O Natal de Eny, a advogada movida pela indignação

Feminismos com Elizabeth Hernandes (EàE-DF)

Mulheres de fé – I

O Natal de Eny, a advogada movida pela indignação

O ano de 2022 começa com uma grande perda. Eny Raimundo Moreira se retira da dimensão material, deixando-nos o dever de honrar seu legado de altivez, resistência e luta.

Por ocasião de sua partida, viralizou nas redes sociais o comovente texto escrito por Frei Betto, narrando a visita que recebeu, na penitenciária de Presidente Venceslau (SP), em 1972[1].

Em seu relato, Betto conta que os prisioneiros conseguiram convencer o capelão do presídio a permitir a participação de Eny na missa daquela noite especial. Durante a celebração, o diretor do presídio discursou e, entusiasmando-se com a própria demagogia, convidou Eny a falar aos presos.

Impossível de reproduzir o que disse. Um canto de amor não pode ser descrito. Como doce perfume, suas palavras contagiaram o ambiente. Seu carinho penetrou o coração de cada presidiário. Só lembro que terminou dizendo: ‘Beijo cada um de vocês’. Mas não se limitou à palavra. Emocionada, preferiu uma atitude: ‘É noite de natal e quero abraçar cada um de vocês’.”[1]

Ao invés de estar com seus familiares, naquele Natal, Eny escolheu abraçar 400 homens encarcerados e, dentre estes, cinco considerados “terroristas” pelo governo vigente. Segundo o relato do frei, dentre os “não terroristas”, alguns, entre lágrimas, disseram o que era considerado um grande elogio, naquele contexto: “Frei, por esta mulher, eu mato qualquer um”. E outro começou a morrer ali mesmo quando afirmou: “eu não acreditava em gente boa, mas agora sou obrigado a reconhecer que estava errado”. Morria para renascer como homem novo. Um homem que, agora, tinha fé na bondade[1].

A advogada, que foi estagiária no escritório de Heráclito Fontoura Sobral Pinto, certamente merecerá artigos, teses, biografias etc. Mas será difícil definir a mulher que, na defesa de Paulo Vanuchi, notando a atitude incrédula do juiz militar acerca da tortura infligida ao seu cliente, recorreu ao simples, que é sempre o mais eficaz, ordenando que Vanuchi se despisse em pleno tribunal e expusesse as marcas da indignidade inaceitável da tortura[2].

De acordo com o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, citado por Castro (2021)[3], em artigo que destaca a advocacia como “a profissão da solidariedade e da empatia”, são finalidades da Ordem “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.

É possível imaginar uma jovem mulher sendo fiel a esse Estatuto, no auge dos anos de chumbo? É possível, mas não é necessário. Não foi imaginação, foi vida vivida.

Foi Eny buscando Ísis de Oliveira em presídios e não conseguindo evitar que a militante da Aliança Libertadora Nacional fosse morta nos porões da ditadura; defendendo estudantes presos e torturados nas dependências do DOI-Codi do Rio de Janeiro, juntamente com outros dois advogados, Lino Machado Filho e Humberto Jansen de Melo e fazendo com que o Cardeal Eugênio Sales interferisse e garantisse a integridade física do grupo[3].

Onze anos após o encerramento –oficial– dos anos de tortura, Eny foi presa, numa sessão de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), por sustentar que seu cliente tinha o direito de permanecer calado. Nessa ocasião, surpreendeu a todos a grande quantidade de parlamentares que saíram em sua defesa, inclusive José Genoíno, que não contara, diretamente, com os serviços da valente causídica: (…) essa pessoa aqui é feita de material humano diferente (…) porque eram estas pessoas que iam lá no parlatório, ficavam três horas e corriam muito risco. Isso é um valor muito grande porque hoje essas coisas, às vezes dão publicidade, mas naquela época não dava, e estas pessoas faziam isso (…).[2]

Eny fazia o que achava correto, mesmo quando não dava publicidade.

Na pesquisa feita para esse artigo, não foi possível saber se Eny seguia outra deusa que não a Themis. Sabe-se, porém, que liderou um projeto financiado pelo Conselho Mundial de Igrejas: Brasil, Nunca Mais. Segundo Pedlowski e Asfora (2010)[2], o objetivo inicial era a realização de um levantamento da situação dos presos políticos. Mas como falar de prisões políticas, no Brasil da ditadura militar, sem falar de tortura? Assim, o projeto evoluiu para a documentação da existência de tortura, a partir dos documentos elaborados pelo próprio regime militar, quando tentou legalizar o ilegalizável.

Muito ainda se pode falar da vida de Eny, porém, neste espaço que aborda mulheres, política e religião, vamos especular sobre seu posicionamento religioso.

No livro “Espiritismo, sociedade e política”, no capítulo “Bem, caridade e política: relações necessárias”[4], o autor inicia destacando uma passagem evangélica e uma pergunta/resposta de “O livro dos espíritos”:

Senhor, quando é que te vimos com fome ou com sede, forasteiro ou nu, doente ou preso e não te servimos? E ele responderá com essas palavras: Em verdade vos digo: todas as vezes em que deixastes de fazer a um desses pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer” (Mateus, 25, 44-45).

Em um único dia Eny visitou presos, forasteiros e também aplacou sua sede e sua fome de afeto e de esperança.

Na pergunta 629, de “O livro dos espíritos”, temos: “Que definição se pode dar à moral? – A moral é a regra da boa conduta e portanto, da distinção entre o bem e o mal. Funda-se na observação da lei de Deus. O homem se conduz bem quando faz tudo tendo em vista o bem e para o bem de todos, porque então observa a lei de Deus.

A advogada Eny Moreira, apoiando-se num sistema de leis que, à época, estava fragilizado e desmoralizado, cumpriu o que “O livro dos espíritos” traz como a observação da lei de Deus. Ao visitar seus clientes, prestou assistência a toda a comunidade do entorno. Não deixou nem um encarcerado sem o acalento de sua presença. E, ao fazer isso, também avançou na luta pela reconquista de um precioso bem coletivo, que só seria recuperado muitos anos depois, a democracia.

Até onde se sabe, Eny não era espírita e, provavelmente, não utilizava a expressão “reforma íntima”, que pode ser caracterizada como uma busca pelo bom caminho, descrito no item “Missão dos espíritas”, capítulo XX de “O evangelho segundo o espiritismo”:

(…) como reconhecer os que se acham no bom caminho? Podeis reconhecê-los pelo ensino e prática dos verdadeiros princípios da caridade; pela consolação que distribuírem aos aflitos; pelo amor que dedicarem ao próximo; pela sua abnegação e seu altruísmo.”

Tudo que se encontrou registrado, acerca da atuação da Doutora Eny, revela coerência com a noite de Natal descrita por Frei Betto. A jovem advogada viveu para ver a derrocada da ditadura militar.

