II Encontro Nacional da Esquerda Espírita: 10 de julho em São Paulo

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O II Encontro Nacional da Esquerda Espírita (II ENEE) chega cheio de novidades. A programação contará com duas mesas pela manhã, com o tema “Política e eleições: debate necessário na casa espírita”, com Thiago Torres (Chavoso da USP), Dora Incontri e Alysson Mascaro já confirmados. Pela tarde, no II ENEE, haverá reunião plenária com o tema “Organização e projetos: construindo um coletivo popular”, com a presença de todos os participantes do encontro para pensar, discutir e deliberar sobre os rumos do movimento e do coletivo da esquerda espírita. O II ENEE ocorrerá na sede do Sindicato dos Bancários de SP, bem no centro da cidade, Rua São Bento, 413, Edf. Martinelli, próximo ao metrô São Bento. O Sindicato dos Bancários de SP receberá a esquerda espírita de coração e braços abertos. O Espíritas à Esquerda organizou o I ENEE em 2019, em Salvador, encontro que marcou o movimento espírita progressista. Foi organizado ainda o II ENEE no Rio, em 2020, mas a pandemia impediu a sua realização. Agora, o Espíritas à Esquerda retoma seus encontros nacionais presenciais com esse evento que certamente também marcará os rumos do movimento espírita progressista.

A participação no II ENEE é gratuita e as inscrições já estão abertas AQUI.

INSCREVA-SE GRATUITAMENTE

Apesar de gratuita, a inscrição para a participação é obrigatória por conta do tamanho do espaço cedido pelo Sindicato dos Bancários de SP. Ainda estamos em pandemia e aprendendo a conviver com ela. Por isso é importante que todos os participantes tomem os cuidados necessários durante o evento, porque, afinal, o espiritismo progressista é um parceiro da ciência e não comporta o negacionismo. A apresentação do certificado de vacinação e o uso de máscara serão obrigatórios. Não perca esse evento. Agende-se. Inscreva-se. Participe.  

RELEMBRE AQUI O 1º ENCONTRO NACIONAL

 

O mundo espiritual, divisões de classe e o fim do diabo

Releituras kardecistas com Marcio Sales Saraiva

Se no mundo físico temos uma sociedade dividida em classes sociais diferentes, com preconceitos e exclusões que mantêm determinadas hierarquias sociais, mais ou menos opressivas, não é assim no mundo espiritual.

Os espíritos de luz dizem para Allan Kardec que existe diferença no mundo dos espíritos, mas ela está assentada no “grau de perfeição” –ciência, sabedoria e virtudes ou bondade– de cada um e nas afinidades que os aproximam (questão 96 e 98 de “O livro dos espíritos”).

Basicamente, os espíritos de luz identificam, grosso modo, três grandes famílias de espíritos: os espíritos puros (também chamados de anjos), os espíritos medianos (também chamados de bons espíritos, pois desejam fazer o bem) e os espíritos imperfeitos (neles prevalecem a ignorância, as más paixões ou o desejo do mal). Em outras palavras, na cosmovisão espírita não existem demônios ou espíritos devotados única e exclusivamente para o mal. Não há também a figura de satanás, nem de capetas que estariam constantemente atrapalhando os planos do bem.

Esse temor de espíritos malignos foi algo que o espiritismo kardequiano destruiu, libertando o ser humano de crendices inúteis e favorecendo que o mesmo assuma sua responsabilidade existencial sem culpas e sem buscar legitimação em “ações do diabo”.

Além disso, os chamados espíritos imperfeitos são apenas irmãos nossos que, com o tempo, alcançarão também o grau de perfeição que todos nós estamos destinados, ou seja, a plenitude em comunhão com Deus.

Não há, portanto, um estado fixo na maldade, mas apenas ilusão e ignorância que, gradualmente, será dissipada, fazendo com que esses espíritos imperfeitos cheguem ao grau de espíritos medianos até se elevarem à categoria de espíritos puros.

Sim, um dia, todos nós seremos espíritos puros, mas entre esse estado final e o que vivemos ainda hoje, vai um enorme abismo que, somente através das reencarnações, poderemos nos depurar e alcançá-lo.

Esta concepção evolucionista e progressiva é um poderoso antídoto contra os preconceitos e os pavores causados pelas velhas concepções religiosas de céu e inferno, povoado por demônios que atordoavam a paz de espíritos dos seres encarnados.

O espiritismo nos traz, assim, uma visão de mundo onde o mal e a ignorância são estados transitórios da alma e, como todas as coisas, tende ao crescimento e amadurecimento, através de erros e acertos, ao longo de um processo pedagógico chamado de reencarnação.

Um dos dados mais interessantes, na questão 99, é que os espíritos de luz colocam os omissos, aqueles que não fazem nem o bem nem o mal, os que não se engajam nem a favor nem contra, dentro da categoria de espíritos imperfeitos ou inferiores.

Se em algumas religiões, o silêncio e a “neutralidade” são valorizados, no espiritismo kardecista não é assim, pois nele não basta ficar “de fora” das coisas que acontecem na vida, escondendo-se das nossas responsabilidades éticas e políticas. É preciso se comprometer com o bem, com o processo de crescimento de si mesmo e da sociedade onde vive, pois nós somos responsáveis pela nossa existência e pelo mundo social que criamos ao longo das reencarnações.

