Jesus e os vendilhões da educação brasileira

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Aldemario Araujo Castro – Espíritas à Esquerda DF*

A Constituição de 1988 trata a Educação com generosidade. Afinal, existe um virtual consenso de que a realização dos fins da República Federativa do Brasil, notadamente a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, depende da eficiência do sistema educacional. O referido diploma fundamental da ordem jurídica brasileira proclama que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família. São três, segundo a Carta Magna, os objetivos maiores da educação: a) pleno desenvolvimento da pessoa; b) preparo para o exercício da cidadania e c) qualificação para o trabalho. Os princípios para o ensino no Brasil foram postos pelo constituinte nos seguintes termos: a) igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; b) liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; c) pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; d) gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; e) valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; f) gestão democrática do ensino público, na forma da lei; g) garantia de padrão de qualidade e h) piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal.  Também foi previsto no Texto Maior a elaboração, por lei, de um plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a: a) erradicação do analfabetismo; b) universalização do atendimento escolar; c) melhoria da qualidade do ensino; d) formação para o trabalho; e) promoção humanística, científica e tecnológica do País e f) estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto. Parece fora de qualquer dúvida razoável a percepção acerca do tamanho e da complexidade das tarefas governamentais, especificamente no âmbito do Ministério da Educação, quanto à formulação e execução das políticas públicas realizadoras das definições constitucionais. Ocorre que o (des)governo Bolsonaro mostra diariamente sua reconhecida insensibilidade e incompetência para com a condução das questões educacionais, assim como o faz em relação às demais áreas sociais. Primeiro, fez escolhas miseráveis de titulares para a pasta ministerial da Educação. Tivemos Vélez Rodríguez, Abraham Weintraub, Carlos Decotelli e, (até) agora, Milton Ribeiro. Essas escolhas demonstraram o profundo desprezo do maior dos apedeutas por tudo minimamente relacionado com Educação, Ciência e Tecnologia. Depois, pelas vozes e ações desses “ministros”, praticamente reduziu as políticas públicas na área da Educação ao combate aos fantasmas do “marxismo cultural”, da “ideologia de gênero” e da “pregação ideológica” no ambiente de ensino. Aqui e ali também foram vistos ataques ao suposto plantio de maconha nos campi universitários e outras esquisitices dessa natureza. Só faltavam aparecer na grande imprensa, em relação à área de Educação, os casos de corrupção presentes em vários outros setores da ação governamental. Não falta mais. As peripécias do ministro Milton Ribeiro e dos pastores evangélicos Gilmar Santos e Arilton Moura (integrantes do “gabinete paralelo”) vieram a público. E vieram com força e requintes do mais abjeto maucaratismo juramentado e praticante (como diria o eterno Prefeito Odorico Paraguaçu). A fala do ministro da Educação é escancaradamente didática (nesse ponto ele foi competente, não há como negar): “Foi um pedido especial que o presidente da República fez para mim sobre a questão do [pastor] Gilmar. A minha prioridade é atender primeiro os municípios que mais precisam e, em segundo, atender a todos os que são amigos do pastor Gilmar”. A partir da divulgação dessa confissão, relacionada com a liberação de recursos do Ministério da Educação para Prefeituras, surgiram elementos adicionais como: a) várias audiências dos pastores com o ministro; b) vários encontros e fotos dos pastores com o presidente Jair Bolsonaro; c) eventos com distribuição de bíblias e a presença do ministro da Educação; d) voos em aviões da Força Aérea Brasileira – FAB e e) falas de vários prefeitos (pelo menos dez) detalhando o modus operandi dos “homens da fé”, incluindo pedidos explícitos de propinas, em dinheiro e ouro, e de apoio eleitoral. Houve registro até de desconto de 50% para a propina, dependendo de quem “encaminhasse” o pretendente (fontes: estadao.com.br, uol.com.br, g1.globo.com e metroples.com).     No Supremo Tribunal Federal, a Ministra Carmén Lúcia determinou a abertura de inquérito para investigar o ministro Milton Ribeiro, pela suposta prática dos crimes de: a) corrupção passiva; b) tráfico de influência; c) prevaricação e d) advocacia administrativa. Segundo a Ministra: “Há de se investigar e esclarecer, de forma definitiva, a materialidade e a autoria das práticas com elementos objetivos e subsídios informativos definidos nos termos da legislação vigente, para se concluir sobre a autoria, os contornos fáticos e as consequências jurídicas a serem determinadas pelas condutas descritas na notícia de crime informada pela Procuradoria-Geral da República” (fonte: conjur.com.br). Não custa destacar que a corrupção é uma das marcas distintivas do (des)governo Bolsonaro. A família presidencial, antes com atuação política regional e limitada pelo raio de ação do “baixo clero”, operava com: a) milícias (com integrantes homenageados e incorporados como assessores); b) “rachadinhas” (apropriação de remunerações de servidores dos gabinetes parlamentares); c) funcionários fantasmas (como no curioso caso da “Wal do Açaí”); d) frequentes operações com imóveis (com uma curva ascendente e recheada de “galinhas mortas”) e e) lavagem de dinheiro em empresas de menor expressão (comércio varejista de chocolates, por exemplo). O envolvimento em corrupção “grossa” ou “pesada” dependia da ação numa arena política mais ampla e com o concurso de parceiros com larga e profunda experiência nesse “ramo”. No governo federal e a associação com os integrantes do famoso “Centrão” permitiram a “ampliação dos horizontes”.  Somente a cegueira seletiva ou a ingenuidade em alta dose pode alimentar alguma ilusão acerca da supressão da corrupção no Brasil a partir da prática ludibriante da oração enganosa e coisas do gênero. Infelizmente, a corrupção sistêmica existente no Brasil por décadas (e séculos) continua operando em todos os níveis governamentais, com novos e velhos atores, com novos e velhos métodos. Nesse cenário de horrores se destacam os bilhões do “orçamento paralelo”. Todo esse triste cenário lembra o conhecido episódio protagonizado por Jesus Cristo quando flagrou a ação deletéria dos vendilhões no Templo de Jerusalém. Importa destacar a conduta de Jesus justamente porque esses senhores, todos eles, incluindo o chefe de Governo, se apresentam (acredite quem quiser) como fiéis e incansáveis discípulos do Mestre dos Mestres. Eis o relato do comportamento de Jesus Cristo transcrito diretamente da Bíblia, abstraído o debate se aconteceram dois episódios distintos: “Então ele fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e os bois; espalhou as moedas dos cambistas e virou as suas mesas. Aos que vendiam pombas disse: ‘Tirem estas coisas daqui! Parem de fazer da casa de meu Pai um mercado!’ ” (João 2:15-16). “Jesus entrou no templo e expulsou todos os que ali estavam comprando e vendendo. Derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas, e lhes disse: ‘Está escrito: ‘A minha casa será chamada casa de oração’; mas vocês estão fazendo dela um ‘covil de ladrões’ ”. (Mateus 21:12-13). Obviamente, a solução operada por Jesus (provavelmente o espírito mais evoluindo que já andou pela face da Terra) não deve ser tomada no sentido literal para os dias modernos. Não é o caso de expulsar, de chicote na mão, os vendilhões da educação brasileira. Entretanto, a revolta e a repulsa do Cristo devem ser as mesmas para adoção das sanções jurídicas pertinentes (improbidade administrativa, penais e civis) e das consequências políticas. Nesse último quesito, é dever da cidadania consequente combater a permanência desses malfeitores no cenário político e, sobretudo, nos espaços públicos de poder. É crucial recusar voto, apoio, espaço, olhos e ouvidos para esses mercadores da fé, da educação, dos sonhos e da dignidade dos brasileiros, a começar pelo principal e mais graduado deles.
  • *Advogado, Mestre em Direito, Procurador da Fazenda Nacional.

