estranha gente está a festejar a morte: em manifestação na av. Paulista[5], um grupo zombou dos mortos segurando um caxão, dançando e cantando, em total desprezo a todos os que seriamente lutam contra o caos que se avizinha.

Ressalta-se que é justamente essa estranha gente que se diz “pró-vida”, mas se, por acaso, essas vidas forem levadas por um vírus que desdenham, que elas sejam definitivamente perdidas em nome da preservação de sua ignorância atávica e insensata, em nome de sua ideologia excludente e cruel.

E o único argumento usado para justificar a dor e a morte alheias é a preservação da atividade econômica. Mas, como já dito acima, os posicionamentos de “il capo di tutti capi”, o mentiroso contumaz eleito pela farsa à presidência dessa republiqueta laranjeira, não se sustentam nem em relação a isso. Os próprios empresários sabem que a interrupção, ou mesmo a flexibilização, da quarentena nesse momento causará ainda mais danos à economia nacional do que sua manutenção[6].

Portanto, nada, absolutamente nada, justifica a postura do criminoso presidente e sua claque bolsonarista. A não ser, claro, o mórbido e frequente anseio pela morte alheia. O inominável presidente sempre cultuou a morte em suas várias falas durante as quase três décadas de completa inutilidade parlamentar, e não seria diferente agora. Ainda em campanha à cadeira presidencial, o então candidato do horror fez comícios em prol da tortura e da morte de adversários políticos e foi aplaudido efusivamente por seus correligionários e seguidores inconsequentes.

E o que se vê dentro do movimento espírita? Pelas páginas e portais de casas espíritas e de líderes e médiuns vê-se o apoio imoral a essas posturas criminosas. Esses indivíduos serão cobrados não apenas por sua própria consciência surtada, mas também, quando tudo isso passar –e vai passar–, pelo movimento espírita que não suportará ver suas propostas de amor e fraternidade associadas ao culto da morte.

Referências:

[1] https://congressoemfoco.uol.com.br/…/apos-4-mil-mortes…/

[2] https://www.em.com.br/…/boris-johnson-da-despreocupacao

[3] https://www.metro1.com.br/…/89732,presidente-dos-eua

[4] https://www.metropoles.com/…/empresario-que-produz-a

[5] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/video…/

[6] https://valor.globo.com/…/mesquita-pior-cenario-para

Publicado no Facebook em 13/4/2020.

A necessidade do impeachment

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A continuar com suas sandices e crimes, ao presidente não mais caberá apenas a perda do cargo, que jamais honrou ou respeitou, mas a condenação por estimular o genocídio do povo brasileiro.

Deixar a cadeira principal do Palácio do Planalto é muito pouco para esse contumaz irresponsável, que usa cadeia nacional de rádio e televisão para promover produtos produzidos por seus comparsas quadrilheiros, argumentando insensatamente ser uma cura do covid-19 não validada pela ciência farmacológica. Ou seja, mais um, entre vários, crime de responsabilidade e contra a saúde pública nacional. E tudo isso sob o silêncio mórbido e criminoso das tais instituições nacionais responsáveis em preservar a sociedade.

Defender essa quadrilha no poder, diante de tantas barbáries e horrores, é, no mínimo, um desvio moral de gravidade imensurável. E há, ainda e infelizmente, muitos bolsoespíritas expelindo seus piores sentimentos por meio do apoio a esse momento de inigualável catástrofe nacional.

O movimento espírita poderia estar contribuindo de forma efetiva e racional, auxiliando a minorar consequências e encontrar soluções perenes, mas suas celebridades preferem, nesse momento de dor e angústia, fazer palestrinhas virtuais sobre “transição planetária” ou escrever cartinhas mediúnicas com previsões proféticas e juízos morais.

O que fizemos, afinal, do espiritismo?

Publicado no Facebook em 9/4/2020.

A religião e o risco moral

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O ministro da Saúde de Israel, Yaakov Litzman, um judeu ultraortodoxo e líder do partido de extrema-direita “Judaísmo Unido da Torá”, que faz parte da base do governo nazifascista de Israel, resistiu às várias limitações de movimentos públicos que autoridades de alto escalão de seu próprio ministério queriam impor e também pediu que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu permitisse que as sinagogas permanecessem abertas. Agora o religioso testou positivo para o covid-19, juntamente com sua esposa.

