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Só os homens fazem guerra

Gastão Cassel, EaE Santa Catarina

No momento em que se lê esse pequeno texto há, pelo menos, oito grandes conflitos armados no mundo. Guerras! Veem-se diariamente nos noticiários horripilantes imagens dos combates Rússia-Ucrânia e Israel-Gaza, mas há sangue escorrendo também na Somália, Sudão, Mianmar, Nigéria, Síria e Iêmen. Não importa se são conflitos entre nações ou lutas internas pelo poder, ou ainda massacres desproporcionais que podem ser chamados genocídios, são todos lamentáveis, desumanos e destruidores. Quando Allan Kardec perguntou aos espíritos “Que é que impele o homem à guerra?” (questão 742 de “O livro dos espíritos”) teve como resposta:

“Predominância da natureza animal sobre a natureza espiritual e transbordamento das paixões. No estado de barbaria, os povos um só direito conhecem –o do mais forte. Por isso é que, para tais povos, o de guerra é um estado normal. À medida que o homem progride, menos frequente se torna a guerra, porque ele lhe evita as causas, fazendo-a com humanidade, quando a sente necessária.”[1]

A resposta dos espíritos não satisfaz. É baseada num conceito presente no século XIX, quando Kardec estruturou o espiritismo. Naquela época o conceito de “evolução” estava em voga. E a resposta considera que há povos em estado de barbárie e outros mais evoluídos. E podemos deduzir que a vocação bélica seria característica apenas dos menos evoluídos. A história recente, no entanto, mostra que não tem sido assim. Justamente as nações “mais desenvolvidas”, produtoras de tecnologia e conhecimento são as que estiveram à frente dos mais sanguinários conflitos. Há ainda uma contradição mais dura na obra citada. Quando apresenta a Lei da Destruição, pressupõe-se que as guerras podem produzir o advento da liberdade e do progresso.
          1. Que objetivou a Providência, tornando necessária a guerra?

“A liberdade e o progresso.”

          1. a) – Desde que a guerra deve ter por efeito produzir o advento da liberdade, como pode frequentemente ter por objetivo e resultado a escravização?

“Escravização temporária, para esmagar os povos, a fim de fazê-los progredir mais depressa.”[2]

Talvez os espíritos não tenham conseguido ver o quanto os humanos podem ser ardilosos e cruéis e que absolutamente as guerras na Terra não tratam, e nunca trataram, de ser sobre liberdade e escravidão ou atraso e progresso. Sempre foi poder! Sempre foi a disputa por territórios, riquezas e valores. As guerras sempre foram espelho das desigualdades criadas pelo homem sobre o planeta. Os conflitos são engrenagens da máquina capitalista de criar desigualdades. Nunca são os povos que deflagram as guerras, mas as elites, os poderosos das sociedades, os governantes, jamais as populações e o povo trabalhador. Como disse o pensador francês Jean-Paul Sartre “quando os ricos fazem guerra são os pobres que morrem”.[3] Também não é aceitável atribuir as guerras a iniciativas individuais de governantes dominados por pensamentos perversos, visto que mesmos estes têm lastros políticos e sociais que sustentam suas fúrias e agressões em escala de massa. Em outras palavras não se pode acreditar que apenas a mente de Hitler engendrou os horrores da II Grande Guerra, uma vez que ele contou com colaboradores, aliados internacionais e desenvolvedores intelectuais de seus conceitos. Não era um conflito do mal contra o bem, mas prioritariamente enfrentamento entre interesses políticos e comerciais. As guerras, sejam em que contextos aconteçam, expõem o que há de pior na humanidade. A própria negação da humanidade como atitude. Seja num campo de batalha ou na frieza de um escritório de onde se aciona um drone que vai matar a milhares de quilômetros, o que se vê é a negação da natureza humana que deveria ser fraterna e solidária. Há que se considerar que boa parte das guerras são desenhadas em nome de Deus. Há na história muitos conflitos entre religiões, desde as Cruzadas do século VI até hoje. Muita gente matou e mata em nome de Deus.  Mas definitivamente as guerras não têm nada de Deus. Nada de bom elas podem construir, já que a destruição é o seu fundamento. Da morte não pode florescer progresso e evolução. As guerras são coisas dos homens e só um entendimento de que a paz, a prosperidade, a colaboração, a solidariedade e a igualdade são as bases do Reino de Deus a ser construído aqui na Terra pode apontar para o progresso. No mundo de hoje, repleto de polarizações e desigualdades, podem-se encontrar justificativas para as guerras e até “torcer” por um dos lados. Mas independente das razões objetivas de cada lado, antes de ser a favor ou contra um dos lados, há que ser contra a guerra como método e atitude.  Mas há que se destacar que falamos aqui apenas dos conflitos formalmente considerados como guerras. Há também as guerras não declaradas por inúmeras motivações, mas que geralmente têm na sua raiz as desigualdades espalhadas pelo capitalismo e os abismos sociais e culturais que elas fomentam. Em 1937 o pintor Pablo Picasso expôs pela primeira vez a obra Guernica, que retratava o horror vivido pela cidade que deu nome à obra após ser bombardeada durante a Guerra Civil Espanhola. Ao visitar a exposição, um oficial da SS alemã, responsável pelo bombardeio, teria perguntado a Picasso: “Você fez isso?”, ao que o gênio da pintura respondeu: “Não, você!”. Deus não tem nada a ver com as guerras dos homens.

[1]    KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. 87ª edição. Rio de Janeiro. Federação Espírita Brasileira, 2006. p 395.

[2]    IDEM

[3]    A frase é frequentemente atribuída a Jean-Paul Sartre, mas não parece ser uma citação direta de uma de suas obras conhecidas. A ideia, no entanto, reflete o pensamento existencialista de Sartre sobre a responsabilidade individual e as consequências sociais das ações.

Considerações feministas sobre aborto e espiritismo

Alice Pereira – Membra do coletivo EàE-RJ

Divaldo Franco publicou esses dias um artigo intitulado “Crime legal”[1], sobre a recente legalização do aborto na Argentina.

O título, claro, já julga e condena. Mas afinal, é “crime”?

Chegou o momento do debate que muitos espíritas temem, mas já temos maturidade para discussão.

A Argentina é o segundo país na América Latina a legalizar a interrupção voluntária da gravidez, sendo que o primeiro foi o Uruguai. Em diversos países da Europa, bem como na América do Norte e na China, esse processo já é legalizado. Nos EUA desde 1973, após o julgamento do caso Roe contra Wade[2] em que os juízes, pasmem, acataram o argumento de que a proibição era inconstitucional por violar o direito à privacidade. Aliás, a primeira clínica de aborto em Nova Iorque, por exemplo, foi coordenada por pastores e rabinos (fica aí a curiosidade: religião nem sempre condena a prática). Na França e na Inglaterra, o aborto fora legalizado mais ou menos na mesma época, fruto de lutas que vinham sendo travadas há tempos.