Clube do Livro “Espiritismo e Sociedade”

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Durante o ano de 2022, o EàE e a ABPE lançarão conjuntamente pela Editora Comenius seis livros de autores clássicos do espiritismo progressista que representam alguns aspectos do debate em torno da questão social e sua relação com as propostas espíritas.

Estão previstas as seguintes obras:

  • Socialismo e espiritismo”, de Leon Denis (em nova tradução de Sergio Mauricio Pinto)
  • Os espiritualistas perante a paz e o marxismo”, de Eusínio Lavigne
  • Dialética e metapsíquica”, de Humberto Mariotti (na tradução de Júlio Abreu Filho)
  • Conceito espírita de socialismo”, de Cosme Mariño (também em nova tradução)
  • Espiritismo dialético”, de Manuel Porteiro
  • O pensamento social de Herculano Pires”, de Dora Incontri

Um francês, dois brasileiros e três argentinos. Quem são esses espíritas progressistas?

  • Léon Denis (1846-1927) foi um pensador espírita francês, médium e um dos principais continuadores do espiritismo após a morte de Allan Kardec, ao lado de Gabriel Delanne e Camille Flammarion.
  • Eusínio Lavigne (1873-1973), baiano de Ilhéus, foi espírita, político, jurista, jornalista, escritor e marxista. Participou de vários movimentos sociais e políticos democráticos, escreveu diversos livros sobre as relações entre o espiritismo e o socialismo.
  • Humberto Mariotti (1905-1982), poeta, escritor, jornalista, conferencista e intelectual espírita argentino. Foi presidente da Confederação Espírita Argentina (CEA), da Sociedade Victor Hugo, e diretor da revista de cultura espírita “La Idea”.
  • Cosme Mariño (1847-1927), escritor, jornalista e jurista argentino, foi o fundador da primeira sociedade espírita de Buenos Aires. Combateu a intolerância religiosa e a mistificação, e consolidou o espiritismo na Argentina através de seus textos em livros e jornais.
  • Manuel Porteiro (1881-1936), autodidata argentino, ao lado de Humberto Mariotti, participou do V Congresso Espírita Internacional, realizado em Barcelona, Espanha, em outubro de 1934. Escreveu diversos artigos para a revista “La Idea”, e livros que expressavam sua ideia de uma sociologia espírita.
  • José Herculano Pires (1914-1979), paulista de Avaré, foi um jornalista, filósofo, educador, escritor e tradutor brasileiro. Destacou-se como um dos mais ativos divulgadores do espiritismo no país. Traduziu os escritos de Allan Kardec e escreveu tanto estudos filosóficos, quanto obras literárias inspiradas na doutrina espírita.

Todos os livros contarão com um prefácio contextualizando os autores e suas obras.

A série de livros apresentada é coordenada por Dora Incontri e Sergio Mauricio.

Para a viabilização econômica dessa iniciativa, estamos lançando o Clube do Livro “Espiritismo e Sociedade”, e convidamos vocês a participarem dessa proposta, que deverá durar entre março de 2022 a fevereiro de 2023.

Como funciona?

Quem aderir ao Clube do Livro, receberá um carnê on-line de boletos mensais de R$ 35,00, com duração de março de 2022 a fevereiro de 2023. A cada dois meses, receberá em casa um exemplar dessas obras acima. Nesse valor já está incluído o preço do frete.

CLIQUE AQUI PARA ADERIR AO CLUBE

Quantas pessoas precisam aderir?

Para viabilizar traduções, revisões, capas, impressões na gráfica, administração do clube, emissão de boletos e outras despesas, precisamos de pelo menos 200 pessoas. Tendo a adesão desse número, iniciamos as publicações e outros interessados poderão entrar no clube depois, com o limite de data máxima até julho.

Nesses tempos de retrocessos do pensamento e de conservadorismo social e político, consideramos de vital importância conhecermos os autores progressistas da história do espiritismo que deram suas contribuições para a construção de um pensamento social espírita.

Ainda restaram dúvidas?

Fale com o EàE pelo seu portal na internet (www.espiritasaesquerda.com.br) ou mande mensagem para contato@espiritasaesquerda.com.br ou contato@editoracomenius.com.br.

Chico-Kardec: uma farsa intencional

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O médium Chico Xavier merece nosso profundo respeito, como de resto todas as pessoas que dedicam sua vida ao auxílio ao próximo, como são também exemplos Dulce Maria, tornada santa pela Igreja Católica, e o médium Zélio Fernandino, fundador da umbanda. E não se pretende nesse breve texto discutir as relações e diferenças entre ação de promoção social e ação assistencialista, que muito bem caberia, mas não é o objetivo.

Feitas as ressalvas iniciais, o que se pretende unicamente é discutir um aspecto curioso da parte do movimento espírita vinculada à sacralização do médium Chico Xavier, o que acabou por dar origem a um neologismo recorrente: o chiquismo. Cabe ressaltar que em nenhuma hipótese se pretende fazer o movimento inverso: o da sacralização de Kardec, pois se entende que sua obra é passível de análise e críticas como a de qualquer outro autor e nela não há verdades incontestes, mas propostas para a transformação do mundo e do ser humano.