Eny Moreira deverá ser lembrada como uma militante política que primou por atuar apaixonadamente em defesa da restauração da democracia no Brasil e que, movida por uma profunda indignação, jamais se curvou frente às pressões e ameaças que recebeu” (Pedlowski e Asfora, 2010, p.222)[2].

Eny não distribuía cestas básicas, advogava. É a única mulher citada num livro registrou a atuação dos bacharéis que trabalharam em conformidade com a definição de Sobral Pinto, destacada na contracapa:

O advogado só é advogado quando tem coragem de se opor aos poderosos de todo gênero que se dedicam à opressão pelo poder. É dever do advogado defender o oprimido. Se não o faz, está apenas se dedicando a uma profissão que lhe dá sustento e à sua família. Não é advogado.”

Também não se encontra nenhuma menção à Eny como pessoa caridosa. Para compreender essa dimensão, teremos de recorrer à literatura espírita progressista:

Passando, portanto, ao próximo ciclo da espiral dialética na busca de sua transformação moral e cognitiva, os espíritas precisam despertar para a forma de caridade mais abrangente e pautada nas necessidades reais da sociedade em que vivem. Essa forma de caridade tem o nome singelo de política. Ela é a expressão maior da caridade, pois é por meio da atividade política, pautada no respeito e no desprendimento, que se pode alcançar a totalidade da sociedade que se administra ou legisla. Apesar da repulsa que muitos espíritas ainda sentem pela participação mais ativa na política, consolidando dentro do ambiente das casas espíritas o errôneo conceito da criminalização da atividade política, deve-se ressaltar que ela não é apenas uma forma possível de solução dos graves problemas sociais em que se vive, a política é a única forma real de solução e qualquer outra forma, por mais que haja empenho e amor envolvidos, será simplesmente uma ação paliativa que resolve problemas pontuais sem alcance significativo” (Pinto, 2021, p.212)[4].

Enfim, Eny Raimundo Moreira, presente e necessária, aqui na terra, está no céu. Qualquer que seja sua definição de céu.

Notas:

[1] Christo, Carlos Alberto Libânio . Eny Raimundo Moreira, a advogada que enfrentou a Ditadura Militar. Disponível em https://www.freibetto.org/index.php/artigos/14-artigos

[2] Pedlowski, Marcos A.; Asfora, Nicolle. Eny Moreira: breve história de uma advogada movida pela indignação. In: Sá, Fernando; Munteal, Oswaldo; Martins, Paulo Emílio (orgs). Os advogados e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

[3] Castro, Aldemário Araújo. Advocacia: a profissão da solidariedade social e da empatia. Disponível em https://questaopolitica.com.br/advocacia-a-profissao-da-solidariedade-social-e-da-empatia/

[4] Pinto, Sergio Mauricio. Bem, caridade e política: relações necessárias. In: Incontri, Dora; Pinto, Sergio Mauricio (orgs). Espiritismo, sociedade e política: projetos de transformação. Bragança Paulista: Comenius, 2021.

Além da inteligência, use seu instinto.

COLUNA Releituras kardecistas – Marcio Sales Saraiva

Como é que pessoas sem grande formação educacional-cultural conseguem-se sair muito bem, por vezes até melhor, do que outras que tem um currículo acadêmico invejável?

Além da inteligência cognitiva, fruto do acúmulo de conhecimentos e da capacidade analítica dos mesmos, temos também o nosso instinto, nosso “sexto sentido”, nossa intuição que emerge das profundezas inconscientes do nosso ser que vem renascendo ao longo das eras e acumulando muita experiência. E os bons espíritos dizem que “inteligência [no sentido de psiquismo] e matéria são independentes” (questão 71), ou seja, o espiritismo kardequiano é dualista.

Em “O livro dos espíritos”, os mentores explicam os limites da inteligência, do psiquismo humano, para Allan Kardec, mostrando que nem tudo temos condições de compreender, nem eles, os espíritos, de explicar.

72-a. Poder-se-ia dizer que cada ser tira uma porção de inteligência da fonte universal e a assimila, como tira e assimila o princípio da vida material?

Isto não é mais que uma comparação; mas não exata, porque a inteligência é uma faculdade própria de cada ser e constitui a sua individualidade moral [ou sua bagagem pessoal ao longo de diversas encarnações]. De resto, bem o sabeis, há coisas que não é dado ao homem penetrar, e esta, por enquanto, é uma delas.”

Então, até onde podemos compreender, de acordo com a visão que nos é dada pelos espíritos, é que o chamado “instinto” é uma espécie de inteligência, mas “não racional” (questão 73). Em outras palavras, a inteligência é fruto da consciência e de nossa capacidade cognitiva-racional, mas o nosso instinto vem de uma camada mais profunda e inconsciente, é uma espécie de inteligência intuitiva e não racional.

Há quem diga que Allan Kardec era um racionalista fanático, mas não é bem assim. Os próprios espíritos dizem que o ser humano erra ao “desprezar” o instinto, o insight, a inteligência não racional que trazemos.

Por que erra o ser humano ao não dar valor a essa outra forma de inteligência, que Kardec chama de “inteligência rudimentar”?

A resposta é chocante para quem desconhece o kardecismo:

O instinto existe sempre, mas o homem o negligencia. O instinto pode também conduzir ao bem; ele nos guia quase sempre, e às vezes mais seguramente que a razão; ele nunca se engana.” (questão 75)

Note bem! O instinto, essa inteligência não racional, sempre existiu, quase sempre nos guia ao caminho do bem e, pasmem!, é geralmente mais seguro do que a própria razão, essa deusa louvada pela modernidade iluminista que Kardec tanto bebeu filosoficamente. E tem mais. Comparado com a razão cognitiva, o instinto, nosso “sexto sentido” –como se diz no senso comum–, “nunca se engana”. Repito. Os espíritos dizem: “nunca se engana”!

Sendo assim, nós, kardecistas, deveríamos estudar mais e valorizar nossos insights, essa inteligência emocional e não racional que nos conduz ao reto caminho e, geralmente, de uma maneira mais sábia do que todas as teorias racionais que decoramos. Sejamos mais intuitivos e menos arrogantes quanto ao conhecimento intelectual.

Não Olhe Para Cima: a estranha comédia que não faz rir, mas faz pensar

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Está bombando em audiência o filme Não Olhe Para Cima, lançado esta semana pela Netflix. É uma comédia que não faz rir ou, pelo menos, gera um riso nervoso. Porque é tão realista que chega a exagerar na caricatura dos personagens, mas é impossível não comparar os personagens com muitos seres da vida real.