Todavia, o aborto não é advento do século XX. É uma prática tão antiga quanto a gravidez. Em “Calibã e a bruxa”[3], Silvia Federici demonstra que a inquisição e a caça às bruxas foram parcialmente motivadas pela Intenção de solapar o controle das mulheres sobre os próprios corpos. Perseguiu curandeiras, parteiras e mulheres mais velhas e pobres que detinham conhecimento sobre contracepção, gestação e parto. Prostituição também foi criminalizada nesse período. E nessa época várias leis foram criadas para regulamentar questões relativas à procriação, além de punir as mulheres que buscassem assistência para lidar com questões sexuais, afetivas e reprodutivas, o que alienou as mulheres de conhecimento que detinham. Semeou também a desconfiança entre elas, alienando umas das outras. Foi por volta do século XV que a Igreja Católica associou desejo sexual ao demônio, e como as bruxas supostamente adoravam o demônio, eram vistas luxuriosas. Elas levariam a danação à humanidade. Perseguição, tortura e morte de mulheres foram justificadas a partir dessas concepções. Tudo isso foi fundamental para o surgimento do patriarcado capitalista moderno.

A argumentação de Michel Foucault[4] é que a sexualidade não seria de fato reprimida, mas sim entra numa espiral de discursos científicos, políticos e jurídicos visando à normalização dos comportamentos sexuais. As leis proibindo o aborto fazem parte do mesmo arcabouço do controle de natalidade sob o guarda-chuva do que chamamos biopolítica, ou seja, as práticas e discursos que visam à gestão da vida e da população.

Às vezes biopolítica se mistura com discurso religioso e patriarcal para validar ou invalidar certos comportamentos sexuais, especialmente o controle sobre o corpo feminino, mesmo que hoje estejamos em uma sociedade supostamente mais secular e dotada de conhecimento científico e tecnológico para entender os processos bioquímicos da reprodução.

Voltando aqui à contemporaneidade, vemos como os discursos e posicionamentos ainda são permeados pelas crenças e valores religiosos, muitas vezes misóginos e moralistas.

No Brasil, a interrupção voluntária da gravidez é permitida em caso de risco à vida da mãe, estupro e anencefalia. Para outros casos, bem… Se você é pobre, vai fazer em algum lugar sujo, com profissionais irresponsáveis e sem nenhuma assistência jurídica ou psicológica. Ou então faz chá, usa um cabide, ou tenta outro método perigoso e desesperado. Se você tiver dinheiro, vai numa clínica um pouco melhor, mas acaba sendo algo vergonhoso. Nunca é uma decisão fácil, tem muita coisa em jogo, muita culpa e medo. Se você é mulher, já ouviu essas histórias. Se você é homem, talvez não tenha ouvido a respeito disso, você é tapado. Você conhece alguém (talvez várias pessoas) que já abortou e que não merece ser presa por isso. Merece acolhimento. E deveria ter tido política pública.

Concordo com aquela máxima: se homens engravidassem, aborto seria feito na farmácia.

A legalidade do aborto vem para solucionar uma questão de saúde pública: para reduzir o número de mortes e problemas de saúde graves gerados por abortos ilegais. Vem também permitir acesso à psicólogos, assistentes sociais, advogados e outros profissionais antes de se decidir. Vejam também que de acordo com a pesquisa conduzida aqui no Brasil, a maioria das mulheres que aborta é casada, já tem filhos e é cristã. Então esse suposto temor sobre legalização do aborto ser um passe livre para promiscuidade é infundado, é moralismo barato e tacanho. Não temos aqui um problema moral (afinal, ela é histórica e culturalmente contingente), porém, sim, um ético e político.

Eticamente, temos um ser já vivo e formado: a gestante. Esta corre perigo de vida bem real quando o aborto é inviabilizado ou criminalizado. Esta já é detentora de direitos e não um amálgama de células (a discussão se é vida ou não eu deixo para os filósofos, mas recomendo a leitura do Agamben sobre o assunto[5]). Se a gestante corre risco de vida, o direito ao aborto não é capricho, é imperativo. Se Kardec indicou para colocarmos a ciência em primeiro lugar, então ouçam as ciências humanas e compreendam a necessidade da descriminalização do aborto para segurança das mulheres. Isso não é contradição com o espiritismo. Contradição é pânico moral. Contradição é não respeitar o livre árbitro das encarnadas. Contradição é proferir julgamentos sem o aprofundamento teórico e prático que o assunto merece.

Será lei! Aborto legal já!

Referências:

[1] Publicado no jornal A Tarde, de Salvador, BA, na coluna “Opinião”, em 07/01/2021.

[2] ROE v. WADE. Direção: Ricki Stern e Anne Sundberg. Netflix. 2018.

[3] FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.

[4] FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

[5] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: sovereign power and bare life. Edição Kindle. 1998.

Aborto, saúde da mulher e espiritismo: chorem por nós, argentinas.

Elizabeth Hernandes – Membra do coletivo EàE-DF

Atualmente, no Brasil, grupos cristãos, inclusive espíritas, clamam aos céus pelas “criancinhas argentinas” e aqui se recorda uma charge onde se fala do excesso de piedade para com os fetos e da indiferença com as crianças. Segundo o portal do CNJ (Conselho Nacional de Justiça)[1], há 30.191 crianças acolhidas em abrigos. E aqui não se abordará a situação de outras tantas que, mesmo sem estar em situação de rua, necessitam urgentemente de acolhimento, alimento, educação, saúde e perspectiva de futuro.

E por que tanta preocupação com os argentinos se ainda nem é copa do mundo?

Recentemente foi publicada, na Argentina, uma norma que legaliza a realização de aborto, apenas para as mulheres que desejarem fazê-lo –sempre bom destacar– e cuja gravidez esteja no período de até 14 semanas.

Quando as mulheres conseguem resguardar-se de alguma das situações de violência a que estão submetidas, diariamente, no mundo inteiro, o patriarcado entra em alerta.

Além das violências mais conhecidas –física, psicológica, patrimonial etc.– as brasileiras também se ressentem das violências obstétricas e da falta de acesso a cuidados em situações de abortamento. Mas, em que pese as tácitas leis de silenciamento, no que tange às questões femininas, a ciência –substantivo feminino– não consegue ser calada.

Esse artigo visa a destacar alguns pontos abordados em trabalhos que estudaram o tema do aborto no Brasil, sob o aspecto da saúde pública e das ciências humanas, finalizando com algumas considerações acerca do posicionamento do movimento espírita brasileiro conservador.

O suplemento 1 do volume 36 do periódico Cadernos de Saúde Pública traz uma série de artigos que destacam a importância de se discutir a descriminalização do aborto, em face das controvérsias de ordem moral, religiosa, filosófica e jurídica, num estado cuja constituição o define como laico.

É consenso, entre os pesquisadores, que independentemente dos posicionamentos dos tomadores de decisão, cabe ao estado garantir políticas públicas e leis para que as mulheres possam decidir se, quando, com que frequência e com quem querem ter filhos.

Os estados têm o dever de prevenir as mortes e sequelas evitáveis por aborto inseguro. As leis restritivas em relação ao aborto violam os direitos humanos das mulheres e adolescentes, entre os quais estão o direito à vida, o direito à integridade física e psíquica, o direito à saúde sexual e reprodutiva, o direito à igualdade e não discriminação, o direito a estar livre de tortura e tratamento desumano e degradante, o direito a viver livre de violência, entre outros.” (Galli, 2020)[2].