É preciso, portanto, para uma análise tranquila e objetiva, distinguir a extensa obra produzida pelo famoso médium mineiro de suas características humanas. Chico, à revelia de seus idólatras, era um homem com virtudes e defeitos, como o são todas as demais pessoas que viveram ou ainda vivem a experiência corporal nesse planeta. E isso tem que estar claro porque o que se pretende é apontar para um desvio de percurso perigoso do movimento espírita, que é a ideia de associar a personalidade de Chico Xavier ao fundador do espiritismo, o lionês Allan Kardec. Esse desvio imenso e arriscado quer fazer, de todas as formas, coincidir os dois espíritos como se fossem um só, ou seja, a ideia bizarra de que Chico Xavier seria a reencarnação de Allan Kardec.

O desejo de impor essa insensata narrativa é tamanho que teve médium sugerindo ser o casamento entre Denisard Hypolite[1] e Amélie Gabrielle um mero conviver de dois amigos, sugerindo uma relação assexuada do casal visando a aproximar as escolhas da vida privada de Kardec às de Chico. Para isso, a esdrúxula ilação usou de três “provas”: a) o fato de ser Amélie nove anos mais velha que Denisard; b) que ela teria por ele um amor maternal e não o amor por um homem; e c) que o casal não teve filhos.

Afora o fato de que é o próprio Allan Kardec, em sua obra “O livro dos médiuns[2], quem sugere a deturpação filosófica daqueles que endeusam médiuns e demais líderes espíritas, a razão, por si só, bastaria para perceber o desvio crasso daqueles que escolhem esse caminho que inexoravelmente leva ao abismo da irracionalidade mística, da religiosidade piegas e da idolatria improfícua.

Poder-se-ia iniciar o texto fazendo uma extensa análise das diferenças profundas entre as duas personalidades, o que marcaria de forma explícita a impossibilidade da reencarnação do homem racional e cuidadoso com as questões científicas num homem místico e com exacerbadas propensões religiosas. Mas o que se pretende é explorar algo ainda mais grave que subjaz à intencionalidade dessa esdrúxula hipótese: a tentativa vã de igualar a importância, junto ao movimento espírita, da obra mediúnica de Chico Xavier e da obra produzida pelo educador e pesquisador Denisard.

A obra mediúnica de Chico Xavier tem produções muito interessantes e outras ruins. E há outras advindas da sua mediunidade que são lamentáveis, como são exemplos a obra “Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho”, atribuída ao espírito Humberto de Campos, e a obra “Desobsessão”, atribuída ao um espírito que a assina como André Luiz.

O livro “Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho”, datado de 1938, época da ditadura Vargas, período histórico conhecido como Estado Novo, além de deturpar a história brasileira, traz a histeria anticomunista e perigosamente fascista da época em que se vivia. E a exaltação reiterada a essa péssima obra nos tempos atuais apenas ilustra seu papel de anteparo político-doutrinário, à direita espírita, a que sempre se prestou desde sua primeira edição, no final da década de 1930, como ilustra o trecho abaixo:

Nesta época de confusão e amargura, quando, com as mais justas razões, se tem, por toda parte, a triste organização do homem econômico da filosofia marxista, que vem destruir todo o patrimônio de tradições dos que lutaram e sofreram no pretérito da humanidade, as medidas de repressão e de segurança devem ser tomadas a bem das coletividades e das instituições, a fim de que uma onda inconsciente de destruição e morticínio não elimine o altar de esperanças da pátria. Que o capitalismo, visando à própria tranquilidade coletiva, seja chamado pelas administrações ao debate, a incentivar com os seus largos recursos a campanha do livro, do saneamento e do trabalho, em favor da concórdia universal.”[3]

É preciso, portanto, destacar e denunciar que a intenção não verbalizada de classificar a obra mediúnica do médium de Pedro Leopoldo como complementar à obra de Kardec e, mais, como inaceitável continuidade da elaboração doutrinária do espiritismo, não passa de ardil para justificação, como se tem visto amiúde, de mensagens políticas esdrúxulas e incompatíveis com as verdadeiras propostas espíritas legadas pelos espíritos que auxiliaram Kardec.

A insistência nesse tema por alguns médiuns, palestrantes e dirigentes é proposital. Porque se pode facilmente perceber que todos esses modernos propagadores dessa estranha hipótese apoiaram ou apoiam a degradação moral e cognitiva, conhecida como bolsonarismo, que se entranhou como uma doença no movimento espírita, tornando-o uma proposta místico-religiosa que prega o anticientificismo e apela à irracionalidade fideísta como caminho da prática espírita e como proposta de atuação política do adepto do bolsoespiritismo.

Não é pueril ou desinteressada essa associação entre os espíritos de Kardec e de Chico Xavier. À revelia dos méritos pessoais de cada um, as obras de Chico e de Kardec são díspares, opostas, e não é possível considerá-las complementares, a não ser, claro, que haja a intenção, que é o caso, de se usar a obra do médium mineiro como nova e estranha referência doutrinária do espiritismo para justificar opções políticas protofascistas.

Notas:

[1] Grafia original do nome de Kardec encontrada em sua certidão de nascimento.

[2] KARDEC, Allan. O livro dos médiuns. Brasília, DF: FEB, 2020. p.244.

[3] XAVIER, Francisco C. Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 1938. p.167-168.

O Natal de Eny, a advogada movida pela indignação

Feminismos com Elizabeth Hernandes (EàE-DF)

Mulheres de fé – I

O Natal de Eny, a advogada movida pela indignação

O ano de 2022 começa com uma grande perda. Eny Raimundo Moreira se retira da dimensão material, deixando-nos o dever de honrar seu legado de altivez, resistência e luta.

Por ocasião de sua partida, viralizou nas redes sociais o comovente texto escrito por Frei Betto, narrando a visita que recebeu, na penitenciária de Presidente Venceslau (SP), em 1972[1].

Em seu relato, Betto conta que os prisioneiros conseguiram convencer o capelão do presídio a permitir a participação de Eny na missa daquela noite especial. Durante a celebração, o diretor do presídio discursou e, entusiasmando-se com a própria demagogia, convidou Eny a falar aos presos.

Impossível de reproduzir o que disse. Um canto de amor não pode ser descrito. Como doce perfume, suas palavras contagiaram o ambiente. Seu carinho penetrou o coração de cada presidiário. Só lembro que terminou dizendo: ‘Beijo cada um de vocês’. Mas não se limitou à palavra. Emocionada, preferiu uma atitude: ‘É noite de natal e quero abraçar cada um de vocês’.”[1]

Ao invés de estar com seus familiares, naquele Natal, Eny escolheu abraçar 400 homens encarcerados e, dentre estes, cinco considerados “terroristas” pelo governo vigente. Segundo o relato do frei, dentre os “não terroristas”, alguns, entre lágrimas, disseram o que era considerado um grande elogio, naquele contexto: “Frei, por esta mulher, eu mato qualquer um”. E outro começou a morrer ali mesmo quando afirmou: “eu não acreditava em gente boa, mas agora sou obrigado a reconhecer que estava errado”. Morria para renascer como homem novo. Um homem que, agora, tinha fé na bondade[1].

