Espiritismo e a micropolítica do cotidiano

Nesse novo texto exclusivo de Kelly Saturno para a página “Espíritas à esquerda”, a autora reflete sobre alguns impactos da pandemia do coronavírus na vida social e política nacional.

Agência Fotográfica de Macau

Espiritismo e a micropolítica do cotidiano

Por Kelly Saturno

Esta semana reencontrei nas redes sociais uma “fake news” espírita, compartilhada há pouco, como se fosse nova. Segundo a mesma, Chico Xavier teria profetizado que a Pátria do Evangelho conheceria um soldado destemido para ajustar o adiantamento moral da nação. Alguém montado sobre um cavalo branco, que teria mesma inicial do nosso país em seu nome. Imagino que todos se lembrem disso…

Ao reler esta postagem, voltei a sentir aquele mesmo embrulho que me tomou o estômago durante a última campanha eleitoral. Porque foi quando percebi que havia, no movimento espírita, muita gente mal intencionada. E esse foi um dos meus maiores desgostos.

Vários escritores espiritualistas, a esta altura, já haviam se perdido em obsessões evidentes, e passaram a gravar vídeos e a psicografar textos com assinatura de pessoas famosas, polêmicas ou carismáticas, cujas mensagens não faziam relação àquele mesmo ser que habitou a Terra, nem em termos de estilo nem de linha de pensamento.

Sabemos que no mundo espiritual, revemos nossos conceitos a fim de corrigir a rota para uma próxima oportunidade reencarnatória. Reconhecemos erros, padrões e procuramos estudar para evoluir. Ou seja, espíritos podem “mudar de ideia”. Mas não a este ponto. Nossa essência e nossa personalidade não se alteram com o desenlace.

Estes médiuns envaidecidos venderam cópias e mais cópias de seus textos repletos de instruções subliminares nocivas para as suas centenas de leitores, que, esquecidos de Kardec, confiaram cegamente em tudo aquilo que lhes caiu em mãos, sedentos por um novo redentor e recusando o crivo eficiente da razão.

Com esse resultado, veio também o fanatismo político. Este foi um projeto muito bem calculado.

Precisamos crer que há algo maior por trás dessa questão. Não posso me acostumar com imagens de cristãos em várias igrejas e centros espíritas fazendo sinal de arma com as mãos e ainda usando crianças para tal. Eram demonstrações de total desconexão com o ideal religioso de amor ao próximo e exaltação da violência com o diferente.

Depois disso, tudo degringolou. Inclusive o bom senso restante, que deu lugar às mais ridículas situações, nas quais muita gente boa e inteligente das nossas relações pessoais acreditou.

De quanta gente precisamos nos afastar neste período?

Edir Macedo, empresário e bispo evangélico, tem um livro chamado “Projeto de Poder”. Título que não disfarça a intenção de domínio que se pretende alcançar em todos os aspectos. Estes líderes, hoje, possuem profundas alianças com todas as esferas da vida pública, além de terem um canal na TV aberta, um jornal e outros tantos serviços formadores de opinião.

Nos sentimos pequenos, cansados e sem esperança diante de tantas aberrações que se sucederam nos últimos anos desde o impeachment fraudulento de Dilma Rousseff.

O então eleito presidente, o menos qualificado dos candidatos, que tem como ídolo um psicopata torturador e assassino, e que sempre demonstrou falta de equilíbrio emocional, de empatia e de conhecimentos técnicos, junto com seus ministros escolhidos por valores semelhantes aos seus, desafia a razão mais uma vez, submetendo seu povo, já tão humilhado e entregue, à doença, à miséria e à morte.

Ele não apenas convocou a população às ruas, mas também, de forma irresponsável, assumiu o risco de contaminar seus próprios seguidores diante da aglomeração provocada, com um vírus sobre o qual quase nada sabemos.

Não conhecemos as causas, as sequelas e a devastação que esta pandemia vai deixar para trás. E, ao contrário do que a OMS e o seu próprio ministro da Saúde recomendam, ele continua estimulando conflito, a desobediência e desordem, quando deveria tranquilizar e oferecer à população aquilo de que mais precisam: segurança.

Não podemos esperar que Bolsonaro tome as rédeas da situação de maneira equilibrada e racional, pensando em governar para todos e não apenas para as igrejas e os milionários. Alguém que sempre foi agressivo, que fugia dos debates por não saber dialogar, que não contribuiu em 30 anos de vida pública com nada de útil, não poderia, agora, fazer diferente.

A população está compreendendo diante do sofrimento aquilo que semeou nas urnas.

Hoje mesmo, diante de tantas preocupações com a estrutura dos nossos hospitais que não conseguirão atender a todos por falta de espaço, de recursos humanos e de equipamentos, caso a pandemia nos alcance da mesma forma devastadora que atingiu outros países, o Governo Federal pretende investir o valor de R$ 4,8 milhões para lançar a campanha: “O Brasil Não Pode Parar”, com o intuito de interromper o isolamento e trazer as pessoas de volta às ruas, ignorando o perigo de alto contágio da covid-19.

Assim como há carreatas em defesa do posicionamento inconsequente deste indivíduo, também há aqueles centros religiosos (inclusive espíritas) que vergonhosamente se curvam ao mal, abrindo as portas que deveriam estar fechadas a fim de proteger os fiéis, para receber fanáticos que apostam a própria vida e a dos outros para conservar o seu orgulho e vaidade.

Acredito, com firmeza, que tudo isso foi cuidadosamente arquitetado por encarnados e desencarnados que não têm interesse que as coisas mudem para melhor. Desejam que a marcha do progresso que estávamos alcançando a duras penas, estacione. Mas, progresso é lei divina. Ele não pode ser contido. Seja por interesses financeiros ou quaisquer outros.

Quem não precisava de artistas para nada, agora, isolado, não pode mais ir a shows, a teatros, a cinemas.

Quem achou que pesquisa universitária era bobagem, que fazia pouco dos profissionais da educação, agora suplica por uma vacina que contenha o avanço do vírus impiedoso.

Quem chamou os médicos cubanos de guerrilheiros infiltrados, de aproveitadores, agora implora pelo seu retorno, pois o programa que pretendia preencher as suas vagas com profissionais brasileiros, falhou miseravelmente.

Somos convidados a refletir sobre a importância de profissionais, acusados por alguns de serem irrelevantes, dispensáveis. E muitos dos que vociferavam contra programas sociais e políticas afirmativas, hoje dorme nas ruas, sem emprego, sem perspectiva, sem direitos trabalhistas e previdenciários, e muitos sequer têm com o que se alimentar.

Quem achou que os discursos ambientalistas eram bobagens, que não levou a sério os incêndios devastadores no Brasil e ao redor do mundo, que não sofreu pelas vítimas de Mariana e Brumadinho, que não se importou com as tragédias das últimas enchentes, que não se comoveu com o óleo contaminando os mares e praias… agora precisará deixar o mundo respirar, em quarentena. E ele está respirando, retomando a integridade.

Bastou retirar de circuito o elemento nocivo: nós, que consumimos e depredamos sem cessar e ainda não entendemos que fazemos parte de um todo.

Negligenciamos as tomadas violentas de terras e assassinatos de índios, de quilombolas, de negros, de pobres, de crianças das comunidades, de uma vereadora símbolo da militância dos direitos humanos, como se nada disso nos atingisse diretamente.

Não é apenas a ganância capitalista. Trata-se de algo maior, que tomou corpo e espaço. Um véu extenso que ainda cobre a visão de muitos.

Entretanto, há luz no fim do túnel.

Começamos a ouvir panelaços e arrependimentos. Está cada vez mais claro o abandono da população, a desonestidade, a incompetência, os ideais vulgares, como um castelo de cartas que desmorona em câmera lenta. Mas os responsáveis não ficarão impunes.

Devemos lembrar que se existe um médico justo e misericordioso a olhar por nós, existe cura, embora o antídoto esteja sendo mais amargo do que pensávamos.

Que o Mestre amado, portanto, nos auxilie, nos guie ao progresso que viemos buscar. Que consigamos reconhecer os equívocos para corrigi-los a tempo. Que juntos, possamos caminhar com mais segurança pela estrada do bem comum, e que isso seja da vontade de todos.

Não há mal que dure para sempre.

Tenhamos fé, oremos, mas não deixemos de agir quando a oportunidade se apresentar.