O filme trata de negacionismo científico, mas trata também de como as elites do Planeta se relacionam com ele, e como a humanidade está afogada e submissa a um jogo de imagens, narrativas e ilusões.

Meryl Streep faz a caricatura da presidenta negacionista e oportunista.

A trama começa com a descoberta por dois astrônomos (Leonardo Di Caprio e Jennifer Lawrence) de um enorme cometa que vai colidir com a Terra em alguns meses e, certamente, vai causar a extinção todas as espécies. Mas a presidenta do EUA (Meryl Streep) está preocupada com as eleições e não quer dar notícias ruins, e escancara o negacionismo.

A história vai agregando figuras conhecidas do nosso cenário, como a cantora celebridade que faz com que a relação com seu namorado seja mais relevante do que o fim do mundo, ou os apresentadores de TV que tentam dar “leveza” à notícia do fim das espécies para não aborrecer ou espantar audiência.

O mais impressionante e escandalosamente real é o empresariado que vê uma “oportunidade” no apocalipse para gerar riqueza (para eles). E a relação com Elon Musk (dono da Tesla) ou Jeff Bezos (dono da Amazon) e suas viagens espaciais certamente não é mera coincidência.

Quem deseja um filme “cabeça” vai se decepcionar, porque a opção do diretor Adam McKay é uma metáfora da grosseria, da superficialidade, das aparências. Mas o curioso é que, mesmo os personagens caricatos e estereotipados, ainda parecem “suaves” diante de Trumps, Bolsonaros e Orbáns que são reais demais.

O filme tem passagens muito engraçadas, mas causa mais desconforto do que vontade de rir. As referências a um apocalipse iminente evocam nossa crise climática e anunciam a estratégia das elites capitalistas: simplesmente abandonar o Planeta depois de sugá-lo até a última gota.

Veja o trailer oficial

 

O cometa e o Natal

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Há cerca de dois mil anos, um cometa, segundo relatos da época, indicou o caminho de onde ocorreria o nascimento daquele que anunciaria um mundo novo, uma nova sociedade sem injustiça, sem desigualdade, sem opressão. O cosmo ao redor desse planeta, que é a nossa casa, dizia, da sua forma, qual o caminho para a transformação da nossa realidade. Esse homem, nascido duma família em fuga e amedrontada pela opressão social, anunciou um reino que não faria parte do mundo conhecido, do mundo onde vivem os oprimidos por um sistema que tritura vidas e corpos. Sua mensagem ecoou no tempo e até hoje enche de esperança o coração daqueles que sonham com esse reino que não é desse mundo. Os espíritas temos, na mensagem desse homem, a bússola que orienta nossas lutas, ações e reflexões, porque as propostas espíritas são integralmente pautadas pelo esperançar, por ele, semeado entre nós. E aqui não há um religiosismo piegas, barato, mas apenas a constatação de que o caminho indicado é o que nos movimenta e transformará as estruturas que sustentam esse sistema injusto e cruel, porque essa nossa esperança é capaz de mover as montanhas que se interpõem entre nosso sonho e sua realização. Que possamos ser a terra generosa onde as sementes dessa esperança dum mundo mais justo e fraterno possam brotar em plenitude naquilo que nos propomos a fazer. Espíritas, o “amai-vos” é o chamado para transformar o mundo. Essa é a tarefa histórica de todo aquele que se coloca como seguidor dessa profunda e bela mensagem de esperança. Feliz Natal.

Viver, morrer e renascer até a plenitude

Releituras kardecistas com Marcio Sales Saraiva

Aprendemos no espiritismo que o corpo humano é composto de três dimensões entrelaçadas: o corpo físico (matéria orgânica), o corpo perispiritual (outras escolas chamam de corpo energético ou corpo astral) e o espírito. A ligação entre o espírito e o corpo físico se dá pelo corpo perispiritual ou períspirito. Pense, apenas como alegoria, na casca do ovo como sendo seu corpo físico, na clara como o períspirito e na gema como espírito. Somos uma trindade regida pelo espírito imortal.

Em todos os elementos orgânicos do nosso planeta, encontramos o que o espiritismo chama de “princípio vital” ou “fluido vital”. É um tipo de energia que mantém a atividade desses corpos, incluindo o corpo perispiritual. Na ausência dessa energia, desse princípio vital, cessa a vida orgânica e os movimentos. Quando morremos ou quando morre um animal ou uma planta, o princípio vital dissipou-se na natureza, retornou ao “fluido cósmico universal”, retornou para a energia cósmica que sustenta a vida do universo.

Esse princípio vital é importante para compreendermos os passes espíritas, as curas espirituais, as questões alimentares, os fenômenos mediúnicos etc., mas concentro-me aqui na questão da morte.

A morte é, nos seres orgânicos, como nós, “exaustão dos órgãos” (questão 68 de “O livro dos espíritos”). Esgotou-se o princípio vital daquela maquinaria orgânica, exceção feita ao suicídio direto que faremos comentários em outra oportunidade. Isto é, morreu porque a máquina escangalhou, “a vida se esvai” (68-a). É quando o espírito (com seu corpo perispiritual) se desliga do corpo físico, da matéria, e “a matéria inerte se decompõe e vai formar novos seres; o princípio vital retorna à massa” (questão 70).

Kardec faz um comentário interessante, dentro do contexto da segunda metade do século XIX:

“Temos uma imagem mais exata da vida e da morte num aparelho elétrico. Esse aparelho recebe a eletricidade e a conserva em estado potencial, como todos os corpos da natureza. Os fenômenos elétricos, porém, não se manifestam enquanto o fluido não for posto em movimento por uma causa especial, e só então se poderá dizer que o aparelho está vivo. Cessando a causa da atividade, o fenômeno cessa: o aparelho volta ao estado de inércia. Os corpos orgânicos seriam, assim, como pilhas ou aparelhos elétricos nos quais a atividade do fluido produz o fenômeno da vida: a cessação dessa atividade ocasiona a morte.”

Acabou a pilha, acabou a luz, o corpo se apaga. É a morte em sua dimensão material. Um fenômeno absolutamente natural, mas que é carregado de simbolismos culturais, arquetípicos, religiosos e afetivos profundos.

Durante muito tempo, no mundo ocidental, duas interpretações prevaleceram diante da morte. A primeira, materialista e posterior à Idade Média, dizia que tudo se acaba com a morte do corpo físico, pois nada existe além disso. A outra, religiosa, dizia que a alma seria julgada e iria ao céu ou ao inferno (se for católico, ainda poderia apelar para o purgatório). Claro que, dentro do campo religioso cristão, há inúmeras questiúnculas teológicas que não quero me deter aqui.