O rabino Litzman é conhecido por suas posições fundamentalistas e contrárias aos homossexuais. Em 2016, por exemplo, votou pela derrubada da permissão de uniões civis homoafetivas no seu país, foi também contra a legalização da adoção de crianças por casais homossexuais e contra a possibilidade de parceiros do mesmo sexo de soldados israelenses mortos receberem os mesmos benefícios de casais heterossexuais.

No Brasil, alguns médiuns espíritas afamados também têm manifestado intenção de reabrir suas casas espíritas, colocando em risco a saúde e a vida de frequentadores e trabalhadores. Esses são, coincidentemente, os mesmos que têm sistematicamente associado a doença causada pelo covid-19 a problemas morais ou a castigos divinos a almas desviadas e que, há pouco tempo, afirmaram ser a homossexualidade um “momento de alucinação psicológica da sociedade”, associando-a, ora vejam, ao “comunismo”(??).

Tudo isso ilustra um problema recorrente na institucionalização das religiões: a hipocrisia. E essa hipocrisia religiosa já foi, inclusive, objeto de censura de Jesus –“Ai de vós, hipócritas!”.

Tais indivíduos, como o ministro israelense, alguns médiuns espíritas, padres e pa$tore$ neopentecostais bem conhecidos, representam o que de pior a religião pode produzir, porque associam o mal moral que carregam em si à manifestação de espiritualidade do povo simples e sincero.

Notícia original no Times Of Israel.

Publicado no Facebook em 7/4/2020.

O direito é um instrumento de resolução de conflitos sociais ou de dominação de classe? Uma análise de Karl Marx acerca do fenômeno jurídico

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Nesse texto, o autor analisa o direito como “uma das formas resultantes e engendradas por uma sociedade capitalista que é dividida, fraturada, centralmente em duas principais classes diametralmente opostas, organizando-se para a produção e reprodução da sua vida material em relações de produção, consistentes em capital e trabalho, conforme o pensamento de Karl Marx”.

O direito é um instrumento de resolução de conflitos sociais ou de dominação de classe? Uma análise de Karl Marx acerca do fenômeno jurídico.

Caique de Oliveira Sobreira Cruz – no JusBrasil (texto integral aqui)

RESUMO:

O presente trabalho visa compreender o direito enquanto uma das “formas” resultantes e engendradas por uma sociedade capitalista que é dividida, fraturada, centralmente em duas principais classes diametralmente opostas, organizando-se para a produção e reprodução da sua vida material em “relações de produção”, consistentes em capital e trabalho, conforme o pensamento de Karl Marx. Entende-se por “relações de produção” as formas como os homens em sociedade se reúnem para, através do trabalho, alterar a natureza e produzir e reproduzir as condições materiais da sua própria existência. A partir da extração da “forma” jurídica do complexo social, buscar-se-á entender os mecanismos de dominação de classe exercidos pela classe dominante, a burguesia, e compreender como o direito pode se expressar como reflexo e parte integrante desta dominação, sendo um instrumento de busca de hegemonia contra a classe subalterna, excluindo-a, com o processo de criminalização da pobreza executado pelas ferramentas do capital que visam reproduzir tanto a condição de miséria generalizada da vida do trabalhador, quanto o controle hegemônico da sociedade, mantendo-a sob um domínio cultural, político, social e, especialmente, econômico, por meio de um aparelho estatal que detém o monopólio do uso da força e serve aos interesses dos dominantes. Por burguesia, compreende-se a classe dos capitalistas modernos, proprietários e detentores dos meios de produção social e que empregam o trabalho assalariado, os burgueses são aqueles que ficam com o excedente do que é produzido pela humanidade nesta sociedade analisada.

INTRODUÇÃO:

A dogmática jurídica majoritária compreende o Direito enquanto fenômeno predominantemente gnosiológico, ou seja, como expressão das representações abstratas dos teóricos, retirando, assim, do “conteúdo” do fenômeno a sua base essencialmente material e ontológica. Apartando-se da totalidade social e das relações sociais de produção, ocasionando um distanciamento da construção de uma compreensão crítica ao Direito, emergindo uma análise logicista e formal: “Os juristas profissionais comparam os sistemas jurídicos de povos diferentes não como expressões de condições econômicas com efeitos bastante particulares, mas como sistemas independentes e auto-suficientes” (MORRISON, 2006, p. 314).