Outros pesquisadores destacam o equívoco –permanente– no debate sobre o aborto, que cria um falso embate entre pessoas a favor e contra, dado que, em princípio, não há quem deseje que os abortos aconteçam. Talvez os proprietários das clínicas clandestinas sejam os únicos interessados no aumento das ocorrências, mas eles não representam a população. A verdadeira controvérsia está entre pessoas favoráveis e contra à criminalização do aborto e das mulheres que o realizam:

(…) Num extremo estão pessoas que acham que o aborto deve ser proibido, um crime a ser punido, tanto a pessoa que interrompe voluntariamente sua gestação quanto a pessoa que a ajuda neste processo. No extremo oposto estão as pessoas que acham que criminalizar não é a solução, porque não reduz os abortos, que é injusto pois castiga apenas a mulher e não o homem que provocou ou contribuiu para que essa gravidez existisse, muitas vezes, até contra a vontade da mulher, e porque afeta mais direta e severamente as mulheres mais pobres, menos educadas, mais jovens e mais vulneráveis, já aquelas com recursos não sofrem as mesmas consequências dessa criminalização.” (Faundes, 2020, p.2)[3].

E quem são essas que abortam?

A PNA (Pesquisa Nacional de Aborto) de 2016[4] é um inquérito domiciliar baseado em amostra aleatória e representativa da população total de mulheres alfabetizadas com idade entre 18 e 39 anos, no Brasil. Utiliza um instrumento sofisticado, adequado para a investigação de assuntos polêmicos e de grande impacto na história de vida dos indivíduos pesquisados, a técnica de urna. Esse método consiste em entregar, às participantes, um questionário que, após respondido, é depositado em urna lacrada, sem que as entrevistadoras tenham conhecimento das respostas. Em seguida se realiza uma entrevista face a face abordando as questões sociodemográficas (escolaridade, situação conjugal etc.). Os questionários depositados na urna contêm um identificador codificado que permite, posteriormente, a combinação de ambos os instrumentos, sem prejuízo do sigilo e da confidencialidade. Esse tipo de método equivale ao estudo duplo-cego, utilizado em investigações clínicas.

A PNA 2016 revela que 25% das mulheres de até 40 anos realizaram pelo menos um aborto e que há heterogeneidade dentro dos grupos sociais. O abortamento é mais frequente entre mulheres de menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas e que vivem nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Os resultados são comparáveis e similares aos da PNA 2010 e mostram que metade das mulheres utilizou medicamentos para abortar e quase a mesma proporção necessitou de internação para finalizar o aborto.

Quando os pesquisadores comparam a PNA 2010 com a de 2016 percebem evidências de estabilidade, ao considerar os efeitos de movimentação das coortes ao longo do intervalo de seis anos entre as duas pesquisas.

A maior parte das variações nas taxas, segundo faixas quinquenais, pode ser associada a uma movimentação de coortes, isto é, à acumulação de abortos ao longo da vida reprodutiva.” (Diniz, Medeiros e Madeiro, 2016)”.

A comparação entre os períodos do estudo revela que a realização de aborto é comum no Brasil e ocorreu em todas as idades pesquisadas (18 a 39 anos). Além disso, permanece como um evento frequente na vida das mulheres, sejam elas casadas ou não, com ou sem filhos, de todas as religiões (ou sem religião); de todos os níveis educacionais, classes sociais e grupos étnico-raciais. Ocorre em todas as regiões do país e em todos os tipos e tamanhos de município.

Essas que abortam são todas as mulheres.

Quem é punido pela realização do aborto?

Em julho de 2018 o Ministério da Saúde enviou ao STF (Supremo Tribunal Federal) um levantamento para subsidiar o julgamento de uma ação –movida pela ONG Anis– Instituto de Bioética e pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL)– que pedia a descriminalização do aborto até a décima segunda semana de gestação. Os dados do documento, divulgados pelo jornal Folha de S. Paulo[5], revelam que em dez anos o SUS gastou R$ 486 milhões com internações para tratar complicações associadas ao aborto, sendo 75% deles provocados. De 2008 a 2017, 2,1 milhões de mulheres foram internadas e, embora o número de internações tenha caído 7%, no período, as despesas hospitalares subiram 12% em razão da gravidade dos casos: em quase um terço houve complicações como hemorragias e infecções. Além disso, entre 2000 e 2016, houve 4.455 óbitos por causas diretamente relacionadas ao abortamento.

Os dados mostram que a punição pelo ato inclui, desde o enfrentamento de complicações de saúde até a morte, para a mulher. E custa caro para a sociedade, em termos monetários e morais, pois uma sociedade que não preserva a vida das mulheres, não vai bem do ponto de vista moral.

A quem interessa a realização de abortos ilegais?

Tendo em vista a clandestinidade do procedimento, é difícil estimar os lucros das pessoas físicas ou jurídicas que realizam, de forma correta ou em péssimas condições sanitárias, o procedimento. De todo modo, há que se pensar que são elas as principais interessadas em continuar na ilegalidade, livres de regramentos sanitários, de códigos de ética e de pagamento de impostos.

Em tese, não há pessoas favoráveis ao aborto, independente de ideologia, crença ou descrença. Também não há registro de mulheres que o relatem como experiência prazerosa.

A criminalização aumenta o estigma, dificulta o cuidado com a saúde das mulheres e propicia lucros às clínicas clandestinas. A descriminalização poderia abrir a discussão sobre o tema e construir uma rede de apoio para as mulheres que estivessem decididas a interromper sua gravidez.

E se ao invés de ser denunciada, a mulher pudesse deixar clara a sua intenção de abortar, ser atendida por profissionais qualificados, obter informações sobre seu estado de saúde e sobre os prognósticos, ser orientada acerca de eventuais opções no que tange às questões de assistência social e psicológica, conforme as especificidades de sua condição? Tais medidas, aliadas à educação acerca da sexualidade, muito provavelmente diminuiriam o número de abortamentos, bem como as internações e óbitos femininos.

A criminalização não impede uma mulher –às vezes desesperada, sem apoio familiar e sem recursos materiais ou emocionais– de buscar um procedimento arriscado e tampouco impede a ação dos que desejam lucrar com essa situação.

A culpa atribuída, somente à mulher, pelas denominações cristãs, também não impede o aumento das mortes e complicações.

Chore por nós, Argentina.

Perpassando o debate bioético, jurídico e religioso, há o debate político, frequentemente travestido de religioso.

A posição do espiritismo tradicional brasileiro aparece como mais rígida que as de outras denominações cristãs, inclusive os neopentecostais. Em que pese respostas como a da questão 353, de “O livro dos espíritos”, afirmando que o feto não tem, exatamente uma alma, um grande percentual de espíritas marcha ao lado de um grande percentual de neopentecostais, pela vida dos fetos e contra a das mulheres.

Vale ressaltar que a pergunta 353 é apenas um exemplo, pois em várias partes deste que é um livro básico, para os estudiosos do espiritismo, há argumentos que deveriam ser aprofundados, antes da partida para as tais “marchas pela vida”, cujo resultado aparece nas estatísticas de mortalidade feminina. Citam-se como exemplos as respostas às questões 136, 345 e 346.