O espiritismo traz uma concepção nova para o ocidente cristão, ainda que já velha conhecida dos orientais e até mesmo de algumas interpretações bíblicas dos primeiros séculos (que foram considerado heréticas). A morte do corpo físico não é o fim da vida, mas sua continuidade em outra dimensão e que, mais tarde, essa mesma e única vida iria encarnar-se em novo corpo para dar sequência ao seu progresso espiritual até a plenitude, a perfeita iluminação, a libertação da “roda de samsara” das reencarnações físicas, até ser “um com Cristo”.

A morte existe, para o espiritismo, como fenômeno orgânico, mas não como totalidade da vida, posto que a vida continua, o espírito abandona o exausto corpo material para depois retomar sua jornada na direção da divindade, do sistema, do infinito. E esse é apenas um dos sentidos em que o espiritismo traz uma visão de mundo consoladora e avessa ao desespero, ainda que respeitadora de toda a dor e luto, processos psicológicos fundamentais de qualquer “perda” ou separação, pois a alma precisa de tempo, sempre.

Como espíritas, choramos a morte como quem se despede de alguém que viajará por longo tempo e que, o mais provável, não poderá fazer contato direto conosco. É um processo doloroso, sem dúvidas, mas não é o fim da história. Ao conhecermos o espiritismo e compreendermos suas pesquisas, seus dados empíricos e suas evidências, educamo-nos diante da morte –como dizia Herculano Pires– e podemos até repetir com Francisco de Assis, “ó, irmã morte”, posto que o pânico perdeu o sentido. Sabemos que a vida continua.

Em outras palavras, o estudo sério do espiritismo nos faz entender aquilo que Jesus falou –e foi anotado pelo evangelista Lucas (20:38)– quando disse: “Deus não é Deus de mortos, mas sim de vivos, pois para Ele todos vivem”. Tudo é vida. Nada morre definitivamente, mas tudo se transforma, certamente. E o corpo físico na terra se transmutará e alimentará outras formas de vida, pois nada se perde, enquanto o espírito segue sua caminhada, por vezes tropeçando e caindo, mas recomeçando e avançando sempre.

A escolha para o STF por critério religioso é perigosa para a democracia

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A escolha recente de André Mendonça para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal deve disparar todos os alarmes de risco para a democracia e o estado de direito. Ele é o “terrivelmente evangélico” prometido pelo presidente à sua base e escolhido com a capitulação da maioria dos senadores. Não se trata de se opor aos evangélicos ou a qualquer religião, mas, sobretudo, de defender o estado laico que, democraticamente, respeite e preserve o direito de livre credo, de pluralidade cultural e religiosa. O estado laico não é um estado ateu e sim um estado que admite todos os deuses e crenças –e também a descrença–, que defende o direito de cada cidadão ter ou não suas crenças, devoções e práticas espirituais, que não se imiscui na prática religiosa por entendê-la como de âmbito exclusivamente privado e que não permite que a religião privada também se misture aos interesses coletivos. André Mendonça personifica muitas coisas ruins, além de ser considerado pífio como jurista. Sua passagem pela cadeira de Ministro da Justiça foi caracterizada pelo uso da Polícia Federal para perseguir jornalistas e quem criticava o governo. É evidentemente servil ao chefe do executivo e será protetor da família presidencial, que tem vários processos chegando ao STF. O pior de tudo, no entanto, é que, embora Mendonça tenha jurado aos senadores que vai seguir a Constituição, é evidente que seu fundamentalismo confessional vai orientar seus julgamentos. Quando ele afirma que sua indicação é “um passo para um homem, um salto para os evangélicos” não disfarça o que virá. Aliás, essa frase retrata um STF sendo vencido pelo fundamentalismo religioso. Além de defender a família miliciana, Mendonça vai atuar especialmente na pauta de costumes e na defesa das igrejas evangélicas neopentecostais e seus privilégios fiscais e institucionais. A posse e acesso de tais organizações a canais de comunicação terá em Mendonça um defensor. Mas de onde se pode esperar mais empenho do novo ministro é na chamada “pauta de costumes”, as questões permeadas pela moralidade conservadora. Demandas da comunidade LGBTQIA+ certamente serão rechaçadas; casamento entre pessoas do mesmo sexo terá um adversário; debates sobre política antidrogas e uso medicinal de algumas delas serão obstados; qualquer menção a aborto será tratada como heresia; e por aí adiante. No STF, Mendonça terá o compadrio de Kassio Nunes Marques, que já demonstrou como os indicados de Bolsonaro desprezam a lógica do direito para fazer valer seus valores e conceitos. Com certeza o país acaba de dar um passo atrás na democracia e se pode prever para breve muitos absurdos, injustiças e crueldades sendo defendidas em nome de Jesus.

São arrogantes os que sabem pouco: Denis, evocações e política

COLUNA – Feminismos com Elizabeth Hernandes (EàE-DF)

O estudo de ontem, do Grupo de Estudos Léon Denis, abordou o Capítulo VII do livro “Socialismo e espiritismo”, de Léon Denis.

Sinceridade, como sempre?

Já estava bem cansada desse livro e deixei pra ler nos últimos momentos antes da reunião porque “afff… já entendi a do Denis e ele não entendeu nada do materialismo histórico; e já cansei desse discurso socialismo-pra-quando-todos-fizerem-a-reforma-íntima”. Pois é, como todos que sabem pouco, às vezes sou bem arrogante e esse era o meu estado de espírito um pouco antes da reunião.

Mas no Capítulo VII, Monsieur Denis resolveu inovar (pelo menos para mim) e evocou espíritos para fazer uma análise de conjuntura política da França/Europa de 1924 e dar uma animada no livro que eu já estava achando muito chato…

Oi? Evocar? Espíritos falando de política?

O estudo rendeu e foi muito. Um camarada, no Nordeste, fez uma crítica ao livro “Desobsessão” (André Luiz/Chico Xavier). Um do Norte aproveitou a deixa e disse que a obra inteirinha de André Luiz não complementa é nada, porque contradiz a sistematização de Kardec e o que contradiz não pode ser complementar.

Quando se comentou o conteúdo das mensagens psicografadas, apresentadas nesse capítulo sete, destacou-se a reafirmação de uma premissa do espiritismo, a de que os espíritos somos nós e vice-versa. Os autores dos textos citados por Denis (que não os nominou) foram apresentados como “muitos dos quais participaram na direção política do último século”. E eles expressavam opiniões individualizadas à direita e à esquerda. Um deles se referia, inclusive, aos ingleses com francesa clareza citando “(…) o egoísmo e a lógica demasiado puritana inglesa”.