“Bata à porta e ela se abrirá.”

Ouçam os cientistas, aqueles que estudaram e que têm autoridade para fazer recomendações. Ouçam os médicos, que estão dentro dos hospitais, dia após dia, testemunhando vidas serem perdidas por conta da falta de amor e de proteção do Estado.

Espírita que nega a ciência, não pode ser chamado de espírita. Ela constitui a base da doutrina. Um dos três pilares fundamentais que sustenta nossos ideais de vida.

Peço a todos, portanto, que se cuidem, que cuidem dos seus e dos mais vulneráveis. Fiquem em casa o máximo que puderem.

Nosso modelo e guia é apenas um, e será sempre o mesmo: Jesus.

Nós vamos virar esse jogo.

Muita paz!

Publicado no Facebook em 31/3/2020

Espiritismo e a práxis política

Novo texto exclusivo de Elton Rodrigues para sua coluna na página “Espíritas à esquerda”.

praxis

As oportunidades que Deus nos traz

Elton Rodrigues Camaradas, é com grande satisfação que comemoramos o terceiro decênio da Grande Agitação Normativa dos Direitos Humanos-Indiscriminados. Ah, camaradas, lembro-me como se fosse hoje! Os fanáticos religiosos, os fascistas, os liberais inescrupulosos e parte dos que deveriam lutar pelo povo –vejam só!– concluíram que o melhor era a permanência de Bolsonaro no poder, pessoa que representava a encarnação do que havia de pior no espírito do povo brasileiro. A gota d’água foi um pronunciamento em rede nacional, em que Bolsonaro aconselhava a população a ignorar os cientistas, dizendo que o coronavírus –vírus que gerou uma pandemia mundial– não era nada demais, e que as escolas deveriam voltar a funcionar normalmente. Jovens começaram a ficar doentes, assim como seus familiares e os profissionais da educação. O sistema de saúde da época, o público e o privado –isso ainda existia– não conseguiu comportar tamanha demanda. Jovens começaram a morrer. Pais enlouquecidos tentavam enterrar seus amores, mas sem sucesso. Mais loucura em suas vidas. Não mais se preocupavam com a saúde. Empresas de cigarro e bebida alcoólica nunca lucraram tanto. Mais mortes. Os defensores de Bolsonaro afirmavam que tudo era culpa da China. Os liberais justificavam as mortes dizendo que o Brasil estava próximo a ser o maior produtor de cigarros e bebidas e que muitos empregos estavam sendo ofertados. Mais mortes. A esquerda liberal buscava maneiras de entregar flores ao presidente, além de uma carta com reflexões religiosas, pedindo moderação em suas atitudes. Enquanto os trabalhadores saudáveis eram forçados a girar a roda do deus Mercado, essa ‘esquerda’ pedia calma, pois um dia o tempo de sofrimento iria passar, naturalmente. Mais mortes. Os mais jovens lutavam para esclarecer a população que só com uma mobilização completa dos subalternos, dos marginalizados e dos sofridos a situação iria mudar. Houve resistência por parte de alguns pensadores. Talvez a mobilização poderia transformar-se em uma guerra civil e, por isso, pediram calma, tempo para pensar. Mais mortes. Os jovens ignoraram os filósofos e sociólogos de sofá, velhacos cristalizados em um Brasil colonizado e agitaram as primeiras manifestações. Pessoas de todas as idades, de todas as classes, de todas as formações se juntaram e foram às ruas. A repressão por parte dos soldados de cristo e da milícia bolsonárica brasileira foi grande, mas a força do povo foi maior. Pais, mães, professores, médicos se transformaram em generais, em estrategistas, em seguranças dos idosos, das crianças. O povo brasileiro nunca esteve tão unido. Todos estavam lutando, por fim, por aquele Brasil feliz, acolhedor, tão divulgado à época, mas que só existia nos panfletos turísticos. O povo venceu. Governos comunitários foram implantados. Centros médicos, espaços coletivos para alimentação e higienização criados. Psicólogos fortaleceram as mentes fragilizadas por aquele período difícil. Todos estavam cansados, mas felizes. Com o tempo, todo o sistema de saúde, de educação e de alimentação eram públicos. Em dez anos já não havia fome, pessoas morando nas ruas, idosos e crianças sem amparo. Todos os saudáveis trabalhavam e ganhavam a partir de suas necessidades. Em vinte anos as prisões estavam com 80% de suas vagas inocupadas, quando comparadas com os dados de 2020. O meio ambiente estava amparado por cientistas incansáveis e por uma população consciente de que não havia separação entre homem e Natureza. Ah, camaradas, e hoje, trinta anos depois da Grande Agitação, o que vemos? A utopia dos revolucionários de todas as épocas concretizada. Nós que já ultrapassamos –há muito tempo– a juventude, entregamos a responsabilidade para essa primeira geração formada com a nova estrutura governamental. Vocês receberam formação cultural e política. A educação de vocês é emancipadora, crítica e, para isso, não precisaram trabalhar, não sentiram fome, não ficaram sem amparo médico. Suas famílias, nas diversas configurações possíveis, são estruturadas. Vocês sabem, meus queridos jovens, que antigamente a educação era o caminho sugerido para termos um país melhor, mas poucos falavam da necessidade de todo um aparato, de toda uma sustentação para que a educação fosse realmente eficiente. Contamos com vocês! Permaneçam fortes e unidos para que os parasitas e vermes do passado não tenham, nunca mais, abrigo nas mentes e nos corações do povo.” *** Acordei, com esperança e lágrimas nos olhos, e pensei: O que falta para aproveitarmos as oportunidades que Deus nos traz? O que falta para termos uma grande agitação? Publicado no Facebook em 30/3/2020.

Coronavírus um olhar científico e espiritual

Eis a mais nova coluna de Isabel Guimarães para a página “Espíritas à esquerda”. Nesse texto exclusivo para nossa página, Isabel fala sobre a pandemia do novo coronavírus e as oportunidades de crescimento da humanidade.

