Releituras Kardecistas com Marcio Sales Saraiva
A despeito de algumas passagens racistas em Allan Kardec —encontradas em dois textos (“Frenologia espírita e a perfectibilidade da raça negra” e o outro “Teoria da beleza”), um na “Revista Espírita de 1862” e outro inserido no livro “Obras póstumas”, ou seja, publicado sem o consentimento dele—, o fato positivo é que o movimento espírita sempre foi abolicionista, portanto, contrário à escravidão. No Brasil e em diversas partes do mundo, muitas lideranças políticas que combatiam o escravismo eram espíritas ou espiritualistas, isso no século XIX, mas isso não queria dizer que os espíritas compreendiam que negros e índios fossem almas “do mesmo nível” dos brancos.

Concedo que, até certo ponto, é compreensível sociologicamente que Allan Kardec, vivendo sob a hegemonia de teorias racistas do século XIX, caísse nessa esparrela, mas como ficam os espíritas de hoje? Kardec foi racista, é um fato, mas o movimento espírita do século XXI poderá se libertar disso?
Em “O livro dos espíritos” compreendemos que existe diversidade de raças (este era o conceito da época, hoje falamos em etnias) e que esta variedade também se dá no campo físico e moral. É aqui que encontramos a armadilha por onde certo tipo de racismo encontrou campo para afirmar que umas raças são mais belas (questão física) ou mais adiantadas civilizacionalmente (questão moral) comparado com outras. Hoje sabemos que tal concepção hierarquizadora é absolutamente equivocada do ponto de vista científico e fundamentalmente racista, posto que sempre colocava os brancos como raça superior e exemplo de civilização. Se o espiritismo caminha de acordo com a ciência —foi isso que pediu Kardec— não fará dano algum abandonar tais visões ultrapassadas e racistas, mas nem tudo deve ser jogado fora nos textos kardequianos sobre questões raciais. Sabe por quê?
Notem que na questão 52, os bons espíritos falam que a diversidade étnica é fruto do clima (quente ou frio, alterando a pigmentação da pele), da vida e dos costumes (cultura, diríamos hoje). Nisso não há nada de incorreto, além do mais, os espíritos afirmam que “o homem” (seriam os hominídeos ou os sapiens?) surgiu em diversos pontos e épocas do planeta Terra gerando fenótipos distintos (questão 53).
A evolução dos sapiens é um tema ainda cheio de lacunas, ainda que os achados mais antigos estejam na África Oriental, corroborando a hipótese de origem única; há também teorias no campo da antropologia biológica e da arqueologia que apontam para essa diversidade de origens (hipótese multirregional), contrariando o difusionismo cultural de matriz única.
A resposta dada pelos espíritos poderá concordar com uma ou outra hipótese, dependendo de como interpretamos a expressão “os homens”: os espíritos estão falando dos hominídeos (como Homo erectus na Ásia e de Homo neanderthalensis na Europa), de todos que são “homo” ou somente do Homo sapiens, o mais avançado e que derrotou as outras espécies humanas. Deixarei para outro momento o aprofundamento sobre as nossas origens.
O ponto fundamental para a derrubada dos muros racistas está na questão 53-a. Nela, os espíritos informam a Allan Kardec que não existem espécies distintas de seres humanos, pois todos “são da mesma família”, os sapiens é o que supomos. E que esta variedade aparente —negros, indígenas, asiáticos, brancos—, de frutos da mesma árvore, nos diz que todos os seres humanos “são irmãos em Deus”, todos são animados por um espírito e todos estão destinados à plenitude/perfeição —“tendem para o mesmo fim”, como diz na questão 54. Assim sendo, o racismo cai por terra. Qualquer espírito poderá encarnar-se como branco ou negro, asiático ou indígena, ao longo do seu ciclo de reencarnações. Não existe raça superior ou inferior. Diz-nos a questão 803 de “O livro dos espíritos”:
“Todos os seres humanos são iguais perante Deus? Sim, todos tendem para o mesmo fim e Deus fez as suas leis para todos/as. Dizeis frequentemente: ‘O Sol brilha para todos’, e com isso dizeis uma verdade maior e mais geral do que pensais.”
Foi justamente este reconhecimento espírita da unidade da “raça humana”, os sapiens, —a despeito das diferenças aparentes— que embalou diversos seguidores da codificação de Allan Kardec a somar-se nos movimentos abolicionistas e, ainda hoje, depois que já sabemos que geneticamente somos iguais, inspiram os espíritas a se comprometerem no combate ao racismo que deverá começar em si mesmos, dentro de suas famílias, no interior das próprias casas espíritas (muitas delas dirigidas sempre por brancos) e nas estruturas de visibilidade do movimento espírita, pois é no mínimo questionável que entre as lideranças de maior destaque tenhamos somente o médium José Raul Teixeira como negro e nenhuma pessoa de origem indígena. Será que há poucos negros no espiritismo?
Os dados do IBGE (2010) apontam que 68,7% dos kardecistas são brancos, mas isso não justifica o apagamento de lideranças negras e de comunicações mediúnicas de espíritos ainda ligados ao povo negro. Faz-se necessário meditar na quantidade de psicografias de mentores e mentoras branquíssimas (com muitos livros lançados) e na raridade de espíritos com vestimenta perispiritual negra ou indígena (vermelha) ocupando este papel de guias espirituais dos centros kardecistas brasileiros ou publicando livros inspiradores.
Por fim, é importante que o espiritismo —lideranças, federativas, centros etc.—ouça e dialogue com o movimento negro organizado e com as tradições ancestrais negras e indígenas (incluindo a umbanda, o candomblé, o santo daime, a pajelança etc.), pois há muito que aprender e, certamente, ao fazer isso, os espíritas poderão despertar de seu sono francês/branco/europeu e saber o quanto (ainda!) são atravessados por concepções racistas e hierarquizadoras.
É hora de repensar todas essas questões e refazer caminhos, pois já estamos no século XXI e não na Europa do século XIX. Kardec é fundamental e necessário, mas não há no espiritismo o dogma da infalibilidade papal e caminhar com a ciência exige mente aberta, pesquisa continua e atualização. O espiritismo kardecista precisa abraçar com paixão a luta antirracista ou será ultrapassado por ela.