É dentro deste quadro que Allan Kardec apresenta, em “O livro dos espíritos”, a chamada “escala espírita”, subdividindo as três grandes famílias espirituais em 10 “classes” ou “categorias” de espíritos. Não se trata de uma visão dogmática. Kardec deixa claro que esta tabela classificatória “nada tem de absoluta” (questão 100) e que “os espíritos não ligam a menor importância” (questão 100) para tais convenções, pois o importante é a compreensão geral da ideia e não as tabelas que humanamente construímos. As fronteiras entre as famílias espirituais são borradas ou fluidas, pois há intercâmbio e interações de diversos tipos.

Em resumo, esqueça essa conversa de diabo ou satanás, pois no mundo dos espíritos (ou extrafísico) temos apenas três grandes famílias espirituais, mas não encontramos nenhuma classe de “espíritos demoníacos” –de acordo com Allan Kardec!– e nem uma divisão de classe social onde relações de dominação e exploração sejam estruturais, como nas sociedades capitalistas existentes.

Só nos mundos inferiores e nas regiões menos adiantadas da espiritualidade (ou erraticidade) encontramos relações de dominação e exploração, portanto, abolir tais estruturas de opressão, exploração e violência deveria ser o objetivo de todos os espíritas encarnados, procurando fazer deste planeta um espaço de igualdade, liberdade, justiça e fraternidade.

Bolsoespiritismo: a opção pelo “eu” e o esquecimento da caridade

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É importante falar sobre o que se entende como bolsoespiritismo.
A adesão reacionária de muitas lideranças espíritas ao abjeto bolsonarismo não é a causa, mas uma consequência duma forma de entender e agir dentro do movimento espírita.
O agir autocentrado, pautado na infame “reforma íntima”, que se tornou um mantra desse tipo de reflexão egoica, já produziu seus frutos apodrecidos no transcorrer da curta história do movimento espírita.
Médiuns, palestrantes, lideranças, todos afeitos a esses trejeitos ególatras, propalam uma “transformação interior” como objetivo principal do espírita. Nada é mais falso e divergente em relação às propostas espíritas, pois, ao se fazer uma leitura ampla e cuidadosa das obras kardecistas, o que salta aos olhos e mentes atentos à mensagem é um grito aos encarnados no sentido de que a única forma de se autotransformar é transformar o mundo em que se vive. Não há nenhuma possibilidade de mudança pessoal sem que ela venha acompanhada de esforços na luta por uma sociedade mais justa e fraterna.
E não se fala aqui de ação social por meio da “caridade” esmoler, como os próprios espíritos repudiam, mas de uma verdadeira ação transformadora da sociedade, para que não se tenha, no meio em que se vive, ninguém com fome ou sem ter onde morar.
Os espíritos encarnam para mudar o mundo, e isso é que muda o espírito encarnado, ensinam aqueles que auxiliaram Kardec.
Todo esse movimento reacionário, que abafou a necessária ação transformadora do espírita na sociedade, foi o fermento que fez crescer essa massa disforme de lideranças espíritas que pregam o exclusivo subjetivismo burguês como mensagem cristã em contraposição a uma sociedade em que todos vivam com dignidade.
O resultado dessa escolha pelo eu e não pelo coletivo é exatamente o que hoje se entende como bolsoespiritismo. Pessoas, grupos e instituições, que pregam essa mensagem personalista e egoísta, hoje barbarizam com suas interpretações inconsequentes e escolhas políticas malsãs, que falam de amor mas praticam o ódio, que defendem a vida mas escolhem a morte, enfim, que são o sumo da hipocrisia denunciada por Jesus: “Ai de vós, hipócritas, sois sepulcros caiados”.

Divaldo, o médium decaído

Ana Cláudia Laurindo

A inclinação do meio espírita brasileiro liderado por Divaldo Franco tem sido acreditar em sofismas rebuscados, anunciados com palavras conhecidas, ditas pelo médium , que ao analisar os conflitos armados entre a Rússia e a Ucrânia mostra o quanto se tornou fácil convencer multidões sobre uma narrativa, mesmo quando nada se compreende sobre o fato analisado. De maneira vergonhosa, a ortodoxia espírita tupiniquim atribui efeitos satânicos ao termo comunismo, ao qual Divaldo tem acostumado  citar em discursos de cunho político conservador, que no contexto brasileiro logo indica com qual política está afinado. É lamentável observar a derrocada ética/humanitária deste núcleo que centralizou as representações da linda doutrina, manipulando através de  médiuns oradores e escreventes, conteúdos que iludem, enganam, induzem milhares de mentes viciadas em poder e ajustes moralistas das condutas exteriores a enfileirar nas correntes nazi-fascistas envolvidas nas políticas partidárias em nosso país. Oportunidades de compreender os males sociais gerados por políticos de inclinação fascistas todos os brasileiros possuem há anos, mas a cosmossociologia espírita se torna cada vez mais envolvida nas teias do poder que privilegia líderes míopes para os desmandos da política hegemônica, que atua sobre os sentidos com a voracidade demoníaca real, pois o mal chega até as pessoas de carne e osso através de decisões políticas que desarmonizam e desequilibram todas as vítimas. Divaldo Franco nada entende sobre geopolítica mundial mas insiste em espalhar vídeos com conteúdos lastimosos para alimentar seus fanáticos seguidores, reafirmando jargões enquanto os libera da responsabilidade de estudar em fontes verdadeiras no intuito da compreensão que liberta; o jugo da classe não tem permitido essa experiência profunda de autonomia? Para não entender sobre política real, a casta salvífica que administra caridades materiais mantém-se no cercadinho espírita, fascinada em torno da fala rouca do médium arrogante, e lá se vão inúmeras experiências encarnatórias perdidas na preguiça de pensar! O número dos que estão recusando seguir sob a denominação “espírita” no Brasil está aumentando, pois lidar com as aparições patéticas dos médiuns perseguidores do “comunismo” está desanimando estudiosos da doutrina, médiuns anônimos sérios e comprometidos com o trabalho educativo, generoso e incentivador que Kardec espelha e indica nos muitos escritos que deixou. Espiritismo não tem donos, não necessita de guetos, e fomenta o livre pensar , mas infelizmente o meio espírita brasileiro atua contra estas assertivas e gera dependências religiosistas, caminhando para o lado oposto do que exemplificou Kardec, um espírito cientista e político, digno de respeito, mesmo nos casos de reprodução das verdades do seu tempo histórico, em evolução. O religiosismo acrítico sustenta as aparições de Divaldo Franco, as vezes oráculo, outras sofista, mas sempre comprometido com os interesses das classes dominantes e grupos hegemônicos dispersos nas instâncias de poder. Isso não é espiritismo. Isso é a escolha do médium e daqueles que o seguem. Despertemos. Texto publicado originalmente em Repórter Nordeste, gentilmente cedido pela autora para publicação.