Em estudo etnográfico realizado num centro espírita brasileiro, Barbosa (2019)[6], conclui que, para o espiritismo, no Brasil, o aborto “quebra com uma das leis maiores do universo” e como essa doutrina busca afirmar-se uma síntese entre religião, ciência e filosofia, tem capacidade para “manipular imagens técnico-científicas retoricamente eficazes”.

Desse modo, uma rápida pesquisa sobre a visão espírita mostra uma prevalência de discursos que culpam as mulheres, seja com base em questões de “O livro dos espíritos” ou apenas em opiniões, como a expressa por um palestrante, em um vídeo em que afirma que o “choro do bebê” faz o corpo da mãe produzir endorfinas, o hormônio do bem-estar. Vale ressaltar que não foi encontrado nenhum trabalho científico que faça essa inferência.

Esta “construção espírita do problema do aborto”, conforme a expressão de Barbosa (2019)[6] é reflexo da tradição conservadora que está na origem do movimento espírita brasileiro.

Em contraposição ao “espiritismo à brasileira”, na Argentina, Cosme Mariño, o primeiro presidente da Confederación Espiritista Argentina (CEA), adotava uma militância política liberal-anticlerical e se aproximava dos socialistas. Note-se que alguns espíritas fizeram parte do núcleo fundador do Partido Socialista da Argentina e houve quem chegou a operar fusões na prática, como Joaquin Trincado com sua Escuela Magnética Espiritual de la Comuna Universal, um grupo esotérico-espírita e comunista, criado em 1911, em Buenos Aires (Bubello, citado por Miguel, 2018)[7].

No XV Encontro Estadual de História, em 2018, o pesquisador Sinuê N. Miguel apresentou um trabalho esperançador, dado que “aborda a existência de uma tradição intelectual espírita de viés socialista, minoritária ao longo da história do espiritismo, mas capaz de tensionar o campo social de um movimento religioso que se quer politicamente neutro”.

Como já disse Weber, “quem escolheu a neutralidade já escolheu o lado do mais forte”.

A cada dia fica mais claro que o movimento espírita brasileiro não é politicamente neutro e serve à sustentação do patriarcado. Enquanto alguns grupos oram pelas criancinhas argentinas, as mulheres daquele país devem chorar por suas irmãs brasileiras. De todo modo, estamos a caminho.

Referências:

[1] CNJ (Conselho Nacional de Justiça), https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/adocao/ Consulta em 10.01.2020.

[2] GALLI, Maria Beatriz. Desafios e oportunidades para o acesso ao aborto legal e seguro na América Latina a partir dos cenários do Brasil, da Argentina e do Uruguai. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.36, n.13.

[3] FAUNDES, Aníbal. A importância de discutir abertamente o problema do aborto para a proteção e promoção da saúde da mulher. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.36, supl. 1.

[4] DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciênc. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.22, n.2, p.653-660.

O patriotismo e o espírita

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O amor a uma pátria qualquer e a uma bandeira e suas cores que representam um estado é uma das muitas deformações que bem caracterizam um espírito ainda em estágios primários do processo evolutivo.
Os espíritos, e isso os espíritas trazem como uma unanimidade, independente se progressistas ou bolsoespíritas que defendem tortura e milícias, não são caracterizados por sexo ou origem geográfica, pois são livres dessas amarras, vivendo experiências diversas no longo processo do aprendizado encarnatório.
Diante dessa realidade transcendente, falar em patriotismo soa como um escárnio a um espírita que bem compreende a necessidade maior da vida no corpo: o aprendizado do amor.
Em nome do patriotismo e em defesa dum estado qualquer, muitas barbaridades inomináveis foram cometidas contra pessoas inocentes no transcurso da recente história humana.
Recente porque a noção de pátria, de estado nacional, é uma construção social nova e pode-se datá-la a partir do surgimento do sistema capitalista de produção. Cada sistema econômico na história dos homens forjou, a partir das necessidades de classe, suas instituições sociais e sua organização política. A transição entre o feudalismo e o capitalismo, época conhecida na história como Idade Moderna, fez surgir diversas novas estruturas sociais, como uma nova organização familiar, os estados nacionais, a escola como hoje conhecemos, a democracia parlamentar burguesa etc. Antes do capitalismo, nada disso existia, é importante frisar.
Entende-se, a partir da compreensão desse fenômeno econômico e social, que a organização da sociedade em que se vive é fortemente influenciada pela estrutura econômica em que está baseada. Da mesma forma, a organização social acaba por influenciar a própria estrutura econômica, num processo dialético dinâmico que faz com que a sociedade humana esteja em contínuo processo de transformação, um fenômeno muito bem explicado por Engels e Marx, e conhecido como materialismo dialético.
Portanto, defender a “família tradicional” ou as cores que representam temporariamente o país em que se nasceu é, obviamente, uma aberração histórica e social para todos aqueles que compreendem bem o papel das estruturas sociais no passar das eras e a longevidade do espírito imortal.
O sentimento de patriotismo é indefensável para um espírita, ele é uma chaga moral. Pois, como já dito, ele caracteriza a opção temporal de uma bandeira em detrimento do amor atemporal que, em última análise, deve ser o norte do espírito encarnado. Deve-se amar o outro, respeitar seres, independente de fronteiras nacionais, que são todas artificiais, culturais e não naturais, e independente de orientação sexual, identidade de gênero ou condição social. Devemos amar e o amor é uma experiência de respeito, de tolerância, de compreensão, não é sobre gostar ou não de alguém ou de algo.
Amar: é isso que estudamos aqui no corpo e essa é a nossa grande dificuldade. E todos os obstáculos a esse objetivo devem ser superados por nossos esforços pessoais e coletivos. O patriotismo, esse estanho sentimento que faz odiar indivíduos em prol duma ideia datada historicamente, é um dos mais severos obstáculos à realização plena do potencial do espírito imortal.
A partir dessa breve análise histórica e espírita, percebe-se o quão esdrúxulo é falar duma “pátria do evangelho”, pois o espírito viveu, vive e viverá muitas experiências em diversas realidades culturais e históricas e, em todas elas, será capaz de apreender novas práticas de amor e compreensão e nelas acrescer em si o tesouro que, segundo as palavras do nazareno, os ladrões não roubam e as traças e a ferrugem não destroem.
Conclui-se, enfim, que entre os esforços morais dos seres encarnados está a superação do tolo e abjeto sentimento de patriotismo. Ele nada mais tem a oferecer ao crescimento do espírito que vem à Terra aprender o amor incondicional.

Carta de apoio ao padre Kelder, à paróquia Santa Tereza de Calcutá e às comunidades do território do bem

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Caro Padre Kelder Brandão,

Abençoados são vocês, cujo compromisso com Deus atrai perseguição. A perseguição os fará avançar cada vez mais no Reino de Deus.”