A advogada, que foi estagiária no escritório de Heráclito Fontoura Sobral Pinto, certamente merecerá artigos, teses, biografias etc. Mas será difícil definir a mulher que, na defesa de Paulo Vanuchi, notando a atitude incrédula do juiz militar acerca da tortura infligida ao seu cliente, recorreu ao simples, que é sempre o mais eficaz, ordenando que Vanuchi se despisse em pleno tribunal e expusesse as marcas da indignidade inaceitável da tortura[2].

De acordo com o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, citado por Castro (2021)[3], em artigo que destaca a advocacia como “a profissão da solidariedade e da empatia”, são finalidades da Ordem “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.

É possível imaginar uma jovem mulher sendo fiel a esse Estatuto, no auge dos anos de chumbo? É possível, mas não é necessário. Não foi imaginação, foi vida vivida.

Foi Eny buscando Ísis de Oliveira em presídios e não conseguindo evitar que a militante da Aliança Libertadora Nacional fosse morta nos porões da ditadura; defendendo estudantes presos e torturados nas dependências do DOI-Codi do Rio de Janeiro, juntamente com outros dois advogados, Lino Machado Filho e Humberto Jansen de Melo e fazendo com que o Cardeal Eugênio Sales interferisse e garantisse a integridade física do grupo[3].

Onze anos após o encerramento –oficial– dos anos de tortura, Eny foi presa, numa sessão de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), por sustentar que seu cliente tinha o direito de permanecer calado. Nessa ocasião, surpreendeu a todos a grande quantidade de parlamentares que saíram em sua defesa, inclusive José Genoíno, que não contara, diretamente, com os serviços da valente causídica: (…) essa pessoa aqui é feita de material humano diferente (…) porque eram estas pessoas que iam lá no parlatório, ficavam três horas e corriam muito risco. Isso é um valor muito grande porque hoje essas coisas, às vezes dão publicidade, mas naquela época não dava, e estas pessoas faziam isso (…).[2]

Eny fazia o que achava correto, mesmo quando não dava publicidade.

Na pesquisa feita para esse artigo, não foi possível saber se Eny seguia outra deusa que não a Themis. Sabe-se, porém, que liderou um projeto financiado pelo Conselho Mundial de Igrejas: Brasil, Nunca Mais. Segundo Pedlowski e Asfora (2010)[2], o objetivo inicial era a realização de um levantamento da situação dos presos políticos. Mas como falar de prisões políticas, no Brasil da ditadura militar, sem falar de tortura? Assim, o projeto evoluiu para a documentação da existência de tortura, a partir dos documentos elaborados pelo próprio regime militar, quando tentou legalizar o ilegalizável.

Muito ainda se pode falar da vida de Eny, porém, neste espaço que aborda mulheres, política e religião, vamos especular sobre seu posicionamento religioso.

No livro “Espiritismo, sociedade e política”, no capítulo “Bem, caridade e política: relações necessárias”[4], o autor inicia destacando uma passagem evangélica e uma pergunta/resposta de “O livro dos espíritos”:

Senhor, quando é que te vimos com fome ou com sede, forasteiro ou nu, doente ou preso e não te servimos? E ele responderá com essas palavras: Em verdade vos digo: todas as vezes em que deixastes de fazer a um desses pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer” (Mateus, 25, 44-45).

Em um único dia Eny visitou presos, forasteiros e também aplacou sua sede e sua fome de afeto e de esperança.

Na pergunta 629, de “O livro dos espíritos”, temos: “Que definição se pode dar à moral? – A moral é a regra da boa conduta e portanto, da distinção entre o bem e o mal. Funda-se na observação da lei de Deus. O homem se conduz bem quando faz tudo tendo em vista o bem e para o bem de todos, porque então observa a lei de Deus.

A advogada Eny Moreira, apoiando-se num sistema de leis que, à época, estava fragilizado e desmoralizado, cumpriu o que “O livro dos espíritos” traz como a observação da lei de Deus. Ao visitar seus clientes, prestou assistência a toda a comunidade do entorno. Não deixou nem um encarcerado sem o acalento de sua presença. E, ao fazer isso, também avançou na luta pela reconquista de um precioso bem coletivo, que só seria recuperado muitos anos depois, a democracia.

Até onde se sabe, Eny não era espírita e, provavelmente, não utilizava a expressão “reforma íntima”, que pode ser caracterizada como uma busca pelo bom caminho, descrito no item “Missão dos espíritas”, capítulo XX de “O evangelho segundo o espiritismo”:

(…) como reconhecer os que se acham no bom caminho? Podeis reconhecê-los pelo ensino e prática dos verdadeiros princípios da caridade; pela consolação que distribuírem aos aflitos; pelo amor que dedicarem ao próximo; pela sua abnegação e seu altruísmo.”

Tudo que se encontrou registrado, acerca da atuação da Doutora Eny, revela coerência com a noite de Natal descrita por Frei Betto. A jovem advogada viveu para ver a derrocada da ditadura militar.

Eny Moreira deverá ser lembrada como uma militante política que primou por atuar apaixonadamente em defesa da restauração da democracia no Brasil e que, movida por uma profunda indignação, jamais se curvou frente às pressões e ameaças que recebeu” (Pedlowski e Asfora, 2010, p.222)[2].

Eny não distribuía cestas básicas, advogava. É a única mulher citada num livro registrou a atuação dos bacharéis que trabalharam em conformidade com a definição de Sobral Pinto, destacada na contracapa:

O advogado só é advogado quando tem coragem de se opor aos poderosos de todo gênero que se dedicam à opressão pelo poder. É dever do advogado defender o oprimido. Se não o faz, está apenas se dedicando a uma profissão que lhe dá sustento e à sua família. Não é advogado.”

Também não se encontra nenhuma menção à Eny como pessoa caridosa. Para compreender essa dimensão, teremos de recorrer à literatura espírita progressista:

Passando, portanto, ao próximo ciclo da espiral dialética na busca de sua transformação moral e cognitiva, os espíritas precisam despertar para a forma de caridade mais abrangente e pautada nas necessidades reais da sociedade em que vivem. Essa forma de caridade tem o nome singelo de política. Ela é a expressão maior da caridade, pois é por meio da atividade política, pautada no respeito e no desprendimento, que se pode alcançar a totalidade da sociedade que se administra ou legisla. Apesar da repulsa que muitos espíritas ainda sentem pela participação mais ativa na política, consolidando dentro do ambiente das casas espíritas o errôneo conceito da criminalização da atividade política, deve-se ressaltar que ela não é apenas uma forma possível de solução dos graves problemas sociais em que se vive, a política é a única forma real de solução e qualquer outra forma, por mais que haja empenho e amor envolvidos, será simplesmente uma ação paliativa que resolve problemas pontuais sem alcance significativo” (Pinto, 2021, p.212)[4].