Coronavírus um olhar científico e espiritual

Isabel Guimarães Que Deus nos livre da ignorância que mata e das religiões que mistificam. Em 30 de janeiro de 2020 A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus (Covid-19). Imediatamente o mundo se voltou para este assunto, nas redes sociais, nas rodas de conversas e em dezenas de vídeos publicados na internet, por profissionais renomados e por leigos, que de repente se tornaram “especialistas” em infectologia, então o coronavírus passou de um ilustre desconhecido para a maioria da população à condição de “pop star”. Neste exato momento em que escrevo essa pequena reflexão, certamente, centenas de vídeos, áudios e textos estão sendo freneticamente editados e lançados na terra de ninguém, que se chama internet, espaço no qual as pessoas se sentem à vontade para se expressar, com ou sem compromisso com a verdade dos fatos, com ou sem compromisso com a ciência, valendo a lei da “achologia”, ciência livre na qual cada um acha o que bem entende. O problema aqui é que se trata de um novo vírus e com um grande potencial de disseminação, e conhecer o que realmente está acontecendo é fundamental na proteção à saúde e na preservação da vida das pessoas. Então cabe a reflexão em torno da responsabilidade na divulgação e disseminação de informações falsas, por ignorância ou má fé. Assim como cabe também a disposição de compartilhar informações que possam reduzir danos e evitar mortes. Reduzir a velocidade de transmissão é o grande desafio da saúde pública, pois significa reduzir sobrecarga dos hospitais e unidades de saúde, reduzir a carga de trabalho dos profissionais de saúde e sua exposição ao vírus, ganhar tempo para que se entenda melhor a doença e se descubram tratamentos adequados e, finalmente, desenvolva-se uma vacina eficaz. Na perspectiva dessas reduções é que as medidas de controle, que podem parecer drásticas, estão-se pautando. Quando me refiro a um olhar espiritual, quero deixar claro que não estou falando em nome do espiritismo, mas em meu próprio nome como espirita há mais de 25 anos, pois a nossa leitura dos acontecimentos esbarra nas limitações permitidas pela nossa existência atual, circunscrita em um espaço e um tempo. Por conta do Covid-19, bolsas de valores despencaram, o tal do mercado enlouqueceu, fronteiras fechadas, bares, restaurantes, shoppings esvaziados ou lacrados, eventos cancelados, pessoas desesperadas dominadas pelo medo. Qual o significado social, psicológico e espiritual desse cenário? — Os mercadores da fé, com seu deus mercantilista procuram responder com o de sempre, pague e receba a graça; — Os neoliberais, com seu deus mercado, sem preocupação com as pessoas, apenas contabilizam os prejuízos e os possíveis lucros; — Os grandes empresários, com seu deus dinheiro, pensam apenas em suas perdas ou tentam lucrar com o desespero dos outros; — Os políticos, com seu deus eleitoreiro, pensam apenas em como usar esse flagelo para derrotar seus adversários nas próximas eleições; — A classe média, com seu deus ignorância e egoísmo, pensa em fazer estoque de alimentos e desinfetantes, sem nenhuma preocupação com os outros que também precisam; — Os religiosos fundamentalistas, com seu deus vingativo e cruel, pensam em atrair mais adeptos através do medo, colocando-se como porta-vozes do todo poderoso. Cada um diz que sua igreja é a porta da salvação, desde que se pague o dizimo é claro; — Os religiosos não fundamentalistas, que se dizem adeptos de religiões progressistas, com seu deus ego, não resistem em buscar explicações ufanistas e rebuscadas evocando anjos vingadores e determinismos que parecem ter saído do misticismo da idade média; — Os pobres, cada um com seu deus, esperam que no final dê tudo certo e eles sobrevivam. O flagelo tão pequeno, que nem podemos enxergá-lo a olho nu, como uma caixa de Pandora do século XXI, revela todos os males do capitalismo, arranca-lhe as máscaras, convida-nos a refletir sobre os valores que sustentam uma sociedade individualista e competitiva, na qual as coisas valem mais do que as pessoas e estas são classificadas de acordo com sua capacidade de consumir. Talvez o convite seja para uma reflexão profunda a respeito do que realmente importa nessa vida. O isolamento social forçado, quem sabe, pode-nos levar a valorizarmos o que realmente importa: os afetos, os abraços, a conivência amiga, a conversação edificante, a contemplação da criação divina em sua infinita beleza que nos passa despercebida, porque estamos correndo muito. E para quê? Para onde? A política neoliberal, sustentada pelo deus mercado, não sabe o que fazer, nem como responder ao caos instalado. Os defensores do estado mínimo e mercado máximo correm atrás do estado para lhes tirar da bancarrota, as empresas se preparam para demissão em massa, a pobreza crescente aumenta os riscos de contaminação e, junto, cresce também a violência urbana, porque a teoria capitalista é: os lucros são meus e os prejuízos são nossos. Como os governos do mundo inteiro vão responder à profunda crise que se aproxima? O pequeno vírus agora demonstra a importância da ciência. E aqueles que nos últimos dois anos aplaudiram um governo que atacou as universidades públicas, berço da pesquisa de qualidade no país, desconsiderou os cientistas e reduziu drasticamente os investimentos em saúde e educação, anseiam agora que a ciência os salve. Parece ironia do destino, mas há uma sabedoria universal em tudo isso, a salvação não está nos templos religiosos, mas na saúde e na educação. E do ponto de vista psicológico, o que está acontecendo com as pessoas? As mazelas também aprecem, o medo arranca à força as máscaras, elas entram em contado com seus anjos e demônios que dormem abraçados no seu mundo interno, a sombra pede passagem e se apresenta com força na consciência. Muito difícil para quem usa a máscara do cidadão de bem encarar seus demônios, mas, do ponto de vista da saúde psíquica, esse contato pode ser numinoso, pode derrubar muita gente do pedestal da arrogância, desconstruindo suas ilusões e ao mesmo tempo humanizando e tornando melhores os seres humanos. Um olhar espiritual para tudo isso nos leva a conclusão que há sim u’a mão invisível, colocando as coisas no lugar devido e demonstrando nossos equívocos, não como castigo ou aniquilação, mas que, de forma pedagógica, convida-nos a rever a forma que constituímos e sustentamos as sociedades humanas. A sobrevivência da humanidade e sua multiplicação se deu pela força da união, em uma terra inóspita e com nossa fragilidade física frente aos outros habitantes do planeta, e não teria sido possível sem a união e a inteligência da raça humana. Espero que esse pequeno vírus reabilite nossa humanidade e união. O momento vai passar, o vírus não vai aniquilar a raça humana, vamos sobreviver a mais esse drama, como sobrevivemos a tantos outros ao longo da nossa história na Terra, mas espero que a resultante da experiência seja perene, que de tudo isso possamos sair melhores, mais despertos para a realidade da nossa existência como espíritos imortais vivendo uma realidade compartilhada e aprendendo com ela. Não permitamos que o medo seja o fio condutor dessa rica experiência, cultivemos a paz e o equilíbrio interior, sejamos solidários(as), fraternos(as), pois a saída está na união, na irmandade, na ruptura de um sistema individualista e na construção de um sistema cuja base fundamental seja o bem coletivo. Publicado no Facebook em 28/3/2020.

Autodestruição

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“O suicida”, pintura a óleo feita por Édouard Manet, entre 1877 e 1881.
Morrer pelo coronavírus ou morrer pelos crimes do energúmeno presidente: uma difícil escolha para o trabalhador brasileiro. Enquanto alguns países tomam medidas para garantir a renda do trabalhador, o presidente eleito pela mentira e pelo ódio segue em sua mórbida jornada em direção ao extermínio da dignidade e da vida dos trabalhadores. Essa estranha gente aproveita-se da situação de caos em que o mundo se encontra por causa da pandemia viral e toma medidas que levarão o povo trabalhador ao desespero, à indignidade e, claro, à morte. É a continuidade da necropolítica fascista em pleno vigor. O (des)governo de milicianos e corruptos publicou ontem à noite a Medida Provisória nº 927, que concede ainda mais benefícios ao capital enquanto, por outro lado, retira o único meio de sobrevivência do trabalhador: seu salário. O que essa gente cruel acha que ocorrerá à família trabalhadora sem 4 meses de salário? Não há adjetivos que possam classificar essa medida. É tão estúpida e cruel que até os mais insensatos e doentes seguidores dessa seita necropolítica devem ter ficado ruborizados. Mas, acreditem, haverá bolsoespíritas que ainda terão a desfaçatez de, pelas redes sociais, apoiar tal medonha decisão, argumentando que isso “preservará os empregos”. Ora, senhores médiuns e dirigentes espíritas afamados, ninguém quer emprego preservado sem renda para comer e sobreviver. Tenham um mínimo de compostura e dignidade. Esses espíritas de fancaria, muitos aboletados em importantes casas e federações espíritas pelo país, têm-se mostrado uma vergonha para qualquer pessoa que se diga minimamente cristã, quiçá para o movimento espírita. O povo brasileiro escolheu o caminho da autodestruição. Um dia, num futuro não tão distante, caberá a historiadores, sociólogos e cientistas políticos explicarem as consequências nefastas dessa escolha. E caberá a psiquiatras e psicólogos entenderem os traumas que levaram o povo brasileiro ao suicídio coletivo. A MPV n° 927, de 22 de março de 2020 pode ser lida aqui. Publicado no Facebook em 23/3/2020.

Um inepto no comando da nau em plena tempestade.