E isso não é tudo. Considerem-se abençoados sempre que forem agredidos, expulsos ou caluniados para me desacreditar. Isso significa que a verdade está perto de vocês o suficiente para os consolar – consolo que os outros não têm. Alegrem-se quando isso acontecer. Comemorem, porque, ainda que eles não gostem disso, eu gosto! E os céus aplaudem, pois sabem que vocês estão em boa companhia. Meus profetas e minhas testemunhas sempre enfrentaram essa mesma dificuldade”.

Mateus 5, 10-11

Nós, do Espíritas à Esquerda, através dessa carta, manifestamos apoio a você, caro irmão, e a toda a paróquia e repudiamos a tentativa descabida de intimidação por parte da Polícia Militar.

É inadmissível que o Estado use as forças policiais para tentar silenciar, de forma tão truculenta, a voz que se levanta para defender o povo mais sofrido e com menos acesso às políticas públicas.

Jesus alertou-nos a olhar pelos pobres, excluídos e marginalizados. Assim, todos que seguem Jesus devem guiar-se por seus ensinamentos, mesmo sabendo que tal atitude carrega o risco da incompreensão, da desconfiança e da perseguição.

É revoltante constatar a dura e escandalosa opressão de quem acolhe os que mais sofrem e fica ao lado dos mais pobres.

Essa carta de repúdio e apoio é também um pedido aos poderes constituídos para que tomem as medidas cabíveis a fim de resguardar e proteger o padre Kelder e sua paróquia, além de punir exemplarmente os autores desse ato injusto e desproporcional.

O Brasil é um dos países mais violentos para quem defende os direitos humanos. É chegada a hora de o amor vencer!

Por isso, nós, do coletivo Espíritas à Esquerda, juntamo-nos em prece e voz, com a coragem e a fé que nos move em direção ao outro, a essa vigília de esperança para que fatos assim não aconteçam mais.

Somos todos padre Kelder!

Vitória, 29 de julho de 2023.

A cultura do estupro e a minissaia cármica

Elizabeth Hernandes (EàE-DF)

Infelizmente, no Brasil, todo dia há “inspiração e intuição” para se falar de crimes sexuais contra mulheres, desde 1500. Além de pentacampeão em mundiais de futebol masculino, o País é, no mínimo, hexacampeão na modalidade “casos de jogadores condenados por estupro”. De acordo com notícias amplamente divulgadas na imprensa, os atletas Robinho, Daniel Alves, Cuca, Eduardo Hamester, Fernando Castoldi e Henrique Etges carregam a desonrosa taça.

Tendo em vista essa amostra, composta por atletas que cometeram a “bobagem” de estuprar mulheres em países que não têm esse hábito incorporado à cultura local, é inevitável questionar quantos mais haverá, sem condenação, principalmente se o ato tiver sido cometido em plagas verde-amarelas. Cabe lembrar, neste momento, de um caso rumoroso contra um outro jogador rico e famoso, que não foi condenado. Mas a mulher que o acusou, esta sim, foi condenada em todas as instâncias da internet.

Outra peculiaridade brasileira é o espiritismo exercido como religião. A doutrina sistematizada na França por Allan Kardec, aqui adotou dogmas e tabus próprios de prática religiosa instituída e, para falar sobre a cultura do estupro no contexto do espiritismo, é necessário refletir sobre a definição do que seja a tal abjeta cultura e também sobre o significado dos termos “dogma” e “tabu”.

Em artigo acadêmico publicado na Revista Direito GV, edição dez/20171, os autores listam algumas características associadas à expressão “cultura do estupro”, desenvolvida, em 1970, por pesquisadoras estadunidenses, para designar o tratamento social e jurídico que culpabilizava as mulheres pela violência sofrida. Também estão associados à expressão a prática de guerra que estimula a violação para “elevar o moral da tropa” e o ensino, às mulheres, de comportamentos que, supostamente, as ajudarão a proteger-se, como vestir-se de modo discreto ou evitar andarem sozinhas, assumindo que o comportamento feminino tenha alguma relação com a conduta sexual masculina.

O termo “dogma”, etimologicamente vem do grego e designa “aquilo que se pensa que é verdade”, mas, no contexto religioso, é dado como “verdade”, portanto, algo incontestável. Já o “tabu”, de origem polinésia, significa a proibição de determinado ato, com base na crença de que este invadiria o que está no campo do sagrado, implicando em perigo ou maldição para os indivíduos comuns2.

E aqui chegamos no movimento espírita hegemônico no Brasil, que estabelece dogmas e tabus relacionados ao corpo das mulheres e às violências lhes impostas, adotando a prática do silenciamento, quando o assunto é estupro.

O artigo “Cuca, a cultura do estupro e os movimentos espíritas”, de autoria de Gabriel Lopes Garcia3, defende a necessidade de discutir a questão no meio espírita brasileiro, que também reflete a cultura e os aspectos sociais do país. O autor ressalta que “é preciso superar os tabus e discutir francamente estas questões nas instituições espíritas, de modo a enfrentar o problema, (re)educando as pessoas, prevenindo crimes e orientando as vítimas na busca de justiça e proteção.” Destaca o que chama de “versão espírita da cultura do estupro”, por meio da idealização da mulher, a quem se atribui “características de elevação espiritual” como “feminilidade, docilidade e capacidade de suportar heroicamente as agressões masculinas, pois a renúncia é sua virtude mais valorizada”.

Garcia destaca um aspecto torpe desta cultura, criado na mitologia espírita: a relativização do crime por meio da difusão da ideia –jamais comprovada e jamais escrita em nenhuma obra fundadora do espiritismo– da existência de “uma suposta afinidade fluídica entre a vítima e o estuprador”. De acordo com essa falácia, o criminoso não escolheria a vítima ao acaso e sim teria com esta “uma suposta ligação espiritual, de passada reencarnação”. Trata-se de uma forma sofisticada de culpar a vítima e fazer uma inversão perversa da lei moral de causa e efeito, ou seja, os divulgadores de tais ideias criaram um tipo de “minissaia cármica” para justificar o silenciamento de uma forma hedionda de violência contra as mulheres.

Um dos aspectos feministas da doutrina espírita é encontrado nas perguntas 200 e 201 de O livro dos espíritos, que abordam o princípio de que os espíritos não têm sexo, podendo reencarnar, na Terra, como homens ou mulheres e que tal ocorre com vistas ao aprendizado e ao progresso.

Passa da hora de romper o silenciamento das mulheres nas casas espíritas, onde, por dever de fraternidade, se deve abordar a erradicação da cultura do estupro, para progredirmos de forma mais rápida na construção de uma sociedade fraterna e moralmente elevada.

Vale comemorar o fato de um estuprador não ter permanecido mais que seis dias no comando de um grande time de futebol, num país onde esta modalidade esportiva é componente perene da cultura. Mas é preciso lembrar que a vítima desse estuprador está há 36 anos convivendo com as marcas dessa violência. E esse aspecto do “lembrar” não está associado a um sentimento de vingança e sim ao conceito de valores culturais, tal como citado no artigo de Campos et al (2017), já mencionado, segundo o qual “Valores culturais são dinâmicos, uns de longa duração, outros de curta duração e as relações dos sujeitos com o vasto repertório simbólico dependem de suas posições nas relações de poder”.