O que são os espíritos?

Releituras kardecistas com Marcio Sales Saraiva

A visão kardecista é de grande objetividade e sem misticismos quando o assunto é espírito, alma ou consciência. Em “O livro dos espíritos”, de Allan Kardec, nossa referência central nesta coluna, os espíritos são simplesmente “os seres inteligentes da criação” que “povoam o universo, fora do mundo material” (questão 76).

Seres de consciência, agentes inteligentes, estão por toda a parte, ainda que não visível para a maioria das pessoas e até mesmo para a ciência mais materialista e menos aberta para os fenômenos transpessoais.

Quem os criou?

A resposta é simples. Deus. Por outro lado, os espíritos superiores assumem seus limites cognitivos, sua ignorância, ao afirmarem que “ninguém sabe” o quando (tempo) e o como (processo) que se deu esta criação dos espíritos. “Eis o mistério”, diz na questão 78. “A origem deles é mistério”, diz a questão 81. E mesmo sobre sua “essência”, o próprio Allan Kardec assume: “somos verdadeiramente cegos” (comentário da questão 82).

O que o kardecismo nos deixa como informação razoável?

Os espíritos foram criados por Deus, existem antes do corpo físico, povoam todo o universo, são seres incorpóreos (mas não imateriais) e que Deus jamais deixou de criá-los em todos os tempos.

Eles “estão por toda parte”, porém, “há regiões interditadas aos [espíritos] menos adiantados”. Sendo assim, o deslocamento dos espíritos é maior quanto maior for sua evolução intelectual, cognitiva e ético-moral. Além do deslocamento, há também a possibilidade de um único espírito irradiar sua “presença” para diversos locais e direções, como o Sol (questão 92). E isso explica porque o espírito Irmão X poderá enviar uma mensagem que será psicografada por pessoas diferentes em locais diferentes ou porque um espírito poderá irradiar sua comunicação sendo “incorporado” (psicofonia) em diversos médiuns em casas espíritas ou espiritualistas diferentes, mesmo que seja no mesmo dia e horário.

Quanto mais avançado é um espírito, lógico, maior será seu poder de irradiação sem jamais perder sua unidade interna, sua “persona” individual.

Os espíritos poderão ser chamados de entidades, inteligências extrafísicas, entidades, almas, santos, anjos, o “Espírito Santo”, orixás etc. Não importa a forma com que, em cada cultura ou em cada saber religioso, o espírito poderá ser nomeado. Trata-se, para o kardecismo, simplesmente de comunicação dos espíritos, seres que momentaneamente não estão usando um corpo físico e denso como o nosso, mas que, em algum momento, poderão novamente mergulhar na carne (reencarnação) para poder continuar a longa jornada de volta para a casa divina.

Os espíritos não são coisas de “outro mundo”, pois eles estão aqui mesmo, entre nós, povoando todo o cosmo. Têm erros, acertos e preconceitos, mas também têm insigths, informações interessantes, preferências religiosas ou ideológicas, e apresentam grande sabedoria adequada ao seu grau de crescimento cognitivo-moral. Acima de tudo, os espíritos, para Allan Kardec, não devem ser idolatrados, não são perfeitos, nem puros —caso contrário, já nem poderiam se comunicar diretamente conosco, dada a nossa inferioridade— pois os espíritos que se comunicam com o mundo terreno são somente seres humanos, como nós, apenas sem a vestimenta corpórea, usando, em seu lugar, uma vestimenta perispiritual que lhe dá uma forma de apresentação.

Sendo assim, não se espante com espíritos e nem os tema, pois você é espírito e em todas as partes há espíritos. Talvez você não os veja, nem os sinta, mas aí é outro assunto.