O estudo suscitou questionamentos acerca das vivências que nós, os espíritas que hoje se “congregam” à esquerda, vivemos nas casas espíritas tradicionais: por que, naquelas casas, a evocação é praticamente um tabu, uma proibição? Em que dia foi esquecido o nome original de “O livro dos médiuns” (“Le livre des médiums ou guide des médiums et des evocateurs”)? Quem será capaz de esquecer o “telefone toca de lá pra cá”? E mais: se nem as almas frequentadoras do centro espírita podem falar sobre política, como conversar sobre o assunto com os desencarnados?

E aqui, minha opinião: esse “não falar de política” é igualzinho ao dos grupos de família, do condomínio ou da rua. Fala-se e vive-se política o tempo todo nas casas espíritas, pelo simples fato de que onde há seres humanos trabalhando em grupo, há relações políticas. Na verdade, só não se pode falar de política se a fala for de encontro aos posicionamentos da FEB, historicamente declarada “apolítica” por ser religiosa, mas pragmaticamente alinhada à direita, (acho que desde sempre). Isso fica patente pelas posições assumidas por expoentes do movimento, conhecidos em âmbito nacional e até mundial; pela predominância de militares na direção das casas e pela filiação partidária de políticos que se assumem espíritas. Médiuns e palestrantes famosos ou políticos espíritas são, em sua maioria, também grandes expoentes da ideologia da direita. E defender sua ideologia é legítimo, desde que não as atribuam a “espíritos superiores” ou que não usem de sua fama para atacar quem pensa diferente. Também não é legítimo que, por causa da fama que têm, levem muitos a relacionar espiritismo com posturas de extrema-direita, ali juntinho com o fascismo e com o negacionismo científico.

No decorrer das discussões foi apresentada uma imagem bem ilustrativa da convivência entre encarnados e desencarnados segundo a qual somos todos participantes de uma “corrida de revezamento”, que conta com numerosa assistência, torcendo contra e a favor. Quando encarnados, estamos na pista portando o bastão e temos de fazer o nosso melhor, tanto no desempenho individual quanto coletivo (somos um time!), até chegar a vez de passá-lo ao próximo atleta. Depois de passar o bastão, vamos para a arquibancada torcer (ou não!) pelos que estão, mais uma vez, na pista, aonde voltaremos um dia, até “atingir a meta da competição”. Falar dessa “meta” é complexo e não foi abordado no estudo, mas, eu digo, de modo muito simplista, que está relacionada com o aperfeiçoamento moral individual e coletivo. Mas esse duplo aperfeiçoamento não é estanque e deve ocorrer simultaneamente. Ou seja, se se vai pra pista, tem de correr! A (invisível para a maioria) torcida não determina se você vai ganhar ou perder. A responsabilidade é do indivíduo, mas, principalmente, da equipe. (Força, humanidade terrena, vai que é sua!)

O fato é que eu, que “fui pra aula só pra não ficar com falta”, saí de lá como se deve sair de uma boa aula: pensando.

E, pela manhã, tomando minha dose de cafeína antes das doses de dopamina e endorfina da atividade física, lembrava do companheiro que destacara outra premissa do espiritismo: os espíritos não se circunscrevem a regiões determinados e estão por toda parte. Daí os espíritas não acreditarem que haja céu, purgatório ou inferno enquanto lugares destinados aos bons, maus e irrecuperáveis. E ainda como um dos rituais do amanhecer, procurei “O evangelho”, mas o livro estava no andar superior da casa e, talvez por preguiça, abri “O livro dos espíritos” que estava à mão. Fui direto na nota que acompanha a questão 783 (“O aperfeiçoamento da humanidade segue sempre uma marcha progressiva e lenta?”).

E aí vem a resposta desses espíritos que, efetivamente, estão em toda parte, inclusive no local do meu cafezinho: “Sendo o progresso uma condição da natureza humana, ninguém tem o poder de se opor a ele. É uma força viva que as más leis podem retardar mas não asfixiar. Quando essas leis se tornam incompatíveis com o progresso, ele [o progresso] as derruba, com todos os que as querem manter, e assim será até que o homem harmonize as suas leis com a justiça divina, que deseja o bem para todos, e não as leis feitas para o forte em prejuízo do fraco. (…) As revoluções morais, como as revoluções sociais, se infiltram pouco a pouco nas ideias, germinam ao longo dos séculos e depois explodem subitamente, fazendo ruir o edifício carcomido do passado, que não se encontra mais de acordo com as necessidades novas e as novas aspirações. (…) São a tempestade e o furacão que saneiam a atmosfera, depois de a haverem revolvido”.

E aqui volto ao assunto mediunidade e comunicação com os tais espíritos que estão por toda parte. Não era preguiça, era recado.

Numa outra fala da reunião de ontem, quando discutíamos sobre a possibilidade de evocar, como o fez Léon Denis, figuras políticas do passado, uma companheira falou sobre os grupos mediúnicos serem egrégoras que permitem a comunicação por afinidade e sintonia, outro fato muito claro para quem estudou um pouco de espiritismo. Ou seja, num centro espírita onde “não se deve falar de política” os espíritos não tratarão do assunto.

Eu creio que abrir, “por acaso”, um livro que eu não costumo abrir por acaso e cair justamente num texto que se relaciona com minhas reflexões do momento, não é, de modo algum, um acaso.

Durante muito tempo não me interessei pelo trabalho mediúnico. Achava que o “meu lugar” era na parte das ações sociais e convivia muito bem com o “fora da caridade não há salvação”. Dizem, no espiritismo tradicional, que as pessoas chegam pelo amor ou pela dor, esquecendo do grande contingente nem amor, nem dor, simplesmente questionador. Eu pertenço a essa terceira categoria. Quando “cheguei ao espiritismo”, sequer me atraía o fenômeno. Eu queria mesmo era testar e refutar hipóteses. (Não mudei muito, não.)

Mas por que aceitei os dogmas do “espiritismo-católico-do-Brasil” por tanto tempo?

Talvez a figura de um doce avô católico possa explicar, pelo menos em parte. Fui “evangelizada” por um idoso cego, ativo, sábio e católico. Muito antes de aprender a ler eu ouvia a narrativa das parábolas de Jesus, que sempre começava assim: “Betinha, quando Jesus andava no mundo…” E vinha a história. E depois da história, vinham minhas perguntas. E quando ele não tinha mais resposta, falava o que todas as religiões e seitas falam, em todos os tempos: não se pode penetrar os desígnios de Deus ou é obra do Espírito Santo, não há como explicar, apenas crer. Sei que isso ocorreu muito cedo porque quando entrei na escola formal, aos sete anos, já era completamente alfabetizada. E alfabetizada do tipo que lia livros com mais letras que figuras. Talvez o sucesso na primeira série explique um pouco da arrogância que busco combater todos os dias.

Por ter sido católica –mesmo tendo abandonado a igreja no meio de uma missa, após cansar das repetidas falas misóginas do padre, numa idade em que eu nem conhecia a palavra misoginia–, ainda assim, foi fácil me adaptar ao “espiritismo reencarnacionista” predominante no Brasil.