Para erradicar a cultura do estupro se faz necessário interferir nas relações de poder entre homens e mulheres aqui na terra mesmo, onde cada um de nós reencarnará numa condição masculina ou feminina. É aqui, na convivência coletiva, que temos de nos construir e nos reconstruir como espíritos imortais.

A doutrina espírita, que se baseia em conceitos de progresso e de amor, não pode mais imputar o uso de uma espécie de “minissaia cármica” às mulheres, para justificar a violência sexual.

1 Campos CH, Machado LZ, Nunes, JK, Silva, AR. “Cultura do Estupro ou cultura antiestupro”. Revista Direito GV, v. 13, n.3, set-dez 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rdgv/a/FCxmMqMmws3rnnLTJFP9xzR/?lang=pt

2 Ver Wikipedia mesmo.

Edições antirracitas das obras de Kardec – o que pensar?

Por Dora Incontri

Nesta semana, dia 18 de abril, foi publicada a segunda obra de Kardec, O Livro dos Espíritos numa edição antirracista, depois de no ano passado, ter sido lançado O Evangelho segundo o espiritismo, com esse mesmo subtítulo. Apresso-me a escrever esse artigo, para me contrapor às críticas raivosas (e até caluniosas) que estão sendo feitas a estas publicações, mesmo por espíritas que se afirmam progressistas.

Como todos sabem, sou da linhagem kardecista-herculanista e, portanto, jamais apoiaria qualquer coisa que viesse a ferir os princípios fundamentais do espiritismo – entretanto, são trechos mesmos das obras de Kardec que ferem esses princípios. E, como ele mesmo recomendou, é preciso usar o bisturi da crítica para limpar o espiritismo de ideias que pertenciam ao contexto histórico, europeu (leia-se eurocentrista), colonialista e racista que fazia parte da estrutura da sociedade em que ele viveu, atuou e foi influenciado por essas correntes.

Qualquer leitor contemporâneo, minimamente progressista e conectado com os problemas de racismo estrutural que observamos na sociedade brasileira e mundial, sente sucessivos incômodos na leitura das chamadas obras básicas de Kardec. O tempo inteiro há uma hierarquização de “raças”–termo que caiu em desuso, porque hoje consideramos que só existe uma raça, a humana. “Raças selvagens, primitivas”, entre elas estão negros, nativos de outras regiões do planeta, ou seja, aqueles que não pertencem ao “topo da civilização”, branca, europeia. Assim pensavam todos os europeus do século XIX. Assim pensava Kardec, assim pensavam os médiuns que com ele trabalhavam, assim pensavam muitos espíritos, que embora com algum conhecimento espiritual, ainda estavam impregnados dos preconceitos terrenos (coisa que também o próprio Kardec recomenda analisar).

Como a nossa história está manchada pela escravização e genocídio dos povos de origem africana e dos povos originários das Américas, e como o extermínio e a discriminação ainda estão dolorosamente vivos em nosso país do século XXI, essas teses de hierarquia racial, que eram consideradas científicas no século XIX, nos constrangem tremendamente e, claro, desrespeitam e ferem os negros, indígenas e todas as pessoas sensíveis a essa temática.

Em 2008, o Ministério Público da Bahia já chamou atenção para trechos das obras de Kardec que sugeriam discriminação e racismo e 9 editoras espíritas, entre elas a FEB, assinaram um compromisso de publicarem notas de contextualização dessas passagens. Alguém já viu essas notas? Mesmo existindo, estão escondidas, envergonhadas. Aliás, ninguém lê nota de rodapé.

Mas o tema exige debate, reparação histórica, atenção de todos e todas, para que o racismo não continue se perpetuando na sociedade brasileira, incluindo-se os centros espíritas, majoritariamente dirigidos por uma elite branca (e recentemente em grande parte de extrema-direita, com quase nenhuma sensibilidade social).

Então, sim, é preciso que se faça uma edição estampada na capa, como antirracista, é preciso que os comentários às passagens problemáticas saiam de um lugar imperceptível para um foco mais nítido. As duas edições feitas pelo Coletivo Espíritas à Esquerda têm exatamente essa intenção, e fazem isso sem nenhuma adulteração do texto original.

Cito o impecável prefácio, que está na presente publicação do Livro dos Espíritos:

 “…o objetivo primacial do projeto da Coleção Antirracista de Kardec é a reparação do sofrimento que negras e negros vivem diariamente nas instituições espíritas, quando, em seus grupos de estudos, palestras e eventos, deparam-se com as passagens racistas da literatura espírita que os diminui, humilha e violenta. E, como consequência dessa forma historicamente racista de entender as diferenças étnicas e culturais, negras e negros costumam, na maioria das instituições espíritas, participar apenas como subalternos, coadjuvantes, apoio às atividades operacionais e principalmente como beneficiários de obras assistencialistas, sendo raro vê-los ocupando cargos de direção nessas instituições. E esse projeto, portanto, é também, além de uma proposta de reparação, uma forma de estimular e instrumentalizar todas as pessoas para o debate antirracista dentro do movimento espírita, considerando as consequências do racismo institucional nele presentes.”

E mais adiante, sem jogar o bebê junto com a água suja, o prefácio ainda afirma que os erros históricos que devemos corrigir e criticar não invalidam o espiritismo como um todo, mesmo porque o que deve prevalecer é a proposição ética da fraternidade humana.

“Se já se admite no movimento espírita os erros de cosmologia e biologia de suas obras, conforme prescrição do próprio Kardec sobre a evolução do conhecimento espírita, é nossa obrigação reconhecer os fragmentos racistas em seus textos. Tais erros históricos não desmerecem toda a doutrina espírita, pois os princípios do espiritismo expostos em seus textos, quando bem compreendidos e praticados, destruirão “os estúpidos preconceitos de cor” (o que está entre aspas é citação de Kardec).”

Diante disso, não consigo entender por que a oposição agressiva de alguns espíritas, comparando indevidamente essa edição antirracista à adulteração feita no Evangelho segundo o Espiritismo por alguns membros da Federação Espírita do Estado de São Paulo, na década de 70, do século passado, e que foi, com toda justiça, combatida por Herculano Pires. Aquela era de fato uma mudança nos textos de Kardec – aliás, por sugestão de Chico Xavier, que foi chamado por Herculano a vir a público pedir desculpas e se desdizer. E era uma mudança absolutamente tosca. Por exemplo, ao invés de se usar a expressão “espíritos maus”, mudava-se para “espíritos menos bons”. Não se tratava de um debate social e político urgente como o racismo. (Toda essa história está no livro Na Hora do Testemunho, de Herculano Pires.)

O mais grave de todo esse episódio atual é que a gritaria em torno da edição antirracista foi tão grande, que muita gente veio me dizer que as obras de Kardec estão sendo modificadas. Ficou essa mentira no ar. Por isso também resolvi escrever esse texto.

E parabenizo o Coletivo Espíritas à Esquerda, com quem a Associação Brasileira de Pedagogia Espírita tem feito várias parcerias, pela coragem, pelo bom senso e por atender uma das muitas urgências que temos, para uma releitura crítica e serena das obras de Kardec.

ARTIGO ORIGINALMENTE PUBLICADO NO SITE DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PEDAGOGIA ESPÍRITA.