Jesus e os vendilhões da educação brasileira

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Aldemario Araujo Castro – Espíritas à Esquerda DF*

A Constituição de 1988 trata a Educação com generosidade. Afinal, existe um virtual consenso de que a realização dos fins da República Federativa do Brasil, notadamente a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, depende da eficiência do sistema educacional. O referido diploma fundamental da ordem jurídica brasileira proclama que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família. São três, segundo a Carta Magna, os objetivos maiores da educação: a) pleno desenvolvimento da pessoa; b) preparo para o exercício da cidadania e c) qualificação para o trabalho. Os princípios para o ensino no Brasil foram postos pelo constituinte nos seguintes termos: a) igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; b) liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; c) pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; d) gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; e) valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; f) gestão democrática do ensino público, na forma da lei; g) garantia de padrão de qualidade e h) piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal.  Também foi previsto no Texto Maior a elaboração, por lei, de um plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a: a) erradicação do analfabetismo; b) universalização do atendimento escolar; c) melhoria da qualidade do ensino; d) formação para o trabalho; e) promoção humanística, científica e tecnológica do País e f) estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto. Parece fora de qualquer dúvida razoável a percepção acerca do tamanho e da complexidade das tarefas governamentais, especificamente no âmbito do Ministério da Educação, quanto à formulação e execução das políticas públicas realizadoras das definições constitucionais. Ocorre que o (des)governo Bolsonaro mostra diariamente sua reconhecida insensibilidade e incompetência para com a condução das questões educacionais, assim como o faz em relação às demais áreas sociais. Primeiro, fez escolhas miseráveis de titulares para a pasta ministerial da Educação. Tivemos Vélez Rodríguez, Abraham Weintraub, Carlos Decotelli e, (até) agora, Milton Ribeiro. Essas escolhas demonstraram o profundo desprezo do maior dos apedeutas por tudo minimamente relacionado com Educação, Ciência e Tecnologia. Depois, pelas vozes e ações desses “ministros”, praticamente reduziu as políticas públicas na área da Educação ao combate aos fantasmas do “marxismo cultural”, da “ideologia de gênero” e da “pregação ideológica” no ambiente de ensino. Aqui e ali também foram vistos ataques ao suposto plantio de maconha nos campi universitários e outras esquisitices dessa natureza. Só faltavam aparecer na grande imprensa, em relação à área de Educação, os casos de corrupção presentes em vários outros setores da ação governamental. Não falta mais. As peripécias do ministro Milton Ribeiro e dos pastores evangélicos Gilmar Santos e Arilton Moura (integrantes do “gabinete paralelo”) vieram a público. E vieram com força e requintes do mais abjeto maucaratismo juramentado e praticante (como diria o eterno Prefeito Odorico Paraguaçu). A fala do ministro da Educação é escancaradamente didática (nesse ponto ele foi competente, não há como negar): “Foi um pedido especial que o presidente da República fez para mim sobre a questão do [pastor] Gilmar. A minha prioridade é atender primeiro os municípios que mais precisam e, em segundo, atender a todos os que são amigos do pastor Gilmar”. A partir da divulgação dessa confissão, relacionada com a liberação de recursos do Ministério da Educação para Prefeituras, surgiram elementos adicionais como: a) várias audiências dos pastores com o ministro; b) vários encontros e fotos dos pastores com o presidente Jair Bolsonaro; c) eventos com distribuição de bíblias e a presença do ministro da Educação; d) voos em aviões da Força Aérea Brasileira – FAB e e) falas de vários prefeitos (pelo menos dez) detalhando o modus operandi dos “homens da fé”, incluindo pedidos explícitos de propinas, em dinheiro e ouro, e de apoio eleitoral. Houve registro até de desconto de 50% para a propina, dependendo de quem “encaminhasse” o pretendente (fontes: estadao.com.br, uol.com.br, g1.globo.com e metroples.com).     No Supremo Tribunal Federal, a Ministra Carmén Lúcia determinou a abertura de inquérito para investigar o ministro Milton Ribeiro, pela suposta prática dos crimes de: a) corrupção passiva; b) tráfico de influência; c) prevaricação e d) advocacia administrativa. Segundo a Ministra: “Há de se investigar e esclarecer, de forma definitiva, a materialidade e a autoria das práticas com elementos objetivos e subsídios informativos definidos nos termos da legislação vigente, para se concluir sobre a autoria, os contornos fáticos e as consequências jurídicas a serem determinadas pelas condutas descritas na notícia de crime informada pela Procuradoria-Geral da República” (fonte: conjur.com.br). Não custa destacar que a corrupção é uma das marcas distintivas do (des)governo Bolsonaro. A família presidencial, antes com atuação política regional e limitada pelo raio de ação do “baixo clero”, operava com: a) milícias (com integrantes homenageados e incorporados como assessores); b) “rachadinhas” (apropriação de remunerações de servidores dos gabinetes parlamentares); c) funcionários fantasmas (como no curioso caso da “Wal do Açaí”); d) frequentes operações com imóveis (com uma curva ascendente e recheada de “galinhas mortas”) e e) lavagem de dinheiro em empresas de menor expressão (comércio varejista de chocolates, por exemplo). O envolvimento em corrupção “grossa” ou “pesada” dependia da ação numa arena política mais ampla e com o concurso de parceiros com larga e profunda experiência nesse “ramo”. No governo federal e a associação com os integrantes do famoso “Centrão” permitiram a “ampliação dos horizontes”.  Somente a cegueira seletiva ou a ingenuidade em alta dose pode alimentar alguma ilusão acerca da supressão da corrupção no Brasil a partir da prática ludibriante da oração enganosa e coisas do gênero. Infelizmente, a corrupção sistêmica existente no Brasil por décadas (e séculos) continua operando em todos os níveis governamentais, com novos e velhos atores, com novos e velhos métodos. Nesse cenário de horrores se destacam os bilhões do “orçamento paralelo”. Todo esse triste cenário lembra o conhecido episódio protagonizado por Jesus Cristo quando flagrou a ação deletéria dos vendilhões no Templo de Jerusalém. Importa destacar a conduta de Jesus justamente porque esses senhores, todos eles, incluindo o chefe de Governo, se apresentam (acredite quem quiser) como fiéis e incansáveis discípulos do Mestre dos Mestres. Eis o relato do comportamento de Jesus Cristo transcrito diretamente da Bíblia, abstraído o debate se aconteceram dois episódios distintos: “Então ele fez um chicote de cordas e expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e os bois; espalhou as moedas dos cambistas e virou as suas mesas. Aos que vendiam pombas disse: ‘Tirem estas coisas daqui! Parem de fazer da casa de meu Pai um mercado!’ ” (João 2:15-16). “Jesus entrou no templo e expulsou todos os que ali estavam comprando e vendendo. Derrubou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos que vendiam pombas, e lhes disse: ‘Está escrito: ‘A minha casa será chamada casa de oração’; mas vocês estão fazendo dela um ‘covil de ladrões’ ”. (Mateus 21:12-13). Obviamente, a solução operada por Jesus (provavelmente o espírito mais evoluindo que já andou pela face da Terra) não deve ser tomada no sentido literal para os dias modernos. Não é o caso de expulsar, de chicote na mão, os vendilhões da educação brasileira. Entretanto, a revolta e a repulsa do Cristo devem ser as mesmas para adoção das sanções jurídicas pertinentes (improbidade administrativa, penais e civis) e das consequências políticas. Nesse último quesito, é dever da cidadania consequente combater a permanência desses malfeitores no cenário político e, sobretudo, nos espaços públicos de poder. É crucial recusar voto, apoio, espaço, olhos e ouvidos para esses mercadores da fé, da educação, dos sonhos e da dignidade dos brasileiros, a começar pelo principal e mais graduado deles.
  • *Advogado, Mestre em Direito, Procurador da Fazenda Nacional.