Enfim, Eny Raimundo Moreira, presente e necessária, aqui na terra, está no céu. Qualquer que seja sua definição de céu.

Notas:

[1] Christo, Carlos Alberto Libânio . Eny Raimundo Moreira, a advogada que enfrentou a Ditadura Militar. Disponível em https://www.freibetto.org/index.php/artigos/14-artigos

[2] Pedlowski, Marcos A.; Asfora, Nicolle. Eny Moreira: breve história de uma advogada movida pela indignação. In: Sá, Fernando; Munteal, Oswaldo; Martins, Paulo Emílio (orgs). Os advogados e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

[3] Castro, Aldemário Araújo. Advocacia: a profissão da solidariedade social e da empatia. Disponível em https://questaopolitica.com.br/advocacia-a-profissao-da-solidariedade-social-e-da-empatia/

[4] Pinto, Sergio Mauricio. Bem, caridade e política: relações necessárias. In: Incontri, Dora; Pinto, Sergio Mauricio (orgs). Espiritismo, sociedade e política: projetos de transformação. Bragança Paulista: Comenius, 2021.

Além da inteligência, use seu instinto.

COLUNA Releituras kardecistas – Marcio Sales Saraiva

Como é que pessoas sem grande formação educacional-cultural conseguem-se sair muito bem, por vezes até melhor, do que outras que tem um currículo acadêmico invejável?

Além da inteligência cognitiva, fruto do acúmulo de conhecimentos e da capacidade analítica dos mesmos, temos também o nosso instinto, nosso “sexto sentido”, nossa intuição que emerge das profundezas inconscientes do nosso ser que vem renascendo ao longo das eras e acumulando muita experiência. E os bons espíritos dizem que “inteligência [no sentido de psiquismo] e matéria são independentes” (questão 71), ou seja, o espiritismo kardequiano é dualista.

Em “O livro dos espíritos”, os mentores explicam os limites da inteligência, do psiquismo humano, para Allan Kardec, mostrando que nem tudo temos condições de compreender, nem eles, os espíritos, de explicar.

72-a. Poder-se-ia dizer que cada ser tira uma porção de inteligência da fonte universal e a assimila, como tira e assimila o princípio da vida material?

Isto não é mais que uma comparação; mas não exata, porque a inteligência é uma faculdade própria de cada ser e constitui a sua individualidade moral [ou sua bagagem pessoal ao longo de diversas encarnações]. De resto, bem o sabeis, há coisas que não é dado ao homem penetrar, e esta, por enquanto, é uma delas.”

Então, até onde podemos compreender, de acordo com a visão que nos é dada pelos espíritos, é que o chamado “instinto” é uma espécie de inteligência, mas “não racional” (questão 73). Em outras palavras, a inteligência é fruto da consciência e de nossa capacidade cognitiva-racional, mas o nosso instinto vem de uma camada mais profunda e inconsciente, é uma espécie de inteligência intuitiva e não racional.

Há quem diga que Allan Kardec era um racionalista fanático, mas não é bem assim. Os próprios espíritos dizem que o ser humano erra ao “desprezar” o instinto, o insight, a inteligência não racional que trazemos.

Por que erra o ser humano ao não dar valor a essa outra forma de inteligência, que Kardec chama de “inteligência rudimentar”?

A resposta é chocante para quem desconhece o kardecismo:

O instinto existe sempre, mas o homem o negligencia. O instinto pode também conduzir ao bem; ele nos guia quase sempre, e às vezes mais seguramente que a razão; ele nunca se engana.” (questão 75)

Note bem! O instinto, essa inteligência não racional, sempre existiu, quase sempre nos guia ao caminho do bem e, pasmem!, é geralmente mais seguro do que a própria razão, essa deusa louvada pela modernidade iluminista que Kardec tanto bebeu filosoficamente. E tem mais. Comparado com a razão cognitiva, o instinto, nosso “sexto sentido” –como se diz no senso comum–, “nunca se engana”. Repito. Os espíritos dizem: “nunca se engana”!

Sendo assim, nós, kardecistas, deveríamos estudar mais e valorizar nossos insights, essa inteligência emocional e não racional que nos conduz ao reto caminho e, geralmente, de uma maneira mais sábia do que todas as teorias racionais que decoramos. Sejamos mais intuitivos e menos arrogantes quanto ao conhecimento intelectual.

Não Olhe Para Cima: a estranha comédia que não faz rir, mas faz pensar

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Está bombando em audiência o filme Não Olhe Para Cima, lançado esta semana pela Netflix. É uma comédia que não faz rir ou, pelo menos, gera um riso nervoso. Porque é tão realista que chega a exagerar na caricatura dos personagens, mas é impossível não comparar os personagens com muitos seres da vida real.

O filme trata de negacionismo científico, mas trata também de como as elites do Planeta se relacionam com ele, e como a humanidade está afogada e submissa a um jogo de imagens, narrativas e ilusões.

Meryl Streep faz a caricatura da presidenta negacionista e oportunista.

A trama começa com a descoberta por dois astrônomos (Leonardo Di Caprio e Jennifer Lawrence) de um enorme cometa que vai colidir com a Terra em alguns meses e, certamente, vai causar a extinção todas as espécies. Mas a presidenta do EUA (Meryl Streep) está preocupada com as eleições e não quer dar notícias ruins, e escancara o negacionismo.

A história vai agregando figuras conhecidas do nosso cenário, como a cantora celebridade que faz com que a relação com seu namorado seja mais relevante do que o fim do mundo, ou os apresentadores de TV que tentam dar “leveza” à notícia do fim das espécies para não aborrecer ou espantar audiência.

O mais impressionante e escandalosamente real é o empresariado que vê uma “oportunidade” no apocalipse para gerar riqueza (para eles). E a relação com Elon Musk (dono da Tesla) ou Jeff Bezos (dono da Amazon) e suas viagens espaciais certamente não é mera coincidência.

Quem deseja um filme “cabeça” vai se decepcionar, porque a opção do diretor Adam McKay é uma metáfora da grosseria, da superficialidade, das aparências. Mas o curioso é que, mesmo os personagens caricatos e estereotipados, ainda parecem “suaves” diante de Trumps, Bolsonaros e Orbáns que são reais demais.