Por que a coleção antirracista das obras de Allan Kardec?

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Em novembro de 2020 a coordenação do coletivo Espíritas à Esquerda (EàE) acompanhou estarrecida a repercussão do caso de racismo dentro de um supermercado em Porto Alegre, no qual o desfecho foi a morte de um homem negro. Como Kardec afirma em “O livro dos médiuns” que (…) os jornais formigam de fatos, de narrativas, de acontecimentos, de rasgos de virtudes ou de vícios, que levantam graves problemas morais, cuja solução só o Espiritismo pode apresentar (…)”1, a coordenação do EàE iniciou as discussões sobre o problema do racismo e como a doutrina espírita pode nos instrumentalizar na luta antirracista. Porém, nos deparamos com o primeiro desafio: “conteúdo de determinados trechos das obras literárias de ALLAN KARDEC, vistos como supostamente discriminatórios e preconceituosos em relação a pessoas negras e de outras etnias”, os quais foram listados pelo Ministério Público Federal da Bahia (MPF-BA) em 2007. Por isso, entendemos que o primeiro passo da luta antirracista deveria ser estudar e debater esses textos dentro do próprio movimento espírita. Foi assim que surgiu o Evangelho segundo o espiritismo – edição antirracista lançado pelo EàE no dia 20 de novembro de 2022, dia da Consciência Negra.  Antonio Isuperio, ativista do movimento negro e membro do EàE à época, foi o grande incentivador para o estudo e o debate do racismo científico reproduzido por Allan Kardec nos textos da doutrina espírita apontados pelo TAC do MPF-BA.  A coordenação do EàE continuou com o estudo daqueles trechos e se prepara para o lançamento da segunda obra da Coleção Antirracista: O livro dos espíritos – edição antirracista, em 18 de abril de 2023, dia escolhido pela sua relevância para o movimento espírita, pois é a data celebrada como a fundação do espiritismo, quando Allan Kardec lançou a primeira edição de O livro dos espíritos, em 1857, com apenas 501 questões, que posterirmente ele revisou e ampliou para as atuais 1019 questões.  A Coleção Antirracista seguirá adiante, limitando-se, nessa primeira fase, aos 106 trechos que foram apontados pelo Termo de Ajuste de Conduta – TAC, mesmo que haja outros textos identificados como problemáticos. O objetivo das propostas de redações antirracistas permanece o mesmo: propor o diálogo com o movimento espírita sobre o racismo  científico do séc. XIX e o racismo estrutural e estruturante da sociedade que mata e deixa morrer milhares de pessoas negras no Brasil e no mundo. Porém, até agora, passados quase cinco meses, poucas pessoas e grupos espíritas responderam ao nosso convite ao diálogo de propostas para um espiritismo laico e livre pensador. Continuamos com esperança de chegarmos logo à fase de aceitação do necessário debate sobre o racismo e, mais importante do que isso, o combate ao racismo e demais propostas para a luta antirracista dentro do movimento espírita. “É necessário que o escândalo venha2 como disse Jesus e anotou Kardec comentando que “quando estiverem cansados de sofrer devido ao mal, procurarão remédio no bem”.   1-  KARDEC, Allan. O livro dos médiuns, ou, guia dos médiuns e dos evocadores: Espiritismo experimental. Segunda parte – Cap. XXIX – Assuntos de estudo. p. 368.   2- KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Cap. VIII – Bem-aventurados os que têm puro o coração. pág. 129.

Clarice genial, imperdível, lírica e machista

Por Elizabeth Hernandes

“Mas que isso não nos pareça humilhante, como se exigissem que em primeiro lugar tivéssemos interesses mais universais.” (Clarice Lispector in “Amor Imorredouro” na coletânea “Todas as Crônicas”, editora Rocco.

No lançamento do livro da minha amiga Ana Beatriz Cabral, que ocorreu na livraria de propriedade de outras amigas, encontrei a coletânea “Clarice Lispector – Todas as Crônicas”, prefaciada por outra mulher que admiro, Marina Colasanti. E é claro que me esqueci que preciso economizar e não devo gastar num livro de capa dura e que tenho vários outros na fila do “ler ainda nesta encarnação”. Esqueci de tudo, como qualquer adicto o faz, diante do prazer irresistível. Tenho a sorte de ter mais vícios bons do que maus (pelo menos é o que acredito) e, em sendo assim, é óbvio que eu não vou entrar numa livraria de rua, com a curadoria zelosa de Camile e Ariana e sair apenas com o livro da Ana Beatriz. Este Clarice faz parte daquelas coisas e experiências que me deixam pensando que, se não as possuir, nunca mais serei feliz. Durmam com esta, minimalistas! E como tenho sido feliz com esta Clarice, que me perdoe a Ana Beatriz, motivo da ida à livraria, e que também escreve primorosamente. Mas é a Clarice, né Bia? E eu que não sou Clarice nem Ana, me divirto escrevendo sobre quem escreve pois cada um faz o que gosta com aquilo que pode. Este livro de Clarice tá pra mim como a piada preconceituosa sobre o nordestino e a farinha de mandioca. Aliás, quem não reverenciar a mandioca, bom sujeito não é. Comigo seria mais ou menos assim. “Beth, tu gosta de sexo?” “Ôxe, demais!” “E de crônicas?” “Ai, Jesus…” “ E de Clarice?” “Não para, não para!”. “E de crônicas escritas por Clarice?”. Sem resposta, só um suspiro e um gemido baixo. Adoro crônicas, de escritores geniais e reconhecidos e também de escritores geniais e não reconhecidos. E quando encontro reconhecidos como Machado ou Clarice, labutando nesse falso gênero ligeiro que, na verdade, demanda lenta construção e perene talento, me deleito. Nessa degustação do texto, a primeira coisa que faço é buscar apreender o espírito do tempo, dado que a crônica é um tipo de reportagem poética. E assim me transporto para o mundo de uma mulher intelectual, de classe média, na década de 1960, Ou para o de um escritor negro do século XIX, que as pessoas ( e talvez também o próprio) preferiam fingir que era branco. E depois me divirto (e mais ainda me entristeço), vendo a atualidade de textos escritos há meio século ou século e meio. E me admiro da coragem de quem se revela tanto porque, crônica, meu amigo, é como disse a própria Lispector: “E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma. Falei nisso com um amigo que me respondeu: mas escrever é um pouco vender a alma. É verdade. Mesmo quando não é por dinheiro, a gente se expõe muito.” Esse ”Todas as Crônicas” é daqueles livros onde a gente quer sublinhar quase todos os parágrafos ou copiar e postar nas redes sociais. Quando se escrevem romances e contos, ainda há a desculpa de serem, oficialmente, classificados como ficção. Crônica, não. Até quando é inventada, exagerada, distorcida, é rigorosamente o retrato de um dia, uma cena, um acontecimento, na vida do escritor. Eu, mesma, se cronista for, vos falo desde um domingo, aquele dia em que mulheres que têm boletos a vencer na segunda, encontram um espaço para escrever. E falo dos outros por estar num daqueles dias em que prefiro não contar nada de mim nem pra mim mesma mas, se comecei a escrever, vou acabar contando. E assim, ao invés de ver minha tarde de domingo, vejo as tardes da branca Clarice expondo seus privilégios de classe e deixando claro que nem gosta muito do “politicamente correto” de sua época: “E ter empregadas, chamemo-las de uma vez de criadas, é uma ofensa à humanidade.” Clarice, amada, se você soubesse que hoje, nossos vizinhos aqui da Rua dos Remediados, onde eu e você moramos, referem-se a essas trabalhadoras como “secretárias do lar”… Como você não está aqui, mana, deixa que eu bato neles. E bato mesmo, viu? Clarice expõe lindamente o seu machismo quando fala de Leopoldo Nachbin, seu amigo de infância: “Leopoldo – além de meu pai – foi o meu primeiro protetor masculino, e tão bem o fez que me deixou para o resto da vida aceitando e querendo a proteção masculina (…)” E tem mais, uma parte que combina muito com esse meu domingo de hoje. Clarice expõe, crua e liricamente, as dores da mulher CIS heterossexual: “O homem. Como o homem é simpático. Ainda bem. O homem é nossa fonte de inspiração? É. O homem é nosso rival estimulante? É. O homem é nosso igual ao mesmo tempo inteiramente diferente? É. O homem é bonito? É. O homem é engraçado? É. O homem é um menino? É. O homem também é um pai? É. Nós brigamos com o homem? Brigamos. Nós não podemos passar sem o homem com quem brigamos? Não. Nós somos interessantes porque o homem gosta de mulher interessante? Somos. O homem é a pessoa com quem temos o diálogo mais importante? É. O homem é um chato? Também. Nós gostamos de ser chateadas pelo homem? Gostamos.” Clarice, sua machista, eu te amo e nunca vou te deixar. As mulheres são as que ficam.