O Brasil foi pego no contrapé. Em plena tempestade social e econômica causada pela pandemia do coronavírus, tem-se um presidente completamente inepto e inapto às funções que lhe foram dadas pelas últimas eleições, quando, na oportunidade, o povo brasileiro escolheu dar um tiro no seu próprio pé. Ao eleger para liderá-lo um líder miliciano ligado à corrupção, às práticas imorais nas sombras dos gabinetes legislativos e à baixíssima produtividade nas três décadas no parlamento, a sociedade brasileira escolheu o risco óbvio de transitar na beira do abismo. Bastaria um vento mais forte para jogar o país ao caos, imagina uma tempestade perfeita como uma pandemia e uma catástrofe na saúde pública. Não há saída para o Brasil que não passe pelo impedimento do atual (des)governo. A destituição do energúmeno presidente, e toda a sua quadrilha, é premente e salvará vidas. Um inepto no comando da nau em plena tempestade.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A única saída é o impeachment

Vladimir Safatle – EL PAÍS Brasil Esse gesto tem força civilizadora. O Brasil não pode ter duas crises a gerenciar, a saber, o coronavírus e Bolsonaro. No dia 18 deste mês, três combativos deputados federais (Fernanda Melchionna, Sâmia Bonfim e David Miranda) protocolaram um pedido de impeachment contra Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados. Este pedido foi assinado por vários membros da sociedade civil, entre eles por mim. A este grupo, somaram-se mais de 100.000 assinaturas de apoio. O pedido motivou algumas críticas vindas, inclusive, da própria direção do partido de tais deputados, abrindo um debate importante a respeito das estratégias da oposição neste momento. Por isto, gostaria de aproveitar este espaço a fim de insistir que tais críticas estão profundamente equivocadas e expressam, na verdade, falta de clareza e direção em momento tão dramático de nosso país. Duas questões se colocam a respeito de tal problema. Primeiro, se devemos ou não devemos lutar pelo impeachment de Jair Bolsonaro. Segundo, caso a primeira resposta seja afirmativa, há de se discutir quando um pedido desta natureza deveria ser feito. Sobre o primeiro ponto, normalmente os que recusam a tese do impeachment afirmam que de nada adiantaria trocar Bolsonaro por seu vice, o general Mourão. Tal troca, na verdade, equivaleria a entregar de vez o controle do estado ao Exército, com consequências catastróficas. Há ainda aqueles que dizem ser miopia política e irresponsabilidade administrativa lutar pelo impeachment em meio a maior crise sanitária que o mundo conheceu desde há muito. Melhor seria aproveitar o enfraquecimento de Bolsonaro e levar o estado brasileiro a retomar investimentos no SUS, a revogar o teto de gastos, entre outras ações. Aos que dizem nada adiantar trocar Bolsonaro por seu vice gostaria de dizer que o foco de análise talvez esteja equivocado. A questão coloca pelo impeachment não é ‘quem assume’. Antes, trata-se de mostrar claramente que o país repudia de forma veemente quem age a todo momento para solapar os espaços mínimos de conflito político e que demonstrou irresponsabilidade e incapacidade absoluta de gerenciar forças para preparar o país para lidar com uma epidemia devastadora. Bolsonaro é um agitador fascista e um chefe de gangue narcísico que zombou do povo brasileiro e de sua vulnerabilidade no momento em que devia ter baixado as armas, convocado um governo de união nacional, sentado com a oposição e convergido forças para colocar a sobrevivência das pessoas à frente das preocupações econômicas imediatas e das preocupações políticas de seu grupo. Neste sentido, um impeachment neste momento teria um valor civilizatório, pois deixaria claro que a sociedade brasileira não admite ser comandada por alguém que se demonstra tão inepto e com interesses exclusivos de autopreservação. Bolsonaro demonstrou nos últimos dias como é capaz de produzir ações que desmobilizam as tentativas da sociedade em conscientizar todos da situação em que nos encontramos. Suas ações custam vidas. A questão sobre quem ocupará o lugar de Bolsonaro é um cortina de fumaça que demonstra desconfiança na força destituinte da soberania popular. Este mesmo argumento foi usado quando Michel Temer estava nas cordas, na ocasião da greve dos caminhoneiros. Dizia-se que não fazia sentido troca-lo por Maia. Hoje, Maia é endeusado por alguns como o esteio da racionalidade no Estado brasileiro. Já aos que afirmam que o momento é de lutar para empurrar o Estado a aplicar políticas de proteção social, eu diria que os últimos dias mostraram que isto é algo da ordem do delírio. Pois o Governo aproveita a situação de caos para permitir às empresas cortarem jornada de trabalho e salários pela metade, permitir licenciamentos sem custos, usar os parcos recursos públicos para salvar empresas aéreas monopolistas especializada em espoliar consumidores e pressionar pelas mesmas ‘reformas’ que destruíram a capacidade do Estado de operar em larga escala em situações de risco biopolítico com esta. Ou seja, achar que é possível negociar com quem procura toda oportunidade para preservar seus ganhos, com quem se serve do Estado para espoliar o povo em qualquer situação que seja, demonstra incapacidade de saber contra quem lutamos. Que aprendam de uma vez por todas: neoliberais não choram. Eles fazem conta, mesmo quando as pessoas estão a morrer à sua volta. Engana-se quem espera que Bolsonaro faça alguma forma de reconhecimento da necessidade de políticas públicas fortes, como fez o presidente francês Emmanuel Macron em momento de desespero. Isto apenas demonstra como há setores da esquerda brasileira que nada aprenderam a respeito de nossos inimigos. A eles, devemos insistir que a única maneira de realmente combater a pandemia é afastando Bolsonaro do poder em um movimento que mostraria, ao resto da classe política, o caminho da guilhotina diante da cólera popular pela inação e irresponsabilidade do governo diante das nossas mortes. Volto a insistir, esse gesto tem força civilizadora. O Brasil não pode ter duas crises a gerenciar, a saber, o coronavírus e Bolsonaro. Já os que falam que o momento é cedo para um pedido de impeachment, que é necessário compor calmamente com todas as forças, diria que isto nunca ocorrerá. A esquerda brasileira já se demonstrou, mais de uma vez, estar em uma posição de paralisia e esquizofrenia. Ela grita que sofreu um golpe enquanto se prepara rapidamente para a próxima eleição, sem querer ver a contradição entre os dois gestos. Ela luta contra a reforma previdenciária enquanto a aplica em casa. Ela não encontrará unidade para um pedido de impeachment ou só encontrará muito tarde, quando setores da centro-direita e da direita já tiverem monopolizado a pauta do impeachment. Por outro lado, 45% da população é a favor do impeachment de Bolsonaro (Atlas Político), a população manifesta-se cotidianamente através de panelaços em bairros até então solidamente ancorados no apoio a Bolsonaro, grupos que o apoiavam entrar em rota de colisão com ele. Se este não é um bom momento para a apresentação do pedido, alguém poderia me explicar o que significa exatamente ‘bom momento’? Quando estivermos todos mortos? Nestas circunstâncias, melhor respeitar um princípio autonomista de grande sabedoria estratégica. Em um campo comum, baseado na ausência de hierarquia e na confiança entre todos os que partilham os mesmos horizontes de luta, todos têm autonomia de ação e decisão. Ninguém precisa de autorização para fazer uma ação política efetiva. Dentro do campo comum ou seus membros implicam-se nas ações feitas de forma autônoma ou quem não concorda não atrapalha. Fora disto, é a posição subserviente de esperar que o líder (que não existe mais) dê sinal verde ou aponte o caminho para os demais. O que significa uma forma de submissão que nunca poderia fazer parte das estratégias daqueles que lutam por uma emancipação real. Publicado no Facebook em 21/3/2020.

Coronavírus causa doença contagiosa. E ela não é um juízo moral.

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É preciso sensatez e serenidade para não cair nas bizarras falas que se ouvem por aí propaladas por bolsoespíritas.corona Hoje, um famoso médium, em desalinho com as informações de caráter científico e ombreado pelos mais fanáticos fundamentalistas religiosos, falou em anjo que soprou sobre a humanidade o coronavírus e que aqueles que têm “afinidade psíquica” e que desrespeitam as leis divinas serão os mais afetados pela doença. Nada mais asqueroso e abjeto do que associar uma doença contagiosa a uma opção moral qualquer. Essa indignidade seria esperada em religiosos medievais, sejam eles contemporâneos ou não, mas vindo de quem tem palco para falar em nome do movimento espírita, cujas propostas são de amor, compreensão e racionalidade, é degradante. Esse tipo de gente não deve mais falar em nome daquilo que foi proposto por Kardec e os espíritos que o auxiliaram. O movimento espírita vem sendo sistematicamente desmoralizado e desacreditado. A situação tem-se tornado simplesmente insustentável. Até quando se terá de ouvir tais desatinos e tão lamentável postura em nome do espiritismo? Recomenda-se fortemente que, em relação à pandemia causada pelo coronavírus, não se dê ouvidos a esse tipo de irracionalidade que poderá causar mais dor e morte. É preciso atentar-se apenas às informações oficiais sobre a prevenção dessa doença e a recuperação dos infectados. Má informação e mentiras espalhadas pela internet causarão mortes. Discursos religiosos que comparam doentes à imorais causarão mortes. E essa gente ignorante que faz isso causará morte. Há um limite para tanta insanidade. E esse limite hoje foi, infelizmente, ultrapassado. Publicado no Facebook em 15/3/2020.