E, para finalizar, repito o que disse no estudo (ao qual não queria ir): não pretendo abandonar a busca de aprendizado e da prática dos preceitos cristãos e nem da sistematização kardequiana. Mas o meu caminho já não precisa passar pelos dogmas da FEB.

E aproveito para fazer as pazes com Léon Denis que, na parte final deste capítulo, afirma: “Sou pela democracia, que, unicamente, parece-me capaz de assegurar a pacificação e a aproximação entre os povos. Os estados despóticos e a política dos soberanos são naturalmente levados a usar da força para aumentar seu poder, enquanto que as democracias, onde o conjunto dos cidadãos eleitos deve-se pronunciar sobre as questões graves, são pouco favoráveis à guerra, a qual, longe de relacionar, arruína os povos. Por isso, em nossa época, buscam-se criar instituições bastante sábias e bastante poderosas para regular, pela arbitragem, os conflitos entre as nações”.

E finalizo lembrando uma premissa da psicoterapia: o que te incomoda, no outro, é o que há em ti. Denis, mano, sigamos!

Uma revolução espírita

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O espiritismo traz consigo como ponto basilar a proposta da transformação da realidade concreta na qual mulheres e homens vivem encarnados. Não é possível, portanto, falar-se de mudança interior ou reforma íntima sem que haja a concomitante mudança da sociedade humana. A tão propagada “reforma íntima” nada mais é que discurso vazio se não acompanhada do movimento em direção a uma nova realidade, a uma nova estrutura social, a um novo “reino”, que não é desse mundo desigual, injusto, desumano e opressor.

No centro de toda a práxis de Jesus está exatamente o anúncio do novo reino, duma nova organização da sociedade na qual mulheres e homens não mais sofreriam as opressões várias a que estão submetidos e não mais estariam vivendo sob a insegurança material cotidiana de suas vidas, experimentando dificuldades extremas numa luta para apenas sobreviver.

Portanto, o espiritismo, como proposta revisitada da práxis de Jesus, deve ter como base de ação e reflexão o processo de transformação da sociedade. Toda prática e todo estudo espíritas devem-se pautar na luta por uma sociedade mais justa e fraterna, na busca da superação das estruturas sociais mantenedoras das condições opressivas que reproduzem a miséria, a fome, o desemprego, a moradia precária, as faltas de saúde e educação, e impedem mulheres e homens de viverem com dignidade e de serem sujeitos plenos de suas vidas e de suas possibilidades.

A ação social assistencialista –a sopa na rua, o farnel mensal, o pequeno hospital–, apesar de cumprir determinado papel emergencial, e apenas esse, não é uma ação que transforma a sociedade. Ao contrário, sustenta e reproduz o que há de mais cruel e indigno entre os indivíduos: a humilhação e a degradação humanas. Aliás, sobre isso, é sempre bom lembrar a questão 888 de “O livro dos espíritos”:

888. Que se deve pensar da esmola?

– ‘Condenando-se a pedir esmola, o homem se degrada física e moralmente: embrutece-se. Uma sociedade que se baseie na Lei de Deus e na justiça deve prover à vida do fraco, sem que haja para ele humilhação. Deve assegurar a existência dos que não podem trabalhar, sem lhes deixar a vida à mercê do acaso e da boa vontade de alguns.’”

Depreende-se disso que a ação assistencialista deve ser complementar a uma ação-reflexão mais profunda e mais transformadora, ou seja, sem que haja uma proposta maior de mudança objetiva da realidade, toda ação assistencialista não passa de diletantismo da classe média bem alimentada e bem formada, que mantém a condição de abandono social e econômico daqueles que se submetem a essa degradação física e moral.

Nesse ponto, vale destacar a resposta à questão 930, de “O livro dos espíritos”:

930. […]

– ‘Numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo ninguém deve morrer de fome.’”

E, para que ninguém morra de fome, o simples assistencialismo não será capaz de garantir a proposta espírita que grita para todos a partir das obras kardecistas.

Essa gente que é a parte mais numerosa das sociedades periféricas do sistema econômico mundial, como o é a sociedade brasileira, não está “à margem de” ou “fora de”, como ensina Paulo Freire em seus escritos fundamentais; essa gente não está “marginalizada” por conta de sua pobreza, de sua fome, de seu analfabetismo, de seu desespero; essa gente está “no interior de”, numa estrutura social opressora que é diretamente responsável pelo estado em que essa gente se encontra.

Dessa forma, de nada adiantará, para aqueles que sonham com uma sociedade mais justa e humana, o simples atendimento às necessidades materiais mais básicas ou mesmo a inclusão de parcela dessa gente dentro da mesma estrutura que marginaliza, oprime e degrada; ou seja, numa linguagem simplória, seria como enxugar gelo.

Voltando a Paulo Freire, ele afirma que é preciso reconhecer a existência de uma realidade em relação à qual os oprimidos estão marginalizados, e “não somente no espaço físico, mas realidades históricas, sociais, culturais e econômicas; ou seja a dimensão estrutural da realidade”.

Esse ponto é importante para demarcar com exatidão aquilo que Freire considera como a estrutura social responsável pela condição marginal daqueles que vivem em situação sub-humana de completo abandono: espaço, tempo, sociedade, cultura e economia.

Como não há nenhuma possibilidade de mudança da condição opressiva da sociedade, mantidas as mesmas estruturas que a sustentam, a única forma de se viver numa sociedade pautada pela “lei do Cristo” na qual “ninguém deve morrer de fome”, como propõem os espíritos em resposta a Kardec, é, segundo Freire e em magnífica conclusão, “uma autêntica transformação da estrutura desumanizante” da sociedade. Portanto, não há outro caminho senão aquele que se propõe a transformar de forma radical a estrutura social, cultural e econômica que oprime, desumaniza e degrada a vida de mulheres e homens.

E essa deve ser a principal pauta da práxis de toda instituição espírita, e também de seus membros, na sua atuação cotidiana, porque, segundo ainda “O livro dos espíritos”, na questão 573:

573. Em que consiste a missão dos espíritos encarnados?

Em instruir os homens, em lhes auxiliar o progresso; em lhes melhorar as instituições, por meios diretos e materiais. […]’”

Como se pode apreender das obras espíritas e das reflexões de Paulo Freire, toda práxis que pretenda transformar a realidade deve ter como base fundamental de ação a educação libertadora do povo oprimido. É preciso “instruir os homens” e auxiliá-los no seu processo de autoconscientização e autolibertação por meio de práticas de educação popular, como o foram as experiências exitosas dos círculos de cultura freireanos e das comunidades eclesiais de base da igreja católica.