A espiritualidade ancestral é a história de nossas lutas

Gastão Cassel – EàE/SC

São frequentes os relatos de sessões mediúnicas, seja no kardecismo, na umbanda, no candomblé ou outras denominações, que têm presença importante de antigos escravizados (geralmente chamados de pretos velhos) e indígenas de diversos povos. E faz todo sentido que assim seja, pois cronologicamente foram os que nos antecederam, são o passado recente da história de nossas cidades, estados e país. Por incrível que pareça, tais espíritos muitas vezes são recebidos com preconceitos e estigmatizados como primitivos, culturalmente inferiores e até “selvagens”. O preconceito é decorrente da visão colonialista e elitista que pressupõem como “elevada” a cultura proveniente da Europa. Se nos despirmos do olhar colonialista, veremos que todos esses povos originários tinham rituais e práticas espirituais elevadas, relações estreitas com suas divindades e conjuntos de experiências culturais e éticas impressionantes. Mas o olhar colonial prefere ver a diferença como estranheza e primitivismo. Espaços como o Museu de Arte Pré-Colombiana, em Santiago, no Chile, são fartos em demonstrar que os povos nativos do continente tinham enorme produção cultural e práticas místicas e religiosas profundas e complexas, bem como sociedades com níveis de organização elevados. Povos que construíram, por exemplo, Machu Picchu, não podem ser considerados primitivos, a não ser pelo preconceito que vê virtude nos invasores que devastaram gentes e culturas em toda a América. Muitos desses povos desencarnados hoje dão sustentação espiritual a casas espíritas, são suportes indispensáveis à egrégora que conduz o trabalho de amparo à saúde. São espíritos comprometidos com o próximo, com o auxílio e a compaixão. São os povos originários que já foram maioria nessas terras e que trazem do plano espiritual muitos ensinamentos que revelam o quão evoluídos eram espiritualmente, não obstante seu sofrimento aqui na Terra, promovido pelos colonizadores que empunhavam armas e cruzes. Da mesma forma os escravizados representaram um enorme percentual da população que nos antecedeu. Essa população negra trouxe legados espirituais importantíssimos das culturas africanas, inclusive muçulmanas. Jamais renunciaram a suas práticas espirituais e culturais, mesmo que forçados a um sincretismo que, como disse a canção, é “tanto resistência como rendição”. O relacionamento com estes povos desencarnados exige de nós a compreensão da experiência terrena que tais povos tiveram. Na maior parte dos casos são histórias trágicas e violentas. A crueldade física e cultural a que foram submetidos os povos de origem africana escravizados no Brasil não pode ser relevada. Tão pouco os incontáveis massacres e dizimações de nações indígenas em toda a extensão do continente americano podem ser esquecidos. Os espíritos que hoje nos amparam viveram a crueldade na carne, e o mínimo que podemos e devemos fazer para respeitá-los e honrá-los é reconhecer a sua trajetória de dor e opressão. É verdade que espíritos não têm cor ou etnia, mas são constituídos e informados pelas suas experiências terrenas, pelo que aqui viveram, de forma que a lástima aqui sofrida os constitui de forma absoluta. Os chamados Pretos Velhos carregam ancestralidades africanas e práticas religiosas que precisavam ser escondidas no fundo das senzalas, ou manifestar-se abertamente nos quilombos libertários. Os indígenas foram – e ainda são – impiedosamente perseguidos e exterminados, algumas culturas completamente dizimadas. Tudo em nome da imposição de religiões e culturas tidas como “superiores” que se apresentavam em nome de Deus. Mais sagrado do que qualquer divindade é o direito que todas as pessoas têm de cultuar a sua. As práticas místicas dos povos originários são plenamente legítimas como todas as outras crenças não cristãs, como o budismo, o judaísmo, o islamismo, hinduísmo e tantas outras. O relacionamento com esta espiritualidade ancestral precisa partir do respeito aos que viveram aqui na Terra e agradecimento aos ensinamentos que podem nos oferecer em todas as dimensões. A celebração dessa espiritualidade ancestral precisa começar pelo reconhecimento de sua manifestação por meio dos povos originários remanescentes, pelo respeito à sua cultura, incluindo religiosidade e territórios. A espiritualidade indígena, além de resgatar traços históricos e culturais de sua sociedade, também nos remete à sua prática ritual que, através da rememoração dos mitos, fortalece a espiritualidade ancestral. Além do que, sua natureza telúrica aponta para um relacionamento profundo com a natureza e a preservação do Planeta. A prática do bem não é monopólio de nenhuma denominação religiosa, de nenhuma etnia, de nenhuma cultura, de nenhuma “civilização”. A prática da fraternidade, da solidariedade, da amorosidade, da compaixão são e devem ser universais. “Amai-vos uns aos outros” não faz nenhuma distinção. Há inúmeras palavras que significam Deus, com as mais diversas feições. “Sons diferentes para sonhos iguais”, disse um poeta. Homenagear a espiritualidade ancestral é defender aqui no presente os direitos dos povos originários que continuam sob ameaças colonizadoras incrementadas por interesses econômicos. É combater a herança maldita da escravidão, que se tornou o racismo estrutural de nossos dias. Os escravizados da América, os originários Yanomamis, Charruas, Quechuas, Incas, Mapuches, Guaranys, Teguelches, Tamoios, Tupis, Xoclengs e todos os povos originários da América estão em nós, entre nós e conosco. Saibamos honrá-los, respeitá-los e preservá-los.