Clube do Livro “Espiritismo e Sociedade”

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Durante o ano de 2022, o EàE e a ABPE lançarão conjuntamente pela Editora Comenius seis livros de autores clássicos do espiritismo progressista que representam alguns aspectos do debate em torno da questão social e sua relação com as propostas espíritas.

Estão previstas as seguintes obras:

  • Socialismo e espiritismo”, de Leon Denis (em nova tradução de Sergio Mauricio Pinto)
  • Os espiritualistas perante a paz e o marxismo”, de Eusínio Lavigne
  • Dialética e metapsíquica”, de Humberto Mariotti (na tradução de Júlio Abreu Filho)
  • Conceito espírita de socialismo”, de Cosme Mariño (também em nova tradução)
  • Espiritismo dialético”, de Manuel Porteiro
  • O pensamento social de Herculano Pires”, de Dora Incontri

Um francês, dois brasileiros e três argentinos. Quem são esses espíritas progressistas?

  • Léon Denis (1846-1927) foi um pensador espírita francês, médium e um dos principais continuadores do espiritismo após a morte de Allan Kardec, ao lado de Gabriel Delanne e Camille Flammarion.
  • Eusínio Lavigne (1873-1973), baiano de Ilhéus, foi espírita, político, jurista, jornalista, escritor e marxista. Participou de vários movimentos sociais e políticos democráticos, escreveu diversos livros sobre as relações entre o espiritismo e o socialismo.
  • Humberto Mariotti (1905-1982), poeta, escritor, jornalista, conferencista e intelectual espírita argentino. Foi presidente da Confederação Espírita Argentina (CEA), da Sociedade Victor Hugo, e diretor da revista de cultura espírita “La Idea”.
  • Cosme Mariño (1847-1927), escritor, jornalista e jurista argentino, foi o fundador da primeira sociedade espírita de Buenos Aires. Combateu a intolerância religiosa e a mistificação, e consolidou o espiritismo na Argentina através de seus textos em livros e jornais.
  • Manuel Porteiro (1881-1936), autodidata argentino, ao lado de Humberto Mariotti, participou do V Congresso Espírita Internacional, realizado em Barcelona, Espanha, em outubro de 1934. Escreveu diversos artigos para a revista “La Idea”, e livros que expressavam sua ideia de uma sociologia espírita.
  • José Herculano Pires (1914-1979), paulista de Avaré, foi um jornalista, filósofo, educador, escritor e tradutor brasileiro. Destacou-se como um dos mais ativos divulgadores do espiritismo no país. Traduziu os escritos de Allan Kardec e escreveu tanto estudos filosóficos, quanto obras literárias inspiradas na doutrina espírita.

Todos os livros contarão com um prefácio contextualizando os autores e suas obras.

A série de livros apresentada é coordenada por Dora Incontri e Sergio Mauricio.

Para a viabilização econômica dessa iniciativa, estamos lançando o Clube do Livro “Espiritismo e Sociedade”, e convidamos vocês a participarem dessa proposta, que deverá durar entre março de 2022 a fevereiro de 2023.

Como funciona?

Quem aderir ao Clube do Livro, receberá um carnê on-line de boletos mensais de R$ 35,00, com duração de março de 2022 a fevereiro de 2023. A cada dois meses, receberá em casa um exemplar dessas obras acima. Nesse valor já está incluído o preço do frete.

CLIQUE AQUI PARA ADERIR AO CLUBE

Quantas pessoas precisam aderir?

Para viabilizar traduções, revisões, capas, impressões na gráfica, administração do clube, emissão de boletos e outras despesas, precisamos de pelo menos 200 pessoas. Tendo a adesão desse número, iniciamos as publicações e outros interessados poderão entrar no clube depois, com o limite de data máxima até julho.

Nesses tempos de retrocessos do pensamento e de conservadorismo social e político, consideramos de vital importância conhecermos os autores progressistas da história do espiritismo que deram suas contribuições para a construção de um pensamento social espírita.

Ainda restaram dúvidas?