Uma homenagem a “Moor”

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Ontem, 14 de março de 2020, completaram-se 137 anos da morte de Karl Marx (1818-1883). Poder-se-iam aqui fazer loas merecidas aos seus inigualáveis textos sobre as relações entre trabalho e capital ou às suas críticas sempre mordazes aos que não conseguiam entender suas reflexões. Não. A homenagem aqui é para o homem Marx, dentro das suas relações humanas mais íntimas: a família. Muito de falso e inescrupuloso se fala sobre essas relações familiares de Marx. Então, ouça-se o que diz Eleanor Marx, sua filha mais nova, sobre “Moor”, o pai e marido Karl. Carta publicada na Revista Germinal: Marxismo e Educação em Debate (Salvador, v. 10, n. 1, mai. 2018).
Na foto Karl Marx (direita) e Friedrich Engels, com as filhas do primeiro. Da esquerda para a direita, Jenny, Laura e Eleanor. MARKA / UIG / GETTY IMAGES
Karl Marx (1) Eleanor Marx-Aveling (2) (Algumas notas casuais) Meus amigos austríacos pedem-me que lhes envie algumas recordações de meu pai. Não poderiam ter me pedido nada mais difícil. Porém, os homens e mulheres austríacos estão sustentando uma luta tão bela pela causa por que Karl Marx viveu e trabalhou que não se pode dizer-lhes não. Por isso, tentarei mesmo mandar-lhes algumas notas casuais, esparsas, acerca de meu pai. Muitas histórias estranhas têm sido contadas a respeito de Karl Marx, desde as de seus “milhões” (em libras esterlinas, evidentemente, pois nenhuma moeda inferior serviria), até a de ele ter sido subvencionado por Bismarck, a quem por hipótese teria visitado constantemente em Berlim durante o tempo da Internacional(!). Mas, afinal de contas, para os que conheceram Karl Marx nenhuma lenda é mais engraçada do que a que o descreve comumente como um homem casmurro, virulenta, inflexível, trovejando, nunca visto sorrindo, sentado sozinho e aparatado no Olimpo. Essa imagem da mais jovial e alegre alma que jamais respirou, de um homem fervilhante de humor e bom humor, cuja gargalhada cordial era contagiosa e irresistível, do mais delicado, meigo e compadecido dos companheiros, é um permanente portento – e divertimento – para os que o conheceram. Em sua vida doméstica, assim como em colóquios com amigos, e até com meros conhecidos, creio poder se dizer que as principais características de Karl Marx eram seu ilimitado bom-humor e sua irrestrita compaixão. Sua delicadeza e paciência eram realmente sublimes. Um homem de temperamento menos brando teria muitas vezes ficado frenético com as interrupções constantes, as exigências contínuas a ele feitas por toda espécie de pessoas. Ter um refugiado da comuna – um rematado maçador antigo, por sinal – que retivera Marx durante três horas mortíferas, ao final lhe ser dito que o tempo estava correndo e ainda havia muito trabalho a fazer, respondido “Mon cher Marx, je vous excuse” é característico da cortesia e delicadeza de Marx. Como com esse velho paulificante, também com qualquer homem ou mulher que ele julgava honesto (e ele dedicou seu tempo precioso a não poucos que melancolicamente abusaram da sua generosidade), Marx era sempre o mais amigável e gentil dos homens. Seu poder para “puxar” pelas pessoas, fazendo-as crer que estava interessado naquilo que lhes interessava, era maravilhoso. Tenho ouvido homens das mais diversas profissões e posições falar da capacidade especial dele para compreendê-los e aos seus assuntos. Quando ele acreditava na sinceridade de alguém, sua paciência era irrestrita. Nenhuma pergunta era por demais trivial para ele responder, nenhum argumento demasiadamente infantil para merecer discussão séria. Seu tempo e sua vasta cultura estavam sempre a serviço de qualquer homem ou mulher que aparecesse ansioso por aprender. * * * Era em suas relações com os filhos, porém, que Marx talvez fosse mais fascinante. Por certo, nunca crianças tiveram um companheiro de brincadeiras mais encantador. Minha mais remota lembrança dele é de quando eu tinha cerca de três anos, e “Moor” (o velho apelido de casa escapou-me) me levava nos ombros em volta do nosso pequeno jardim em Grafton Terrace, pondo flores “campainha” nos meus cachos castanhos. “Moor” era reconhecidamente um cavalo esplêndido. Antes disso – não me lembro mas ouvi contar – minhas irmãs e o irmãozinho – cuja a morte logo após meu nascimento foi uma dor que afligiu meus pais a vida inteira – “atrelavam” “Moor” a cadeiras, em que eles montavam e ele tinha de puxar… Pessoalmente – talvez por não ter irmãs de minha idade – eu preferia “Moor” como cavalo de sela. Sentada em seus ombros, agarrando-me em sua vasta cabeleira então negra, mas com salpico grisalho, dei magníficos passeios em nosso jardinzinho e pelos campos – agora cheios de prédios – que rodeavam nossa casa em Grafton Terrace. Uma palavra quanto ao apelido “Moor”. Em casa, todos tínhamos apelidos. (Os leitores de “O capital” saberão como Marx era bom em pôr apelidos.) “Moor” era o nome comum, quase oficial, pelo qual Marx era chamado não só por nós, como por todos os amigos mais íntimos. Mas ele era também nosso “Challey” (originalmente, creio eu, uma corruptela de Charles) e “Old Nick”. Minha mãe era sempre nossa “Mohme”. Nossa velha e querida amiga Hélène Demuth – a amiga de uma vida inteira de meus pais –, após uma série de nomes, tornou-se a nossa “Nym”. Engels, depois de 1870, tornou-se nosso “General”. Uma amiga muito intima – Lina Schoeler – nossa “Velha Toupeira”. Minha irmã Jenny era “Qui Qui, Imperador da China” e “Di”. Minha irmã Laura (Madame Lafargue), “a Hotentote” e “Kakadou”. Eu era “Tussy” – um nome que ficou – e “Quo, Quo, Sucessor do Imperador da China”, e por muito tempo o “Getwerg Alberich” (dos Niebelungen Lied). Contudo, embora “Moor” fosse excelente cavalo, ele possuía uma outra qualidade ainda mais alta. Era um contador de histórias ímpar, sem rival. Ouvi minhas tias dizerem que em pequeno ele era um terrível tirano para as irmãs, a quem “guiara” ao longo do Markusberg em Trier, a toda velocidade, como cavalos dele, e, o que é pior, insistia em que comessem os “bolinhos” que ele fazia com massa suja e mãos ainda mais sujas. Elas, porém, aguentavam tudo sem murmurar, para poderem ouvir as histórias que Karl lhes contaria depois como recompensa por sua virtude. E assim, muitos anos depois, Marx contava histórias para os filhos. A minhas irmãs – eu era então muito pequena – contava histórias quando saiam caminhando, e elas eram medidas em quilômetros e não em capítulos. “Conta mais um quilômetro”, era o grito das duas meninas. De minha parte, dos muitos contos maravilhosos que “Moor” me contou, o mais notável, o mais delicioso, foi “Hans Roeckle”. Durou meses e meses; era uma série completa de histórias. Que pena ninguém estar ali escrevendo aqueles contos tão cheios de poesia, de espírito, de humor! Hans Rockle era um mágico à moda de Hoffmann, que possuía uma loja de brinquedos e vivia sempre “pronto” a loja dele estava cheia de coisas mais extraordinárias – homens e mulheres de madeira, gigantes e anões, reis e rainhas, trabalhadores e patrões, animais e pássaros tão numerosos como os que Noé colocou em sua Arca, mesas e cadeiras, carruagens, caixas de toda espécie de tamanho. E embora fosse mágico, Hans nunca conseguia satisfazer suas obrigações para com o diabo ou o açougueiro, e portanto – muito a contragosto – era obrigado constantemente a vender seus brinquedos – sempre acabando de volta à loja de Hans Roeckle. Algumas dessas aventuras eram tão horrendas, tão horríveis quanto qualquer uma de Hoffmann; algumas eram cômicas; todas eram narradas com inesgotável verve, espírito e humor. E “Moor” também lia para os filhos. Foi assim que para mim, como antes para as minhas irmãs, leu na íntegra Homero, os Niebelungen Lied, Gudrun, Dom Quixote, as Mil e Uma Noites etc. Quanto a Shakespeare, era a Bíblia de nossa casa, raramente fora de nossas mãos e de nossos lábios. Aos seis anos, eu já conhecia de cor cenas inteiras de Shakespeare. Em meu sexto aniversário “Moor” presenteou-me com minha primeira novela – o imortal Pedro Simplório. Essa foi acompanhada por um curso inteiro de Marryat e Cooper. E meu pai de fato lia cada um dos contos a medida que eu os lia e discutia-os seriamente com sua garotinha. E quando essa garotinha, inflamada pelos contos marítimos de Marryat, declarou que iria ser um “Capitão do Posto” (sei lá o que