O fenômeno da especialização aprofundou essa perspectiva de afastamento que separou as ciências sociais em departamentos diferenciados e, assim, o direito ganhou status de ciência autônoma, neste sentido, para que seja possível oferecer uma antítese ao entendimento dominante, deve-se utilizar categorias que consigam explicar o Direito enquanto parte constitutiva de um todo social, contrapondo o instrumental apenas descritivo e de legitimação do fenômeno jurídico. Para alcançar o renascimento de uma proposição crítica e transformadora, é necessário o resgate do pensamento crítico acerca do Direito, e nos debruçaremos na interpretação do pensador alemão Karl Marx (1818-1883) para este objetivo, seja por meio de seus textos originais ou de interpretes das suas obras.

Este trabalho ganha dimensões importantes quando se faz uma análise bibliográfica sistemática e percebe-se que a doutrina majoritária e os autores mais destacados resumem-se à discussão jurídica e dogmática da temática, afastando da centralidade as noções sociais, de economia política, ciência política e sociologia que são imprescindíveis para a compreensão da problemática posta, pois as lentes jurídicas, embora necessárias nesta análise, mostram-se insuficientes se isoladas do objeto real em movimento. Este estudo tem como objetivo analisar o fenômeno jurídico e as suas interações com as classes sociais; capital e trabalho, visando a alcançar as relações de dominação que perpassam a sociabilidade capitalista através da esfera jurídica; identificar quais os segmentos da sociedade civil são mais abarcados dentro da ação de coerção e repressão estatal que é feita por intermédio do Direito; e, por fim, apreender a interdependência entre a “forma jurídica”, a “forma política” e a “forma mercadoria” de acordo com o pensamento de Karl Marx, para expor que o fenômeno jurídico não existe de modo isolado, como uma pretensa ciência que detém autonomia absoluta.

A pesquisa terá caráter bibliográfico que tem como interesse a realização de leitura e análise de textos de Karl Marx e dos comentadores de seus escritos referentes ao Direito que estão contidos em textos diversos não sistematizados. Portanto, trata-se de uma pesquisa teórica, realizada por meio de uma abordagem qualitativa, buscando um extenso esclarecimento acerca do problema, para que possam ser levantados os elementos críticos. Prezando pelas técnicas de revisão bibliográfica a partir de material já publicado, constituído principalmente de livros, artigos de periódicos e materiais disponibilizados na Internet, sistematizações, análises documentais, as seguintes técnicas: das categorias, dos conceitos, da pesquisa e do fichamento. As conclusões do trabalho levarão em conta tudo o que for levantado pela revisão sistemática supracitada, seus conceitos básicos, ponderações, convergências e divergências, acertos e erros, mas principalmente suas propostas e reflexões.

No que concerne ao marco teórico, será utilizado o método cientifico de análise promovido por Karl Marx, o chamado ‘materialismo histórico’, sendo este fundamentado no método da reprodução ideal do movimento (processo) real, em conformidade com o entendimento do professor José Paulo Netto (2011): “a teoria é o movimento real do objeto transposto para o cérebro do pesquisador – é o real reproduzido e interpretado no plano ideal (do pensamento)”, já para Lênin: “A análise concreta da situação concreta é a alma viva, a essência do marxismo” (NETTO, 2007). Utilizaremos também as categorias fundamentais que são apreendidas da realidade pelo mesmo, como a dialética, buscando um amparo na ideia de que os fenômenos sociais estão interligados em interdependência a um todo social, ou seja, os fenômenos não são partes isoladas do todo que se “autoproduzem” e “autorreproduzem” de maneira independente. Para Engels (2008, p. 91), em sua obra, “Do Socialismo utópico ao socialismo cientifico” o materialismo é conceituado como:

“A concepção materialista da História parte da tese de que a produção, e com ela a troca dos produtos, é a base de toda a ordem social; de que em todas as sociedades que desfilam pela História, a distribuição dos produtos, e juntamente com ela a divisão social dos Homens em classes ou camadas, é determinada pelo que a sociedade produz e como produz, e pelo modo de trocar os seus produtos.”

Conectando essa concepção com o direito, a política e a filosofia, Engels (2012, p. 21) assevera:

“A classe trabalhadora – despojada da propriedade dos meios de produção […] não pode exprimir plenamente a própria condição de vida na ilusão jurídica da burguesia. Só pode conhecer plenamente essa condição de vida se enxergar a realidade das coisas, sem as coloridas lentes jurídicas. A concepção materialista da história de Marx ajuda a classe trabalhadora a compreender essa condição de vida, demonstrando que todas as representações dos homens – jurídicas, políticas, filosóficas, religiosas etc. – derivam, em última instância, de suas condições econômicas de vida, de seu modo de produzir e trocar os produtos.”