Fale com o EàE pelo seu portal na internet (www.espiritasaesquerda.com.br) ou mande mensagem para contato@espiritasaesquerda.com.br ou contato@editoracomenius.com.br.

Chico-Kardec: uma farsa intencional

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O médium Chico Xavier merece nosso profundo respeito, como de resto todas as pessoas que dedicam sua vida ao auxílio ao próximo, como são também exemplos Dulce Maria, tornada santa pela Igreja Católica, e o médium Zélio Fernandino, fundador da umbanda. E não se pretende nesse breve texto discutir as relações e diferenças entre ação de promoção social e ação assistencialista, que muito bem caberia, mas não é o objetivo.

Feitas as ressalvas iniciais, o que se pretende unicamente é discutir um aspecto curioso da parte do movimento espírita vinculada à sacralização do médium Chico Xavier, o que acabou por dar origem a um neologismo recorrente: o chiquismo. Cabe ressaltar que em nenhuma hipótese se pretende fazer o movimento inverso: o da sacralização de Kardec, pois se entende que sua obra é passível de análise e críticas como a de qualquer outro autor e nela não há verdades incontestes, mas propostas para a transformação do mundo e do ser humano.

É preciso, portanto, para uma análise tranquila e objetiva, distinguir a extensa obra produzida pelo famoso médium mineiro de suas características humanas. Chico, à revelia de seus idólatras, era um homem com virtudes e defeitos, como o são todas as demais pessoas que viveram ou ainda vivem a experiência corporal nesse planeta. E isso tem que estar claro porque o que se pretende é apontar para um desvio de percurso perigoso do movimento espírita, que é a ideia de associar a personalidade de Chico Xavier ao fundador do espiritismo, o lionês Allan Kardec. Esse desvio imenso e arriscado quer fazer, de todas as formas, coincidir os dois espíritos como se fossem um só, ou seja, a ideia bizarra de que Chico Xavier seria a reencarnação de Allan Kardec.

O desejo de impor essa insensata narrativa é tamanho que teve médium sugerindo ser o casamento entre Denisard Hypolite[1] e Amélie Gabrielle um mero conviver de dois amigos, sugerindo uma relação assexuada do casal visando a aproximar as escolhas da vida privada de Kardec às de Chico. Para isso, a esdrúxula ilação usou de três “provas”: a) o fato de ser Amélie nove anos mais velha que Denisard; b) que ela teria por ele um amor maternal e não o amor por um homem; e c) que o casal não teve filhos.

Afora o fato de que é o próprio Allan Kardec, em sua obra “O livro dos médiuns[2], quem sugere a deturpação filosófica daqueles que endeusam médiuns e demais líderes espíritas, a razão, por si só, bastaria para perceber o desvio crasso daqueles que escolhem esse caminho que inexoravelmente leva ao abismo da irracionalidade mística, da religiosidade piegas e da idolatria improfícua.

Poder-se-ia iniciar o texto fazendo uma extensa análise das diferenças profundas entre as duas personalidades, o que marcaria de forma explícita a impossibilidade da reencarnação do homem racional e cuidadoso com as questões científicas num homem místico e com exacerbadas propensões religiosas. Mas o que se pretende é explorar algo ainda mais grave que subjaz à intencionalidade dessa esdrúxula hipótese: a tentativa vã de igualar a importância, junto ao movimento espírita, da obra mediúnica de Chico Xavier e da obra produzida pelo educador e pesquisador Denisard.

A obra mediúnica de Chico Xavier tem produções muito interessantes e outras ruins. E há outras advindas da sua mediunidade que são lamentáveis, como são exemplos a obra “Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho”, atribuída ao espírito Humberto de Campos, e a obra “Desobsessão”, atribuída ao um espírito que a assina como André Luiz.

O livro “Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho”, datado de 1938, época da ditadura Vargas, período histórico conhecido como Estado Novo, além de deturpar a história brasileira, traz a histeria anticomunista e perigosamente fascista da época em que se vivia. E a exaltação reiterada a essa péssima obra nos tempos atuais apenas ilustra seu papel de anteparo político-doutrinário, à direita espírita, a que sempre se prestou desde sua primeira edição, no final da década de 1930, como ilustra o trecho abaixo:

Nesta época de confusão e amargura, quando, com as mais justas razões, se tem, por toda parte, a triste organização do homem econômico da filosofia marxista, que vem destruir todo o patrimônio de tradições dos que lutaram e sofreram no pretérito da humanidade, as medidas de repressão e de segurança devem ser tomadas a bem das coletividades e das instituições, a fim de que uma onda inconsciente de destruição e morticínio não elimine o altar de esperanças da pátria. Que o capitalismo, visando à própria tranquilidade coletiva, seja chamado pelas administrações ao debate, a incentivar com os seus largos recursos a campanha do livro, do saneamento e do trabalho, em favor da concórdia universal.”[3]

É preciso, portanto, destacar e denunciar que a intenção não verbalizada de classificar a obra mediúnica do médium de Pedro Leopoldo como complementar à obra de Kardec e, mais, como inaceitável continuidade da elaboração doutrinária do espiritismo, não passa de ardil para justificação, como se tem visto amiúde, de mensagens políticas esdrúxulas e incompatíveis com as verdadeiras propostas espíritas legadas pelos espíritos que auxiliaram Kardec.