isso seria) e consultou o pai se não lhe seria possível “vestir-se como menino” e “fugir para alistar-se em um navio de guerra”, ele lhe garantiu que a ideia poderia muito bem ser seguida, mas só que não deveriam contar a ninguém até os planos estarem bem amadurecidos. Antes dos planos poderem amadurecer, contudo, pegara a mania de Scott, e a menina ouviu, para seu horror, que ela mesma em parte pertencia ao detestado clã dos Campbell. Em seguida, houve planos para sublevar os Highlands e para reviver “os quarenta e cinco”. Devo acrescentar que Scott era um autor a quem Marx repetidamente voltava, que admirava e conhecia tão bem quanto a Balzac e Fielding. E enquanto conversávamos sobre esses e muitos livros, ele ia indicando a essa menina, que se mostrava completamente inconsciente ao fato, onde procurar o que havia de melhor nos livros, ensinando-a – embora ela nunca imaginasse que estivesse sendo ensinada, ao que se teria oposto – a tentar e a pensar, a tentar e a entender por si mesma. E da mesma forma, esse “amargo” e “exasperado” homem falava de “política” e “religião” com a meninazinha. Quão bem me recordo, quando tinha talvez cinco ou seis anos, ter sentido certos escrúpulos religiosos e (tínhamos estado em uma igreja católica romana para escutar a linda música) confiando-os, naturalmente, a “Moor”, como ele calmamente deixou tudo tão claro e certo para mim que desse momento até hoje nenhuma dúvida jamais voltou a passar por meu pensamento. Lembro-me, agora, de ele me contar a história – não acho que poderia ter sido contada assim antes ou depois – do carpinteiro a quem os ricos mataram, e de dizer inúmeras vezes: “Afinal de contas podemos perdoar muita coisa ao cristianismo por nos ter ensinado o culto da criança.” E o próprio Marx poderia ter dito “deixem as criancinhas vir a mim”, porque onde quer que ele fosse também surgiam crianças. Se se sentava na charneca em Hampstead – um vasto espaço aberto no norte de Londres, perto de nossa antiga casa –, se descansava em um banco num dos parques, dentro em pouco um bando de crianças estava reunido em volta dele nos termos mais íntimos e amigáveis com o homem grande de cabelos e barba longos e os bondosos olhos castanhos. Crianças completamente estranhas vinham assim a ele, paravam-no na rua… uma vez, recordo-me, um pequeno escolar de uns dez anos bem sem cerimônia deteve o temível “chefe da Internacional” no Parque Maitland e pediu-lhe para “barganhar canivetes”. Após uma pequena explicação indispensável de que “barganhar” era o termo escolar para “trocar”, os dois canivetes apareceram e foram comprados. O do menino tinha só uma lâmina e o do homem duas, mas estas estavam inegavelmente cegas. Após muito debate, foi feita a barganha: O terrível “chefe da Internacional” acrescentou uma moeda, levando em conta que suas lâminas estavam cegas. Como me lembro bem da paciência e doçura infinitas com que, tendo a guerra norte-americana e os Livros Azuis substituído temporariamente Marryat e Scott, ele respondia a todas as perguntas e nunca se queixava de uma interrupção. No entanto, não deve ter sido pouco transtorno crianças pequenas tagarelando enquanto ele trabalhava em seu grande livro. À criança, porém, jamais era dado ensejo de perceber que podia estar atrapalhando. Nessa época, também, lembro, tive absoluta convicção de que Abraão Lincoln precisava urgentemente de meus concelhos sobre a guerra, e escrevia cartas extensas dirigidas a ele, todas as quais, está claro, “Moor” tinha de ler e por no correio. Muitos, muitos anos depois, ele mostrou-me aquelas cartas infantis que guardara porque o tinham divertido muito. E assim, através dos anos da infância e da juventude, “Moor” foi um amigo ideal. Em casa, todos éramos bons camaradas e ele sempre o mais dedicado e mais bem humorado. Mesmo durante os anos de sofrimento, quando padecia continuamente de dores, devido aos carbúnculos, mesmo até o fim… * * * Escrevinhei estas poucas reminiscências descosidas, mas mesmo assim ficariam incompletas se não acrescentasse uma palavra sobre a minha mãe. Não é exagero afirmar que Karl Marx nunca poderia ter sido o que foi sem Jenny von Westphalen. Nunca ouve dias de duas pessoas – ambas notáveis – tão unidas, tão completamente uma da outra. De beleza extraordinária – uma beleza de que ele se orgulhava e alegrava até o fim, e que merecera a admiração de homens como Heine, Herwegh e Lassalle –, de intelecto e espirito tão brilhantes quanto sua beleza, Jenny von Westphalen foi uma mulher entre milhões. Como rapaz e mocinha – ele mal fizera 17, ela 21 – ficaram noivos, e como ocorreu com Jacó em relação a Raquel, ele serviu sete anos antes de se casarem. Depois, através dos anos seguintes de tempestades e tensão, de exílio, pobreza áspera, calúnia, luta intrépida e batalha porfiada, esses dois, com sua fiel e leal amiga Hélène Demuth, enfrentaram o mundo, nunca titubeando, nunca recuando, sempre no posto do dever e do perigo. Em verdade, poderia ele dizer dela nas palavras de Browning: “Portanto,  ela é minha noiva imortal. A sorte não pode mudar meu amor, Nem o tempo debilitá-lo…” E eu, às vezes, penso que quase tão forte entre eles como foi o vínculo de seu devotamento à causa dos trabalhadores foi também o seu imenso senso de humor. Garanto que nunca duas pessoas apreciaram melhor uma brincadeira do que aqueles dois. Repetidas vezes – especialmente se a ocasião exigia compostura e seriedade – vi-os rir até as lagrimas correrem pelas faces a baixo, e mesmo as pessoas dispostas a ficar chocadas ante tamanha jovialidade intempestiva não podiam deixar de rir com eles. E quão amiúde vi-os sem se atreverem a olhar um para o outro, cada um sabendo que um mero vislumbre trocado resultaria em risadas incontroláveis! Ver os dois com os olhos fixos em qualquer coisa que não fosse o outro, parecendo, a todos, dois escolares, sufocando com o riso reprimido que acabava, a despeito de todos os esforços, arrebentando, é uma recordação que eu não trocaria por todos os milhões que as vezes atribuem a minha herança. Sim, malgrado todo o sentimento, as lutas, os desapontamentos, eles eram uma dupla alegre e o acirrado Júpiter Tonitruante uma ficção da imaginação burguesa. E se nos anos de luta houve muitas desilusões, se depararam com a ingratidão de estranhos, tiveram o que a poucos é dado – amigos sinceros. Onde é conhecido o nome de Marx, também é o de Friedrich Engels. E aqueles que conheceram Marx em seu lar também se lembram do nome da mais nobre das mulheres que jamais viveu, o nome honrado de Hélène Demuth. Aos estudiosos da natureza humana, não parecera estranho que esse homem, que foi um tal lutador, fosse ao mesmo tempo o mais dedicado e meigo dos homens. Entenderão que ele pôde odiar tão ferozmente só porque soube amar profundamente; que se sua caneta cortante podia certamente prender uma alma no inferno como o próprio Dante, foi por ele ser tão sincero e terno; que se seu humor sarcástico podia morder como ácido corrosivo, esse mesmo humor podia ser igualmente um lenitivo para os aflitos e os em dificuldade. Minha mãe morreu em dezembro de 1881. Quinze meses depois, ele, que nunca estivera separado dela em vida, reuniu-se-lhe na morte. Após a febre espasmódica da vida, eles dormem bem. Se ela foi uma mulher ideal, ele – bem, ele “foi um homem, considere-o no todo, não veremos igual jamais”. Notas:
  1. Transcrito de FROM, Erick. Conceito Marxista de Homem. 6a Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
  2. Personalidade do movimento operário inglês e internacional, filha mais nova de Marx, companheira do socialista inglês Eduard Aveling. Participou da Federação Democrática liderada por Henry Hyndman no início dos anos 1880. Junto com Eduard Aveling e William Morris participou da formação da Liga Socialista, tendo publicado, no Commonwal – jornal mensal da entidade – vários artigos e comentários sobre a questão feminina e outras questões. Foi uma ativa militante sindical, e em 1889 participou, como delegada, da fundação da Segunda Internacional. Após a morte de Engels dedicou-se à tarefa de organizar os manuscritos de Marx. Suicidou-se em 31 de março de 1898 com a idade de 43 anos. Marxist Internet Archive. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/eleanor/index.htm. Acesso em 21/05/2018. Publicado no Facebook em 15/3/2020

Quando os mansos herdarão a terra?