O filósofo Húngaro, Lukács (1965), ao falar sobre a concepção marxista, elucida que esta interpreta o tecido social como uma totalidade interligada e não como fragmentos de fenômenos que não encontram relações uns com os outros, sendo assim, o Direito estaria imbricado com a economia, a política, a cultura etc. Na frase de abertura do ensaio que escreveu sobre Rosa Luxemburgo, o referido autor diz: “É o ponto de vista da totalidade e não a predominância das causas econômicas na explicação da história o que distingue de forma decisiva o marxismo da ciência burguesa” (LUKÁCS, 1965, p. 47 apud NETTO, 2004).

Já o professor Wayne Morrison (2006, p. 295) argumenta que Marx não tem um “corpus teórico” específico sobre o direito: “A compreensão que Marx tem do direito é um subconjunto das abordagens intelectuais gerais da sociedade que ele adotou em diferentes momentos de sua vida”.

Identifica que não há como estudar em Marx questões apenas particulares que estejam à parte de todos os outros elementos sociais, mesmo com cada fenômeno social tendo as suas próprias especificidades, todos eles em algum grau estão interligados Morrison (2006, p. 294):

“A importância de qualquer entidade de estudo particular está no modo como ela se ajusta ao desenvolvimento do todo e o influencia. No caso do direito, assim como no de outros fenômenos sociais, é difícil isolar uma concepção marxista da entidade particular e criar um modelo teórico independente, uma vez que isso isola um aspecto particular do comportamento humano.”

Tendo isto sido posto, analisaremos a questão do Direito entrelaçada com as questões das classes sociais, por meio do entendimento do teórico Karl Marx de que a sociedade capitalista é dividida entre classes e que mediante o sistema da propriedade privada dos meios de produção gera desigualdades sociais, através da lei da acumulação do capital e da extração exploratória de excedente econômico, mais-valia. Partindo-se do “material”, da forma em que o Direito se estabelece concretamente enquanto um instrumento de dominação de classes, e não do seu arcabouço teórico abstrato e dos seus princípios formais, será dada primazia, portanto, à realidade como ela é e não como ela deveria ser, para compreender o fenômeno jurídico em seu “conteúdo”, em sua expressão real e não apenas em sua idealização formal.

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Publicado no Facebook em 5/4/2020

As máscaras da economia

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A pandemia do novo coronavírus fez o Brasil ver-se agora diante duma triste realidade: um país que já produziu navios, plataformas de petróleo e satélites de comunicação não consegue sequer produzir ventiladores pulmonares para UTIs e máscaras de proteção respiratória.

Por conta da falta desses produtos, a União, alguns entes federados subnacionais e empresas privadas tentaram importar alguns desses itens médicos, principalmente da China, mas tiveram suas cargas retidas em portos e aeroportos espalhados pelo mundo, com a justificativa de que os países que retiveram as cargas também necessitavam dos produtos para superar suas próprias dificuldades diante da pandemia.

Afora o grave problema de desabastecimento desses produtos no mercado justo nesse momento de crise na saúde, esse fato revela uma escolha infeliz que vem sendo feita pelos sucessivos governos brasileiros: há em andamento um projeto de desindustrialização da economia nacional e a indústria brasileira já não é sequer capaz de produzir… máscaras de pano.

O problema da desindustrialização da economia iniciou-se a partir da segunda metade dos anos 1980 e continuou piorando sistematicamente até os dias de hoje, com ligeira melhora durante a transição do milênio. Ou seja, já se vão cerca de 35 anos de contínua queda da participação da indústria nacional na formação do PIB brasileiro, conforme se pode ver no gráfico que acompanha essa postagem.

Até mesmo os pouco mais de 13 anos de governos progressistas não foram capazes de superar esse problema. Ao contrário, esse período acentuou o processo de apequenamento da participação da indústria na economia nacional.

Em 2018, a indústria brasileira alcançou seu mais baixo índice de participação no PIB desde 1948: 11,3%!

É claro que esse processo de desindustrialização do país, que já dura mais de três décadas, é um reflexo do papel do Brasil no quadro da economia mundial. O Brasil tem-se tornado apenas um fornecedor de matérias-primas para a economia global, sendo alijado da possibilidade de desenvolvimento da sua indústria.

Ao capital internacional não interessa ter um país com tão vasto território e farta mão de obra tendo outro papel que não o de fornecedor de itens econômicos primários. Como disse recentemente um professor da UFRJ, referindo-se à indústria do agronegócio, a “situação é tão alarmante que o fertilizante é produzido fora e o produto agropecuário também é beneficiado fora. Nossa missão nessa cadeia é cada vez mais emprestar o solo e o sol”. E, importa frisar, o Brasil é um dos maiores jogadores do mercado mundial do agronegócio, e nem nesse mercado o país consegue participação significativa da sua indústria.