É preciso desconstruir a ideia de que a caridade assistencialista é o motor da evolução espiritual, essa construção meritocrática que passa pela chamada “reforma íntima”. A evolução espiritual se relaciona com desenvolvimento da consciência, com a percepção de si mesmo perante a realidade, com o desenvolvimento cognitivo e do sentido da existência, que é justamente a construção da ideia do “reino” em cada um. Pois, como ensina Paulo em famosa carta, “ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse a caridade, isso nada me adiantaria”, e a verdadeira caridade é aquela que “não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade”, e, portanto, luta pela transformação desse mundo injusto e desumano.

Espíritas, essa é a tarefa histórica a que todos foram chamados. Sem esse engajamento nas propostas dum novo reino de justiça e amor, a ação espírita é inócua e reprodutora das condições de opressão. Só o engajamento na luta pela completa transformação das estruturas sociais, que condenam milhões de vidas ao desespero, à fome, ao desemprego e à indignidade, justifica a adesão às propostas espíritas. Os espíritas devem entender que sua ação-reflexão tem que ser necessariamente transformadora porque as propostas espíritas são revolucionárias, tal qual foi revolucionário o anúncio dum reino que não é desse mundo de caos e opressão.

O Espíritas à Esquerda entende a práxis espírita dessa forma e convida a todas e todos que queiram fazer parte desse projeto revolucionário que pretende, dentro dos seus limites de tamanho e atuação, contribuir para a transformação da sociedade e, em particular, do movimento espírita. O EàE, amparado pelos ensinos de Jesus e dos espíritos que auxiliaram Kardec, inspirado pela beleza das propostas de conscientização e libertação de Paulo Freire e da Teologia da Libertação e motivado pelo chamamento à ação revolucionária e transformadora, propõe justamente uma práxis que inclui estudos de obras sobre análise da realidade e sobre educação popular e a implantação de núcleos espíritas populares para atuarem como auxiliares nesse processo de autolibertação do povo oprimido.

O espiritismo é revolucionário. Faça parte desse projeto.

Espiritismo e umbanda: caridade, amor e libertação

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José Francisco da Conceição – Esmeraldas (MG)

É necessário que tudo se destrua, para renascer e se regenerar; porque isso a que chamais destruição não é mais que a transformação, cujo objetivo é a renovação e o melhoramento dos seres vivos. (Allan Kardec, O livro dos espíritos, questão 728)

Na umbanda e no espiritismo, a luta de classes é ideologicamente camuflada por discursos religiosos de suposto universalismo, coisas do tipo “somos todos filhos de Deus”, “a raça humana é uma só” ou “Zambi é pai de todos” e que sendo nós almas reencarnadas em processo evolutivo, automaticamente e mecanicamente, estamos no “mesmo barco”. Claro que somos todos filhos de Deus-Zambi, no entanto, o atravessamento do conflito social, as divergências de interesses e visões de mundo são nítidas para o observador mais atento, menos ingênuo. Em outras palavras, não estamos “todos no mesmo barco”, pois tem muita gente se afogando e sem boia.

umbanda soninha villDe fato, nas instituições espíritas e umbandistas, os que defendem os interesses das classes subalternizadas confrontam-se com os que defendem os interesses das classes dominantes. Há opressores e oprimidos que estão lado a lado nos centros e terreiros, mas em campos opostos na vida social e na maneira de interpretar o mundo. E isso se manifesta de diversas formas, mas para dar um exemplo, pense nas diferentes concepções de espiritualidade.

Na umbanda, por exemplo, as camadas médias e altas (muitos são profissionais liberais, militares, funcionários públicos, empresários etc.) tentam “expurgar” todas as influências negro-ameríndias, populares e afro-católicas, em nome de um universalismo puro e higiênico que é fundamentalmente branco e eurocêntrico (com ideias oriundas do kardecismo, esoterismo e teosofia).

Por outro lado, os negros, as mulheres pobres, pessoas LGBTQIA+ e a maioria de trabalhadores, muitos precarizados –as classes subalternizadas–, estão em outra sintonia nestes mesmos terreiros, pois permanecem na trincheira por uma espiritualidade ancestral, simples, de pés no chão e libertária. Estes querem a umbanda feita com velas, ervas e banhos, com cachimbo e defumador, instrumentos baratos e de grande poder para quem tem fé. Assim é a religião dos oprimidos em luta por uma vida digna e não aquela reprodução das crenças, valores e privilégios dos históricos opressores.

O mesmo acontece no campo espírita kardequiano. De um lado, é possível ver a classe média e alta, com boa escolaridade, majoritariamente branca e reacionária, defensora de uma sociedade hierarquizada e de governos autoritários. Para estas, os centros espíritas não são lugares para negros, pobres ou gays. No máximo, estes podem participar apenas como instrumentos do assistencialismo e da piedade dos dirigentes, isso quando não são vistos como obsidiados.

Este tipo de kardecista –como são conhecidos os espíritas– tem horror ao socialismo e defende uma concepção alienadora e quietista de religião. Querem uma espiritualidade apassivadora, descontextualizada e de positividade tóxica e cega diante dos problemas concretos do mundo. São estes espíritas conservadores que, na sua maioria, votaram em Bolsonaro, em 2018, elegendo o neofascismo.

De outro lado, nestes centros espíritas, também há uma resistência importante e que cresce com as redes sociais. Podemos perceber setores mais conscientes das classes trabalhadoras e médias, além de jovens estudantes universitários, que frequentam as casas kardequianas, mas consideram que o espiritismo é uma mensagem de esperança e luta, de igualdade e fé raciocinada. Para estes, o espiritismo não é alienação, mas fonte de consolação e coragem para quem está na luta por um mundo melhor para todos, para os que defendem autêntica libertação, para quem se engaja pelo progresso social. Estes querem o fim da pobreza e de uma desigualdade estúpida, iníqua e abissal.

Tanto nos centros espíritas –de matriz kardequiana– como nos terreiros de umbanda, é importante percebermos essas diferenças sociais e de visão de mundo. Porque sendo de classes sociais diferentes é plausível que tenhamos interesses, objetivos e sonhos distintos, quando não são capturadas e “formatadas” pela ideologia das classes dominantes.

Claro que estou fazendo aqui uma análise social tipológica e classista, consciente de que há exceções aqui e acolá. Há, por exemplos, brancos kardecistas de classe média que são progressistas como há também negros umbandistas reacionários e defensores da ditadura empresarial-militar. Em geral, estas exceções não anulam os pressupostos generalistas de uma análise estrutural. Dito isso, concluo o seguinte.

É preciso notar quem está ao lado das lutas do povo brasileiro por justiça e igualdade, tecendo uma espiritualidade contra-hegemônica, e quem defende a manutenção da ordem do capital, do conservadorismo moral, do conformismo, dos preconceitos e das velhas hierarquias sociais.