A insistência nesse tema por alguns médiuns, palestrantes e dirigentes é proposital. Porque se pode facilmente perceber que todos esses modernos propagadores dessa estranha hipótese apoiaram ou apoiam a degradação moral e cognitiva, conhecida como bolsonarismo, que se entranhou como uma doença no movimento espírita, tornando-o uma proposta místico-religiosa que prega o anticientificismo e apela à irracionalidade fideísta como caminho da prática espírita e como proposta de atuação política do adepto do bolsoespiritismo.

Não é pueril ou desinteressada essa associação entre os espíritos de Kardec e de Chico Xavier. À revelia dos méritos pessoais de cada um, as obras de Chico e de Kardec são díspares, opostas, e não é possível considerá-las complementares, a não ser, claro, que haja a intenção, que é o caso, de se usar a obra do médium mineiro como nova e estranha referência doutrinária do espiritismo para justificar opções políticas protofascistas.

Notas:

[1] Grafia original do nome de Kardec encontrada em sua certidão de nascimento.

[2] KARDEC, Allan. O livro dos médiuns. Brasília, DF: FEB, 2020. p.244.

[3] XAVIER, Francisco C. Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 1938. p.167-168.

O Natal de Eny, a advogada movida pela indignação

Feminismos com Elizabeth Hernandes (EàE-DF)

Mulheres de fé – I

O Natal de Eny, a advogada movida pela indignação

O ano de 2022 começa com uma grande perda. Eny Raimundo Moreira se retira da dimensão material, deixando-nos o dever de honrar seu legado de altivez, resistência e luta.

Por ocasião de sua partida, viralizou nas redes sociais o comovente texto escrito por Frei Betto, narrando a visita que recebeu, na penitenciária de Presidente Venceslau (SP), em 1972[1].

Em seu relato, Betto conta que os prisioneiros conseguiram convencer o capelão do presídio a permitir a participação de Eny na missa daquela noite especial. Durante a celebração, o diretor do presídio discursou e, entusiasmando-se com a própria demagogia, convidou Eny a falar aos presos.

Impossível de reproduzir o que disse. Um canto de amor não pode ser descrito. Como doce perfume, suas palavras contagiaram o ambiente. Seu carinho penetrou o coração de cada presidiário. Só lembro que terminou dizendo: ‘Beijo cada um de vocês’. Mas não se limitou à palavra. Emocionada, preferiu uma atitude: ‘É noite de natal e quero abraçar cada um de vocês’.”[1]

Ao invés de estar com seus familiares, naquele Natal, Eny escolheu abraçar 400 homens encarcerados e, dentre estes, cinco considerados “terroristas” pelo governo vigente. Segundo o relato do frei, dentre os “não terroristas”, alguns, entre lágrimas, disseram o que era considerado um grande elogio, naquele contexto: “Frei, por esta mulher, eu mato qualquer um”. E outro começou a morrer ali mesmo quando afirmou: “eu não acreditava em gente boa, mas agora sou obrigado a reconhecer que estava errado”. Morria para renascer como homem novo. Um homem que, agora, tinha fé na bondade[1].

A advogada, que foi estagiária no escritório de Heráclito Fontoura Sobral Pinto, certamente merecerá artigos, teses, biografias etc. Mas será difícil definir a mulher que, na defesa de Paulo Vanuchi, notando a atitude incrédula do juiz militar acerca da tortura infligida ao seu cliente, recorreu ao simples, que é sempre o mais eficaz, ordenando que Vanuchi se despisse em pleno tribunal e expusesse as marcas da indignidade inaceitável da tortura[2].

De acordo com o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, citado por Castro (2021)[3], em artigo que destaca a advocacia como “a profissão da solidariedade e da empatia”, são finalidades da Ordem “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.

É possível imaginar uma jovem mulher sendo fiel a esse Estatuto, no auge dos anos de chumbo? É possível, mas não é necessário. Não foi imaginação, foi vida vivida.

Foi Eny buscando Ísis de Oliveira em presídios e não conseguindo evitar que a militante da Aliança Libertadora Nacional fosse morta nos porões da ditadura; defendendo estudantes presos e torturados nas dependências do DOI-Codi do Rio de Janeiro, juntamente com outros dois advogados, Lino Machado Filho e Humberto Jansen de Melo e fazendo com que o Cardeal Eugênio Sales interferisse e garantisse a integridade física do grupo[3].

Onze anos após o encerramento –oficial– dos anos de tortura, Eny foi presa, numa sessão de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), por sustentar que seu cliente tinha o direito de permanecer calado. Nessa ocasião, surpreendeu a todos a grande quantidade de parlamentares que saíram em sua defesa, inclusive José Genoíno, que não contara, diretamente, com os serviços da valente causídica: (…) essa pessoa aqui é feita de material humano diferente (…) porque eram estas pessoas que iam lá no parlatório, ficavam três horas e corriam muito risco. Isso é um valor muito grande porque hoje essas coisas, às vezes dão publicidade, mas naquela época não dava, e estas pessoas faziam isso (…).[2]

Eny fazia o que achava correto, mesmo quando não dava publicidade.

Na pesquisa feita para esse artigo, não foi possível saber se Eny seguia outra deusa que não a Themis. Sabe-se, porém, que liderou um projeto financiado pelo Conselho Mundial de Igrejas: Brasil, Nunca Mais. Segundo Pedlowski e Asfora (2010)[2], o objetivo inicial era a realização de um levantamento da situação dos presos políticos. Mas como falar de prisões políticas, no Brasil da ditadura militar, sem falar de tortura? Assim, o projeto evoluiu para a documentação da existência de tortura, a partir dos documentos elaborados pelo próprio regime militar, quando tentou legalizar o ilegalizável.

Muito ainda se pode falar da vida de Eny, porém, neste espaço que aborda mulheres, política e religião, vamos especular sobre seu posicionamento religioso.