Nova coluna de Isabel Guimarães para a página “Espíritas à esquerda”. Nesse seu texto exclusivo para nossa página, Isabel discute a mansidão. mansos

Quando os mansos herdarão a terra?

“Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra.” Jesus, em Evangelho de Mateus, 5, 5

O discurso das bem-aventuranças para mim é a mais bela passagem do Evangelho, porque nela parece que Jesus quis resumir a totalidade de sua proposta revolucionária para as relações humanas ontem e hoje. Destaco uma delas, por considerá-la muito pertinente ao cenário que se descortinou em nosso país nos últimos anos, gosto do termo descortinar porque remete a algo que estava oculto e se revela. Escrever esse texto foi um grande desafio, demorei um tempo fora do meu padrão de escrita, achei muito difícil encontrar as palavras que traduzissem o que gostaria de transmitir, só muito tempo depois compreendi que estava resistindo, certamente a mesma resistência que muitos companheiros e companheiras espíritas, do campo da esquerda, talvez enfrentem, para falar do par de opostos: mansidão x violência. Então optei por escrever um texto provocativo, muito mais para questionar do que para responder, só assim passei a me sentir menos desconfortável com o tema. Afinal somos chamados em toda a nossa formação, no espiritismo, a sermos mansos, brandos e pacíficos, a nos contrapormos firmemente a qualquer tipo de violência, então o dilema está posto, ele consiste em nos perguntarmos como encaminhar a luta da ideologia que sustenta nossa visão de mundo sem sermos violentos? Afinal como lidar com um mundo conturbado, onde assistimos diariamente a aparente vitória dos violentos? Violência que se expressa na polícia, braço armado do estado, que agride negros e pobres; no estado, que não garante as mínimas condições e sobrevivência do povo e ainda desmonta as poucas políticas de bem-estar social de nosso país; no homem machista, que agride, violenta, silencia, coage e mata as mulheres; na violência urbana, que nos torna prisioneiros dos espaços seguros, obstruindo a nossa liberdade de ir e vir na hora e para onde quisermos; na degradação ambiental, com destruição de reservas vitais para a sustentabilidade da vida no planeta; nas guerras comercias e militares, que destroem famílias, deixam órfãs as crianças num rastro de destruição e terra arrasa; na fome de milhões de seres humanos morrendo de inanição, enquanto poucos vivem chafurdados em verdadeiras orgias alimentares; na degradação do corpo, seja pela promiscuidade sexual, seja pela ditadura de um padrão de beleza que mata e infelicita  homens e mulheres; na homofobia, que grotescamente assassina, com requintes de crueldade, o outro que apenas busca ser o que é; nos religiosos mercadores da fé, que distorcem os ensinamentos de Jesus para caberem em suas ganância e fome de poder; nos empresários corruptos, que compram os políticos, e nos políticos, que se vendem aos empresários; e no racismo estrutural, que ignora 300 anos de escravidão e suas perversas sequelas para o povo negro. A pergunta é: como ser manso diante de tanta opressão, violência, perversidade e loucura? Como ser manso diante, da injustiça, da hipocrisia e do cinismo? Talvez estejamos precisando compreender melhor o que é mansidão? De que mansidão falava Jesus quando lidava com uma sociedade na qual a violência também imperava? Sim, porque a cultura do Império Romano se caracterizava por sua dureza, crueldade, violência e pela instabilidade política e religiosa, e, por outro lado, os judeus, apesar de subjugados política e economicamente ao império Romano, seguiam suas tradições religiosas, que não se separavam da política e das normas sociais, a lei mosaica regia a vida do povo judeu. Leis essas extremamente rígidas e duras, em especial para as mulheres. Então como Jesus exerceu a mansidão diante de um cenário de extrema violência? Ele defendeu ideias e agiu de forma absolutamente coerente com aquilo que defendia, aproveitando cada experiência da vida cotidiana para ensinar e agir contrapondo-se à injustiça, à hipocrisia e à violência reinantes no seio daquela sociedade. Porque a cada momento evolutivo, a sociedade se organiza e constrói sua dinâmica de acordo com o conjunto das individualidades dos seus membros, tendo como resultante uma estrutura social com seus avanços e retrocessos, com suas virtudes e perversidades. Portanto não podemos utilizar a proposta de mansidão para justificar nossa passividade diante da injustiça, perversidade, opressão e hipocrisia. Jesus não pregou a violência armada mas atuou no campo das ideias, buscando encontrar nos corações humanos solo fértil para plantar as sementes de amor, de solidariedade de fraternidade para que a árvore do bem coletivo crescesse e desse frutos. Jesus se armou de um ideal e com força, coragem e firmeza o defendeu até a morte, e nós até que ponto estamos defendendo nossas ideias? Até que ponto estamos sendo coerentes entre o que defendemos na oratória e na escrita e as nossas atitudes? Porque as ideias são sustentadas e nutridas pelas atitudes. São as ideias que mudam o mundo, porque ideias não morrem jamais, ela estão sempre se espalhando e fecundando corações até que se coagulam e se transformam em ação, e aí as mudanças ocorrem. Todas as transformações das sociedades humanas, ocorreram porque indivíduos e grupos se colocaram à frente do seu tempo e enfrentaram suas mazelas, e todos, sem exceção, sofreram represálias dos que não desejavam as mudanças. Não confundir mansidão com passividade, porque expressar a indignação diante da injustiça não é ser violento, desmascarar a hipocrisia não é ser perverso, e foi isso que fez Jesus e podemos ter certeza que ele se insurgiu contra aquela ordem social vigente. Por que ele foi assassinado? Por que o crucificaram se ele não pegou em armas, não ofendeu ninguém, não tentou tomar o lugar de ninguém? Ele defendeu um ideal e agiu de acordo com esse ideal. Talvez possamos nos inspirar em sua conduta, e aproveitarmos todos os espaços e oportunidades da vida cotidiana para exercitarmos nosso ideal, ainda que por conta dessa defesa sejamos desprezados por uns, incompreendidos por outros e até presos ou mortos por terceiros. Afinal que herança deixaremos para os mansos que herdarão a terra quando aqui não mais estivermos? Deixaremos a única coisa que não morre jamais, mataram Jesus, mas suas ideias atravessaram o tempo e alcançaram nossos corações. E, como diz a belíssima canção “Luzes da Ribalta”, composta pelo inesquecível Charles Chaplin (1889-1977), na versão de Antônio Almeida, “para que chorar o que passou, lamentar perdidas ilusões, se o ideal que sempre nos acalentou renascerá em outros corações”.

Os fascistas mostram suas garras

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O professor Felipe Boff, que leciona jornalismo da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), foi hostilizado pela plateia durante a leitura de seu discurso de paraninfo na formatura da turma de jornalismo, na última sexta-feira, 7 de março, em São Leopoldo, Rio Grande do Sul. O assédio e a virulência das reações da audiência fascista foram motivados pelas muitas citações feitas no discurso do professor dos tenebrosos ataques proferidos pelo inominável, o chefe do clã miliciano, aos jornalistas quase diariamente. Ao final do evento, em função das ameaças sofridas, o professor teve de sair escoltado por seguranças da instituição de ensino. Felipe Boff manifestou-se posteriormente por meio de sua conta no Facebook, apresentando o conteúdo completo de seu corajoso discurso. Seguem abaixo a notícia e a publicação do professor: Aqui a notícia no Jornalistas Livres.