É preciso estar atento para aquelas e aqueles que, dentro dos centros espíritas e dos terreiros umbandistas, representam os interesses da casa-grande, pois chegou o tempo de nos libertarmos das senzalas que nos impõem ainda hoje.

O Brasil precisa mudar, mas as casas espíritas e os terreiros umbandistas também, pois estes são atravessados pelos mesmos conflitos estruturais que encontramos na sociedade brasileira, o que inclui a luta de classes, mas também o machismo, o sexismo, o racismo, a LGBTfobia. Como bem disse Allan Kardec, “o progresso social ainda deixa muito a desejar” (O livro dos espíritos, comentário da questão 760).

É preciso unir espíritas e umbandistas, além de outros setores religiosos contra-hegemônicos, para coletivamente nos organizarmos e lutarmos por uma sociedade justa e fraterna, igualitária e realmente democrática. Conscientes de que não há caridade maior do que nos engajarmos coletivamente para melhorarmos a vida de milhões de pessoas neste país, quiçá neste lindo Planeta Azul.

Não é este o sentido profundo e grandioso da caridade, tão pregada pelo judeu-cristianismo –mas também por outros saberes religiosos?

Não é esta caridade que foi reafirmada como bússola redentora no século XIX por Allan Kardec –“Fora da caridade não há salvação”– e no século XX, na umbanda, pelo Caboclo das 7 Encruzilhadas –“Umbanda é a manifestação do espírito para a prática da caridade”?

Como nos diz Conceição Evaristo, “quero contagiar de esperanças outras bocas”1. Então, roguemos à Divindade e aos espíritos de luz que nos derramem coragem para contagiarmos de esperanças tantas bocas neste Brasil, para juntos lutarmos e criarmos este novo mundo onde não haverá mais espaço para o machismo, o racismo, a LGBTfobia, a exploração do ser humano, a destruição ambiental, a intolerância religiosa e a dominação de classe burguesa do grande capital.

E para que a utopia se torne realidade, comecemos esse “bom combate”, como dizia o apóstolo Paulo, hoje, dentro das nossas casas espíritas, em nossos terreiros, no nosso bairro, em nossa cidade, na nossa amada pátria brasileira, pois, como já cantava Beto Guedes, “vamos precisar de todo mundo para banir do mundo a opressão” e “um mais um é sempre mais que dois”.

Que assim seja!

Axé!

Saravá!

Namastê!

1 “Olhos d’água”. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016.

Allan Kardec: defensor da Bíblia e das tradições sagradas do passado

COLUNA – Releituras Kardecistas – com Marcio Sales Saraiva

Pode parecer estranho para alguns, mas o fundador do espiritismo nunca fez um ataque ao conteúdo dos livros da Bíblia judaico-cristã. Há diversas passagens em que ele faz reflexões respeitosas sobre as Escrituras. Sendo assim, qual é a divergência entre o kardecismo e os que julgam seguir rigorosamente a Bíblia?
Foto: Timothy Eberly/Unsplash
Ao se referir ao mito ou alegoria de Adão (questão 51), confrontado com as explicações dos espíritos sobre um longo passado de presença humana na Terra, Kardec comenta na questão 59: “A objeção que se pode fazer a essa teoria [de que o ser humano é muito anterior ao mito adâmico] é a de estar em contradição com os textos dos livros sagrados. Mas um exame sério nos leva a reconhecer que essa contradição é mais aparente que real, resultante da interpretação dada a passagens que, em geral, só possuíam sentido alegórico.” A evolução das espécies não está em desacordo com a Bíblia, desde que possamos fazer uma hermenêutica séria das Escrituras, compreendendo seu sentido poético, alegórico e simbólico, ao invés de fazermos como os fundamentalistas que ficam presos na letra. O apóstolo Paulo já ensinava que “a letra mata, mas o Espírito vivifica” (2 Coríntios 3:6, Bíblia NVI). O comentário de Herculano Pires vai na mesma direção do que estamos dizendo aqui. Diz o filósofo espírita que “os textos sagrados das grandes religiões, como a Bíblia e os Vedas [hinduísmo], os sistemas de antigos filósofos, as doutrinas de velhas ordens ocultas ou esotéricas, todos encerram grandes verdades, nas suas contradições aparentes.” Assim sendo, quando os espíritas encontram erros ou contradições na Bíblia, como a criação em seis dias, isso quer dizer que “a Bíblia é um erro? Não; mas que os homens se enganaram na sua interpretação”, dirá Kardec. Em outras palavras, o problema com a Bíblia e outros textos considerados sagrados ou revelações divinas é sua idolatria cega que não permite uma hermenêutica alegórica, poética e simbólica, capaz de retirar das aparentes palavras de contradição o mel da sabedoria eterna oculta nas entrelinhas. Encerro este artigo com um belíssimo e profundo comentário de Allan Kardec que se encontra na questão 628 de “O livro dos espíritos”, farol da filosofia espírita e de sua concepção macroecumênica. Nos diz o grande professor: “Não há, entretanto, para o homem de estudo, nenhum antigo sistema filosófico, nenhuma tradição, nenhuma religião a negligenciar, porque todos encerram os germens de grandes verdades, que embora pareçam contraditórias entre si, espalhadas que se acham entre acessórios sem fundamento, são hoje muito fáceis de coordenar, graças à chave que vos dá o espiritismo de uma infinidade de coisas que até aqui vos pareciam sem razão, e cuja realidade vos é agora demonstrada de maneira irrecusável. Não deixeis de tirar temas de estudo desses materiais. São eles muito ricos e podem contribuir poderosamente para a vossa instrução.” Dito de outra maneira, Kardec nos explica o espiritismo como uma “chave de interpretação”, uma bússola hermenêutica, que poderá nos ajudar a ler e entender a filosofia grega, medieval e moderna, os diversos sistemas religiosos, as diversas concepções de mundo das mais variadas tradições culturais. Porque não sendo o espírita uma pessoa fanática ou fundamentalista, ele estará aberto para descobrir, com as chaves fornecidas pelo próprio kardecismo, as “grandes verdades” que se encontram espalhadas pelo mundo, pelas religiões e pelas filosofias. Assim sendo, o espiritismo respeita a Bíblia —bem como todos os livros considerados sagrados, como a Torá, Alcorão etc.— e nela buscará as grandes verdades escondidas e mortas sob a letra fria das interpretações literais e empobrecedoras. Isso quer dizer que o espiritismo sempre esteve na vanguarda do respeito ao pluralismo religioso e na busca sincera de uma convergência onde o essencial prevaleça sobre o que é periférico nas grandes filosofias e religiões da humanidade.