O filme tem passagens muito engraçadas, mas causa mais desconforto do que vontade de rir. As referências a um apocalipse iminente evocam nossa crise climática e anunciam a estratégia das elites capitalistas: simplesmente abandonar o Planeta depois de sugá-lo até a última gota.

Veja o trailer oficial

 

O cometa e o Natal

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Há cerca de dois mil anos, um cometa, segundo relatos da época, indicou o caminho de onde ocorreria o nascimento daquele que anunciaria um mundo novo, uma nova sociedade sem injustiça, sem desigualdade, sem opressão. O cosmo ao redor desse planeta, que é a nossa casa, dizia, da sua forma, qual o caminho para a transformação da nossa realidade. Esse homem, nascido duma família em fuga e amedrontada pela opressão social, anunciou um reino que não faria parte do mundo conhecido, do mundo onde vivem os oprimidos por um sistema que tritura vidas e corpos. Sua mensagem ecoou no tempo e até hoje enche de esperança o coração daqueles que sonham com esse reino que não é desse mundo. Os espíritas temos, na mensagem desse homem, a bússola que orienta nossas lutas, ações e reflexões, porque as propostas espíritas são integralmente pautadas pelo esperançar, por ele, semeado entre nós. E aqui não há um religiosismo piegas, barato, mas apenas a constatação de que o caminho indicado é o que nos movimenta e transformará as estruturas que sustentam esse sistema injusto e cruel, porque essa nossa esperança é capaz de mover as montanhas que se interpõem entre nosso sonho e sua realização. Que possamos ser a terra generosa onde as sementes dessa esperança dum mundo mais justo e fraterno possam brotar em plenitude naquilo que nos propomos a fazer. Espíritas, o “amai-vos” é o chamado para transformar o mundo. Essa é a tarefa histórica de todo aquele que se coloca como seguidor dessa profunda e bela mensagem de esperança. Feliz Natal.

Viver, morrer e renascer até a plenitude

Releituras kardecistas com Marcio Sales Saraiva

Aprendemos no espiritismo que o corpo humano é composto de três dimensões entrelaçadas: o corpo físico (matéria orgânica), o corpo perispiritual (outras escolas chamam de corpo energético ou corpo astral) e o espírito. A ligação entre o espírito e o corpo físico se dá pelo corpo perispiritual ou períspirito. Pense, apenas como alegoria, na casca do ovo como sendo seu corpo físico, na clara como o períspirito e na gema como espírito. Somos uma trindade regida pelo espírito imortal.

Em todos os elementos orgânicos do nosso planeta, encontramos o que o espiritismo chama de “princípio vital” ou “fluido vital”. É um tipo de energia que mantém a atividade desses corpos, incluindo o corpo perispiritual. Na ausência dessa energia, desse princípio vital, cessa a vida orgânica e os movimentos. Quando morremos ou quando morre um animal ou uma planta, o princípio vital dissipou-se na natureza, retornou ao “fluido cósmico universal”, retornou para a energia cósmica que sustenta a vida do universo.

Esse princípio vital é importante para compreendermos os passes espíritas, as curas espirituais, as questões alimentares, os fenômenos mediúnicos etc., mas concentro-me aqui na questão da morte.

A morte é, nos seres orgânicos, como nós, “exaustão dos órgãos” (questão 68 de “O livro dos espíritos”). Esgotou-se o princípio vital daquela maquinaria orgânica, exceção feita ao suicídio direto que faremos comentários em outra oportunidade. Isto é, morreu porque a máquina escangalhou, “a vida se esvai” (68-a). É quando o espírito (com seu corpo perispiritual) se desliga do corpo físico, da matéria, e “a matéria inerte se decompõe e vai formar novos seres; o princípio vital retorna à massa” (questão 70).

Kardec faz um comentário interessante, dentro do contexto da segunda metade do século XIX:

“Temos uma imagem mais exata da vida e da morte num aparelho elétrico. Esse aparelho recebe a eletricidade e a conserva em estado potencial, como todos os corpos da natureza. Os fenômenos elétricos, porém, não se manifestam enquanto o fluido não for posto em movimento por uma causa especial, e só então se poderá dizer que o aparelho está vivo. Cessando a causa da atividade, o fenômeno cessa: o aparelho volta ao estado de inércia. Os corpos orgânicos seriam, assim, como pilhas ou aparelhos elétricos nos quais a atividade do fluido produz o fenômeno da vida: a cessação dessa atividade ocasiona a morte.”

Acabou a pilha, acabou a luz, o corpo se apaga. É a morte em sua dimensão material. Um fenômeno absolutamente natural, mas que é carregado de simbolismos culturais, arquetípicos, religiosos e afetivos profundos.

Durante muito tempo, no mundo ocidental, duas interpretações prevaleceram diante da morte. A primeira, materialista e posterior à Idade Média, dizia que tudo se acaba com a morte do corpo físico, pois nada existe além disso. A outra, religiosa, dizia que a alma seria julgada e iria ao céu ou ao inferno (se for católico, ainda poderia apelar para o purgatório). Claro que, dentro do campo religioso cristão, há inúmeras questiúnculas teológicas que não quero me deter aqui.

O espiritismo traz uma concepção nova para o ocidente cristão, ainda que já velha conhecida dos orientais e até mesmo de algumas interpretações bíblicas dos primeiros séculos (que foram considerado heréticas). A morte do corpo físico não é o fim da vida, mas sua continuidade em outra dimensão e que, mais tarde, essa mesma e única vida iria encarnar-se em novo corpo para dar sequência ao seu progresso espiritual até a plenitude, a perfeita iluminação, a libertação da “roda de samsara” das reencarnações físicas, até ser “um com Cristo”.

A morte existe, para o espiritismo, como fenômeno orgânico, mas não como totalidade da vida, posto que a vida continua, o espírito abandona o exausto corpo material para depois retomar sua jornada na direção da divindade, do sistema, do infinito. E esse é apenas um dos sentidos em que o espiritismo traz uma visão de mundo consoladora e avessa ao desespero, ainda que respeitadora de toda a dor e luto, processos psicológicos fundamentais de qualquer “perda” ou separação, pois a alma precisa de tempo, sempre.

Como espíritas, choramos a morte como quem se despede de alguém que viajará por longo tempo e que, o mais provável, não poderá fazer contato direto conosco. É um processo doloroso, sem dúvidas, mas não é o fim da história. Ao conhecermos o espiritismo e compreendermos suas pesquisas, seus dados empíricos e suas evidências, educamo-nos diante da morte –como dizia Herculano Pires– e podemos até repetir com Francisco de Assis, “ó, irmã morte”, posto que o pânico perdeu o sentido. Sabemos que a vida continua.