Hoje à noite, algumas pessoas pouco afeitas à liberdade de expressão e à democracia tentaram, aos gritos, me impedir de prosseguir com meu discurso de paraninfo na formatura da turma de Jornalismo da Unisinos. A virulência desse ataque – que fez até a instituição colocar seguranças para me acompanharem na saída do auditório – só reforçou a importância do que foi dito. Por isso, compartilho a seguir o discurso, que pôde ser proferido até o fim graças ao apoio de professores, formandos, alunos, ex-alunos e muitos mais.

Felipe Boff

DISCURSO DE FORMATURA

A imprensa brasileira vive seus dias mais difíceis desde a ditadura militar. Entre 1964 e 1985, jornalistas foram censurados, perseguidos, presos, torturados e até assassinados, como Vladimir Herzog. Hoje, somos insultados nas redes e nas ruas; perseguidos por milícias virtuais e reais; cerceados e desrespeitados por autoridades que se sentem desobrigadas de prestar contas à sociedade. Todos sabem – mesmo aqueles que não acompanham as notícias – quem é o principal propagador dessa ameaça crescente à liberdade de imprensa. É o mesmo que também considera como inimigos os cientistas, professores, artistas, ambientalistas – como se vê, estamos bem acompanhados. No ano passado, segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas, o presidente da República atacou a imprensa 116 vezes em postagens nas suas redes sociais, pronunciamentos e entrevistas. Um ataque a cada 3 dias. Querem exemplos? “É só você fazer cocô dia sim, dia não.” “Você está falando da tua mãe?” “Você tem uma cara de homossexual terrível.” “Pergunta pra tua mãe o comprovante que ela deu para o teu pai.” É dessa forma chula e rasteira que o presidente da República, a maior autoridade do país, costuma responder aos jornalistas. Seus xingamentos tentam desviar a atenção das respostas que ele ainda deve à sociedade. Nos casos citados, explicações sobre o retrocesso da preservação ambiental no país, sobre os depósitos do ex-assessor Fabrício Queiroz na conta da hoje primeira-dama, sobre o esquema da “rachadinha” de salários no gabinete do filho hoje senador, sobre o envolvimento da família presidencial com milicianos. O presidente das fake news, que bate na imprensa cada vez que ela informa um fato negativo sobre ele e seu governo, é o mesmo que deu 608 declarações falsas ou distorcidas – quase duas por dia – ao longo de 2019. O levantamento é da agência de checagem Aos Fatos. Querem exemplos? “O Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente no mundo.” “Leonardo Di Caprio tá dando dinheiro pra tacar fogo na Amazônia.” “O Brasil é o país que menos usa agrotóxicos.” “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira.” “Nunca teve ditadura no Brasil.” Em 2020, depois de completar um ano de mandato com resultados pífios na economia e desastrosos na educação, na cultura, na saúde e na assistência social, o presidente não serenou. Redobrou os ataques à imprensa. Aplicou o duplo sentido mais tosco à expressão jornalística “furo” para caluniar a repórter que denunciou a manipulação massiva do WhatsApp na campanha eleitoral. Atacou outra jornalista, mentindo descaradamente, para negar a revelação de que compartilhou vídeos insuflando manifestações contra o Congresso e o STF. E segue promovendo o boicote à imprensa, com exceção daqueles que aproveitam o negócio de ocasião para vender subserviência e silêncios estratégicos. Aos veículos que não se dobram ao seu despotismo, o presidente da República impinge pessoalmente retaliações financeiras diretas, pressão sobre anunciantes e difamação de seus profissionais. Pratica, enfim, toda sorte de manobras sórdidas para tentar asfixiar o jornalismo e alienar a população dos fatos. E já nem se preocupa em disfarçar suas intenções. Querem um último exemplo? Declaração de 6 de janeiro deste ano, dita pelo presidente aos jornalistas “Vocês são uma raça em extinção”. Não, presidente, não somos uma raça em extinção. Ao contrário. Somos uma raça cada dia mais forte, mais unida, mais corajosa, mais consciente. Basta olhar para estes 21 novos jornalistas que estamos formando hoje. Basta ler os dizeres na camiseta deles: “Não existe democracia sem jornalismo”. Esta é a mensagem a ser destacada nesta noite: quando tenta calar e desacreditar a imprensa, o atual presidente da República ameaça não só o jornalismo e os jornalistas. Ameaça a democracia, a arte, a ciência, a educação, a natureza, a liberdade, o pensamento. Ameaça a todos, até aqueles que hoje apenas o aplaudem – estes, que experimentem deixar de bater palma para ver o que acontece. Para encerrar, gostaria de citar o exemplo e as palavras do grande escritor e jornalista argentino Rodolfo Walsh. Precursor da reportagem literária e investigativa e destemida voz contra o autoritarismo e o terrorismo de Estado, Walsh pregava que “Ou o jornalismo é livre, ou é uma farsa, sem meios-termos”. Dizia também que “um intelectual que não compreende o que acontece no seu tempo e no seu país é uma contradição ambulante; e aquele que compreende e não age, terá lugar na antologia do pranto, não na história viva de sua terra”. Rodolfo Walsh foi sequestrado e assassinado pela ditadura argentina em 25 de março de 1977. Na véspera, publicara corajosamente uma “carta aberta à junta militar”, denunciando os crimes do sanguinário regime, que então completava apenas seu primeiro ano. Estas foram as últimas palavras que Walsh escreveu: “Sem esperança de ser escutado, com a certeza de ser perseguido, mas fiel ao compromisso que assumi, há muito tempo, de dar testemunho em momentos difíceis”. Jornalistas, este é o nosso compromisso. Não deixaremos que a tirania nos cale mais uma vez. Publicado no Facebook em 8/3/2020.

A fascinação e a necropolítica miliciana

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“239. A fascinação tem consequências muito mais graves. É uma ilusão produzida pela ação direta do espírito sobre o pensamento do médium e que, de certa maneira, lhe paralisa o raciocínio, relativamente às comunicações. O médium fascinado não acredita que o estejam enganando: o espírito tem a arte de lhe inspirar confiança cega, que o impede de ver o embuste e de compreender o absurdo do que escreve, ainda quando esse absurdo salte aos olhos de toda gente. A ilusão pode mesmo ir até ao ponto de o fazer achar sublime a linguagem mais ridícula. Fora erro acreditar que a este gênero de obsessão só estão sujeitas as pessoas simples, ignorantes e baldas de senso. Dela não se acham isentos nem os homens de mais espírito, os mais instruídos e os mais inteligentes sob outros aspectos, o que prova que tal aberração é efeito de uma causa estranha, cuja influência eles sofrem.”

Allan Kardec, “O livro dos médiuns”. 2ª parte, cap. XXIII.

O grito da decomposição social”, feita pelo chargista mexicano Rocha em 2015, reinterpretando a famosa tela “O grito”, de Edvard Munch, pintada em 1893.
No pior momento da história recente do mundo, com uma pandemia que mata milhares e milhares, os brasileiros foram pegos com a calça nas mãos e, infelizmente, por sua própria escolha suicida. Além da luta contra um vírus que se propaga de forma estonteante e mata sem pudor, por aqui se luta também contra um verme, eleito por meio da mentira e do ódio, que tem tentado insistentemente piorar as consequências da pandemia mortal. Se esse verme, que ataca principalmente a mente desavisada e pouco elaborada, não for parado a tempo, o país viverá um período de caos, morte e agonia. Pelo que se vê nas notícias e nas redes sociais, esse verme cruel já infectou diversas pessoas, fazendo lembrar cenas da ficção de contos de zumbis, que agora pretendem sair às ruas para defender seu direito de morrer e matar indistintamente. Sim, é isso que essa estranha gente pretende com suas carreatas e protestos a favor da liberação irrestrita, ou “vertical”, do isolamento social decretado pelos entes federados subnacionais: a morte. A necropolítica miliciana, guiada por espíritos mal intencionados, nunca esteve tão explícita e à vontade para pregar seus reais objetivos. Cabe aos espíritas, amparados pelos ensinos de fraternidade e compaixão exarados por Jesus e pelos espíritos que auxiliaram Kardec, levantar a bandeira da racionalidade e lutar contra a necropolítica bolsonarista que se espalhou como uma obsessão coletiva, uma fascinação, no meio dos fracos de espírito e dos interessados no lucro acima da vida. Não há outra opção racional e moral nesse grave momento: é preciso, para quem pode, ficar em casa.