O Brasil tem feito há décadas sua escolha: apequenar-se economicamente, destruindo sua indústria, sua ciência e sua pesquisa e privilegiando o fornecimento de mercadorias primárias, como minérios, grãos e animais.

E, no momento em que se precisa duma indústria para fornecimento de itens tão simples e de baixa tecnologia como máscaras de pano e ventiladores pulmonares, o país não tem mais condições industriais de prover essa demanda emergencial e passa a depender exclusivamente da importação desses produtos.

Todas as consequências e dramas hoje vividos são reflexos de escolhas políticas feitas pela própria população brasileira. Escolhas que vão desde a eleição de governos populistas que se omitiram sobre ou auxiliaram a desindustrialização da economia, até a eleição dum governo fascista que retira direitos do trabalho, da educação e da saúde do povo brasileiro.

Publicado no Facebook em 4/4/2020.

Leia mais sobre a desindustrialização brasileira.

Vídeo sobre o comentário do professor da UFRJ, José Carlos Pinto, acerca do problema da indústria nacional:

A pandemia e as comunicações mediúnicas

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“Os médiuns levianos e pouco sérios atraem, pois, espíritos da mesma natureza; por isso é que suas comunicações se mostram cheias de banalidades, frivolidades, ideias truncadas e, não raro, muito heterodoxas, espiriticamente falando. Certamente, podem eles dizer, e às vezes dizem, coisas aproveitáveis; mas, nesse caso, principalmente, é que um exame severo e escrupuloso se faz necessário, porquanto, de envolta com essas coisas aproveitáveis, espíritos hipócritas insinuam, com habilidade e preconcebida perfídia, fatos de pura invencionice, asserções mentirosas, a fim de iludir a boa-fé dos que lhes dispensam atenção. Devem riscar-se, então, sem piedade, toda palavra, toda frase equívoca e só conservar do ditado o que a lógica possa aceitar, ou o que a doutrina já ensinou. As comunicações desta natureza só são de temer para os espíritas que trabalham isolados, para os grupos novos, ou pouco esclarecidos, visto que, nas reuniões onde os adeptos estão adiantados e já adquiriram experiência, a gralha perde o seu tempo a se adornar com as penas do pavão: acaba sempre desmascarada.”

KARDEC, Allan. “O livro dos médiuns”, parte II, cap. XX, item 230.

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Nesses tempos difíceis de pandemia do novo coronavírus, que tem levado desespero, dor e morte ao mundo, os espíritas têm sido bombardeados com mensagens mediúnicas diversas.

E, muitas delas, infelizmente, fazem referências a uma possível transição planetária e a julgamentos morais de doentes e mortos.

Primeiro, associar essa pandemia à transição planetária é de uma insipiência racional extrema, haja vista a grande quantidade de outras pandemias que já assolaram o planeta na sua história e a falta de relação com qualquer mudança significativa da postura humana diante do outro.

Por exemplo, a maior pandemia do século XX, a gripe espanhola (um subtipo do vírus Influenza A/H1N1) ocorrida no final da década de 1910, matou mais de 50 milhões de pessoas pelo mundo. No Brasil, estimam-se mais de 35 mil mortos. O mundo tinha acabado de viver o horror da I Guerra Mundial e, duas décadas depois, viveu um horror ainda maior: a II Guerra Mundial. Ou seja, não foi a pandemia mortal que barrou a sandice cruel do homem, mostrando que esse tipo de situação catastrófica da saúde não é capaz, por si só, de fazer o homem melhor.

O segundo ponto, o do julgamento moral de mortos e doentes, é muito cruel. Muitas dessas mensagens insinuam, covardemente, que os infectados são aqueles que não tinham “boa sintonia” ou corpos “incompatíveis com a vibração do amor”.

Apenas parem com isso! Por favor, médiuns, parem!

Isso é simplesmente um horror moral disfarçado por palavras melífluas para punir ainda mais os doentes dessa pandemia, incutindo-lhes uma culpa inexistente.

Tais mensagens são fruto da inconsequência mediúnica e da falta de racionalidade na hora da crítica daquilo que se recebe.

Na verdade, parece que os problemáticos moralmente não são os doentes da pandemia, mas os doentes da alma que espalham esse tipo de lixo moral e intelectual pelas redes sociais.

Publicado no Facebook em 3/4/2020.