Em outras palavras, o estudo sério do espiritismo nos faz entender aquilo que Jesus falou –e foi anotado pelo evangelista Lucas (20:38)– quando disse: “Deus não é Deus de mortos, mas sim de vivos, pois para Ele todos vivem”. Tudo é vida. Nada morre definitivamente, mas tudo se transforma, certamente. E o corpo físico na terra se transmutará e alimentará outras formas de vida, pois nada se perde, enquanto o espírito segue sua caminhada, por vezes tropeçando e caindo, mas recomeçando e avançando sempre.

A escolha para o STF por critério religioso é perigosa para a democracia

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A escolha recente de André Mendonça para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal deve disparar todos os alarmes de risco para a democracia e o estado de direito. Ele é o “terrivelmente evangélico” prometido pelo presidente à sua base e escolhido com a capitulação da maioria dos senadores. Não se trata de se opor aos evangélicos ou a qualquer religião, mas, sobretudo, de defender o estado laico que, democraticamente, respeite e preserve o direito de livre credo, de pluralidade cultural e religiosa. O estado laico não é um estado ateu e sim um estado que admite todos os deuses e crenças –e também a descrença–, que defende o direito de cada cidadão ter ou não suas crenças, devoções e práticas espirituais, que não se imiscui na prática religiosa por entendê-la como de âmbito exclusivamente privado e que não permite que a religião privada também se misture aos interesses coletivos. André Mendonça personifica muitas coisas ruins, além de ser considerado pífio como jurista. Sua passagem pela cadeira de Ministro da Justiça foi caracterizada pelo uso da Polícia Federal para perseguir jornalistas e quem criticava o governo. É evidentemente servil ao chefe do executivo e será protetor da família presidencial, que tem vários processos chegando ao STF. O pior de tudo, no entanto, é que, embora Mendonça tenha jurado aos senadores que vai seguir a Constituição, é evidente que seu fundamentalismo confessional vai orientar seus julgamentos. Quando ele afirma que sua indicação é “um passo para um homem, um salto para os evangélicos” não disfarça o que virá. Aliás, essa frase retrata um STF sendo vencido pelo fundamentalismo religioso. Além de defender a família miliciana, Mendonça vai atuar especialmente na pauta de costumes e na defesa das igrejas evangélicas neopentecostais e seus privilégios fiscais e institucionais. A posse e acesso de tais organizações a canais de comunicação terá em Mendonça um defensor. Mas de onde se pode esperar mais empenho do novo ministro é na chamada “pauta de costumes”, as questões permeadas pela moralidade conservadora. Demandas da comunidade LGBTQIA+ certamente serão rechaçadas; casamento entre pessoas do mesmo sexo terá um adversário; debates sobre política antidrogas e uso medicinal de algumas delas serão obstados; qualquer menção a aborto será tratada como heresia; e por aí adiante. No STF, Mendonça terá o compadrio de Kassio Nunes Marques, que já demonstrou como os indicados de Bolsonaro desprezam a lógica do direito para fazer valer seus valores e conceitos. Com certeza o país acaba de dar um passo atrás na democracia e se pode prever para breve muitos absurdos, injustiças e crueldades sendo defendidas em nome de Jesus.

São arrogantes os que sabem pouco: Denis, evocações e política

COLUNA – Feminismos com Elizabeth Hernandes (EàE-DF)

O estudo de ontem, do Grupo de Estudos Léon Denis, abordou o Capítulo VII do livro “Socialismo e espiritismo”, de Léon Denis.

Sinceridade, como sempre?

Já estava bem cansada desse livro e deixei pra ler nos últimos momentos antes da reunião porque “afff… já entendi a do Denis e ele não entendeu nada do materialismo histórico; e já cansei desse discurso socialismo-pra-quando-todos-fizerem-a-reforma-íntima”. Pois é, como todos que sabem pouco, às vezes sou bem arrogante e esse era o meu estado de espírito um pouco antes da reunião.

Mas no Capítulo VII, Monsieur Denis resolveu inovar (pelo menos para mim) e evocou espíritos para fazer uma análise de conjuntura política da França/Europa de 1924 e dar uma animada no livro que eu já estava achando muito chato…

Oi? Evocar? Espíritos falando de política?

O estudo rendeu e foi muito. Um camarada, no Nordeste, fez uma crítica ao livro “Desobsessão” (André Luiz/Chico Xavier). Um do Norte aproveitou a deixa e disse que a obra inteirinha de André Luiz não complementa é nada, porque contradiz a sistematização de Kardec e o que contradiz não pode ser complementar.

Quando se comentou o conteúdo das mensagens psicografadas, apresentadas nesse capítulo sete, destacou-se a reafirmação de uma premissa do espiritismo, a de que os espíritos somos nós e vice-versa. Os autores dos textos citados por Denis (que não os nominou) foram apresentados como “muitos dos quais participaram na direção política do último século”. E eles expressavam opiniões individualizadas à direita e à esquerda. Um deles se referia, inclusive, aos ingleses com francesa clareza citando “(…) o egoísmo e a lógica demasiado puritana inglesa”.

O estudo suscitou questionamentos acerca das vivências que nós, os espíritas que hoje se “congregam” à esquerda, vivemos nas casas espíritas tradicionais: por que, naquelas casas, a evocação é praticamente um tabu, uma proibição? Em que dia foi esquecido o nome original de “O livro dos médiuns” (“Le livre des médiums ou guide des médiums et des evocateurs”)? Quem será capaz de esquecer o “telefone toca de lá pra cá”? E mais: se nem as almas frequentadoras do centro espírita podem falar sobre política, como conversar sobre o assunto com os desencarnados?

E aqui, minha opinião: esse “não falar de política” é igualzinho ao dos grupos de família, do condomínio ou da rua. Fala-se e vive-se política o tempo todo nas casas espíritas, pelo simples fato de que onde há seres humanos trabalhando em grupo, há relações políticas. Na verdade, só não se pode falar de política se a fala for de encontro aos posicionamentos da FEB, historicamente declarada “apolítica” por ser religiosa, mas pragmaticamente alinhada à direita, (acho que desde sempre). Isso fica patente pelas posições assumidas por expoentes do movimento, conhecidos em âmbito nacional e até mundial; pela predominância de militares na direção das casas e pela filiação partidária de políticos que se assumem espíritas. Médiuns e palestrantes famosos ou políticos espíritas são, em sua maioria, também grandes expoentes da ideologia da direita. E defender sua ideologia é legítimo, desde que não as atribuam a “espíritos superiores” ou que não usem de sua fama para atacar quem pensa diferente. Também não é legítimo que, por causa da fama que têm, levem muitos a relacionar espiritismo com posturas de extrema-direita, ali juntinho com o fascismo e com o negacionismo científico.

No decorrer das discussões foi apresentada uma imagem bem ilustrativa da convivência entre encarnados e desencarnados segundo a qual somos todos participantes de uma “corrida de revezamento”, que conta com numerosa assistência, torcendo contra e a favor. Quando encarnados, estamos na pista portando o bastão e temos de fazer o nosso melhor, tanto no desempenho individual quanto coletivo (somos um time!), até chegar a vez de passá-lo ao próximo atleta. Depois de passar o bastão, vamos para a arquibancada torcer (ou não!) pelos que estão, mais uma vez, na pista, aonde voltaremos um dia, até “atingir a meta da competição”. Falar dessa “meta” é complexo e não foi abordado no estudo, mas, eu digo, de modo muito simplista, que está relacionada com o aperfeiçoamento moral individual e coletivo. Mas esse duplo aperfeiçoamento não é estanque e deve ocorrer simultaneamente. Ou seja, se se vai pra pista, tem de correr! A (invisível para a maioria) torcida não determina se você vai ganhar ou perder. A responsabilidade é do indivíduo, mas, principalmente, da equipe. (Força, humanidade terrena, vai que é sua!)

O fato é que eu, que “fui pra aula só pra não ficar com falta”, saí de lá como se deve sair de uma boa aula: pensando.

E, pela manhã, tomando minha dose de cafeína antes das doses de dopamina e endorfina da atividade física, lembrava do companheiro que destacara outra premissa do espiritismo: os espíritos não se circunscrevem a regiões determinados e estão por toda parte. Daí os espíritas não acreditarem que haja céu, purgatório ou inferno enquanto lugares destinados aos bons, maus e irrecuperáveis. E ainda como um dos rituais do amanhecer, procurei “O evangelho”, mas o livro estava no andar superior da casa e, talvez por preguiça, abri “O livro dos espíritos” que estava à mão. Fui direto na nota que acompanha a questão 783 (“O aperfeiçoamento da humanidade segue sempre uma marcha progressiva e lenta?”).

E aí vem a resposta desses espíritos que, efetivamente, estão em toda parte, inclusive no local do meu cafezinho: “Sendo o progresso uma condição da natureza humana, ninguém tem o poder de se opor a ele. É uma força viva que as más leis podem retardar mas não asfixiar. Quando essas leis se tornam incompatíveis com o progresso, ele [o progresso] as derruba, com todos os que as querem manter, e assim será até que o homem harmonize as suas leis com a justiça divina, que deseja o bem para todos, e não as leis feitas para o forte em prejuízo do fraco. (…) As revoluções morais, como as revoluções sociais, se infiltram pouco a pouco nas ideias, germinam ao longo dos séculos e depois explodem subitamente, fazendo ruir o edifício carcomido do passado, que não se encontra mais de acordo com as necessidades novas e as novas aspirações. (…) São a tempestade e o furacão que saneiam a atmosfera, depois de a haverem revolvido”.

E aqui volto ao assunto mediunidade e comunicação com os tais espíritos que estão por toda parte. Não era preguiça, era recado.

Numa outra fala da reunião de ontem, quando discutíamos sobre a possibilidade de evocar, como o fez Léon Denis, figuras políticas do passado, uma companheira falou sobre os grupos mediúnicos serem egrégoras que permitem a comunicação por afinidade e sintonia, outro fato muito claro para quem estudou um pouco de espiritismo. Ou seja, num centro espírita onde “não se deve falar de política” os espíritos não tratarão do assunto.

Eu creio que abrir, “por acaso”, um livro que eu não costumo abrir por acaso e cair justamente num texto que se relaciona com minhas reflexões do momento, não é, de modo algum, um acaso.

Durante muito tempo não me interessei pelo trabalho mediúnico. Achava que o “meu lugar” era na parte das ações sociais e convivia muito bem com o “fora da caridade não há salvação”. Dizem, no espiritismo tradicional, que as pessoas chegam pelo amor ou pela dor, esquecendo do grande contingente nem amor, nem dor, simplesmente questionador. Eu pertenço a essa terceira categoria. Quando “cheguei ao espiritismo”, sequer me atraía o fenômeno. Eu queria mesmo era testar e refutar hipóteses. (Não mudei muito, não.)

Mas por que aceitei os dogmas do “espiritismo-católico-do-Brasil” por tanto tempo?

Talvez a figura de um doce avô católico possa explicar, pelo menos em parte. Fui “evangelizada” por um idoso cego, ativo, sábio e católico. Muito antes de aprender a ler eu ouvia a narrativa das parábolas de Jesus, que sempre começava assim: “Betinha, quando Jesus andava no mundo…” E vinha a história. E depois da história, vinham minhas perguntas. E quando ele não tinha mais resposta, falava o que todas as religiões e seitas falam, em todos os tempos: não se pode penetrar os desígnios de Deus ou é obra do Espírito Santo, não há como explicar, apenas crer. Sei que isso ocorreu muito cedo porque quando entrei na escola formal, aos sete anos, já era completamente alfabetizada. E alfabetizada do tipo que lia livros com mais letras que figuras. Talvez o sucesso na primeira série explique um pouco da arrogância que busco combater todos os dias.

Por ter sido católica –mesmo tendo abandonado a igreja no meio de uma missa, após cansar das repetidas falas misóginas do padre, numa idade em que eu nem conhecia a palavra misoginia–, ainda assim, foi fácil me adaptar ao “espiritismo reencarnacionista” predominante no Brasil.

E, para finalizar, repito o que disse no estudo (ao qual não queria ir): não pretendo abandonar a busca de aprendizado e da prática dos preceitos cristãos e nem da sistematização kardequiana. Mas o meu caminho já não precisa passar pelos dogmas da FEB.

E aproveito para fazer as pazes com Léon Denis que, na parte final deste capítulo, afirma: “Sou pela democracia, que, unicamente, parece-me capaz de assegurar a pacificação e a aproximação entre os povos. Os estados despóticos e a política dos soberanos são naturalmente levados a usar da força para aumentar seu poder, enquanto que as democracias, onde o conjunto dos cidadãos eleitos deve-se pronunciar sobre as questões graves, são pouco favoráveis à guerra, a qual, longe de relacionar, arruína os povos. Por isso, em nossa época, buscam-se criar instituições bastante sábias e bastante poderosas para regular, pela arbitragem, os conflitos entre as nações”.

E finalizo lembrando uma premissa da psicoterapia: o que te incomoda, no outro, é o que há em ti. Denis, mano, sigamos!