No livro “Espiritismo, sociedade e política”, no capítulo “Bem, caridade e política: relações necessárias”[4], o autor inicia destacando uma passagem evangélica e uma pergunta/resposta de “O livro dos espíritos”:

Senhor, quando é que te vimos com fome ou com sede, forasteiro ou nu, doente ou preso e não te servimos? E ele responderá com essas palavras: Em verdade vos digo: todas as vezes em que deixastes de fazer a um desses pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer” (Mateus, 25, 44-45).

Em um único dia Eny visitou presos, forasteiros e também aplacou sua sede e sua fome de afeto e de esperança.

Na pergunta 629, de “O livro dos espíritos”, temos: “Que definição se pode dar à moral? – A moral é a regra da boa conduta e portanto, da distinção entre o bem e o mal. Funda-se na observação da lei de Deus. O homem se conduz bem quando faz tudo tendo em vista o bem e para o bem de todos, porque então observa a lei de Deus.

A advogada Eny Moreira, apoiando-se num sistema de leis que, à época, estava fragilizado e desmoralizado, cumpriu o que “O livro dos espíritos” traz como a observação da lei de Deus. Ao visitar seus clientes, prestou assistência a toda a comunidade do entorno. Não deixou nem um encarcerado sem o acalento de sua presença. E, ao fazer isso, também avançou na luta pela reconquista de um precioso bem coletivo, que só seria recuperado muitos anos depois, a democracia.

Até onde se sabe, Eny não era espírita e, provavelmente, não utilizava a expressão “reforma íntima”, que pode ser caracterizada como uma busca pelo bom caminho, descrito no item “Missão dos espíritas”, capítulo XX de “O evangelho segundo o espiritismo”:

(…) como reconhecer os que se acham no bom caminho? Podeis reconhecê-los pelo ensino e prática dos verdadeiros princípios da caridade; pela consolação que distribuírem aos aflitos; pelo amor que dedicarem ao próximo; pela sua abnegação e seu altruísmo.”

Tudo que se encontrou registrado, acerca da atuação da Doutora Eny, revela coerência com a noite de Natal descrita por Frei Betto. A jovem advogada viveu para ver a derrocada da ditadura militar.

Eny Moreira deverá ser lembrada como uma militante política que primou por atuar apaixonadamente em defesa da restauração da democracia no Brasil e que, movida por uma profunda indignação, jamais se curvou frente às pressões e ameaças que recebeu” (Pedlowski e Asfora, 2010, p.222)[2].

Eny não distribuía cestas básicas, advogava. É a única mulher citada num livro registrou a atuação dos bacharéis que trabalharam em conformidade com a definição de Sobral Pinto, destacada na contracapa:

O advogado só é advogado quando tem coragem de se opor aos poderosos de todo gênero que se dedicam à opressão pelo poder. É dever do advogado defender o oprimido. Se não o faz, está apenas se dedicando a uma profissão que lhe dá sustento e à sua família. Não é advogado.”

Também não se encontra nenhuma menção à Eny como pessoa caridosa. Para compreender essa dimensão, teremos de recorrer à literatura espírita progressista:

Passando, portanto, ao próximo ciclo da espiral dialética na busca de sua transformação moral e cognitiva, os espíritas precisam despertar para a forma de caridade mais abrangente e pautada nas necessidades reais da sociedade em que vivem. Essa forma de caridade tem o nome singelo de política. Ela é a expressão maior da caridade, pois é por meio da atividade política, pautada no respeito e no desprendimento, que se pode alcançar a totalidade da sociedade que se administra ou legisla. Apesar da repulsa que muitos espíritas ainda sentem pela participação mais ativa na política, consolidando dentro do ambiente das casas espíritas o errôneo conceito da criminalização da atividade política, deve-se ressaltar que ela não é apenas uma forma possível de solução dos graves problemas sociais em que se vive, a política é a única forma real de solução e qualquer outra forma, por mais que haja empenho e amor envolvidos, será simplesmente uma ação paliativa que resolve problemas pontuais sem alcance significativo” (Pinto, 2021, p.212)[4].

Enfim, Eny Raimundo Moreira, presente e necessária, aqui na terra, está no céu. Qualquer que seja sua definição de céu.

Notas:

[1] Christo, Carlos Alberto Libânio . Eny Raimundo Moreira, a advogada que enfrentou a Ditadura Militar. Disponível em https://www.freibetto.org/index.php/artigos/14-artigos

[2] Pedlowski, Marcos A.; Asfora, Nicolle. Eny Moreira: breve história de uma advogada movida pela indignação. In: Sá, Fernando; Munteal, Oswaldo; Martins, Paulo Emílio (orgs). Os advogados e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

[3] Castro, Aldemário Araújo. Advocacia: a profissão da solidariedade social e da empatia. Disponível em https://questaopolitica.com.br/advocacia-a-profissao-da-solidariedade-social-e-da-empatia/

[4] Pinto, Sergio Mauricio. Bem, caridade e política: relações necessárias. In: Incontri, Dora; Pinto, Sergio Mauricio (orgs). Espiritismo, sociedade e política: projetos de transformação. Bragança Paulista: Comenius, 2021.

Além da inteligência, use seu instinto.

COLUNA Releituras kardecistas – Marcio Sales Saraiva

Como é que pessoas sem grande formação educacional-cultural conseguem-se sair muito bem, por vezes até melhor, do que outras que tem um currículo acadêmico invejável?

Além da inteligência cognitiva, fruto do acúmulo de conhecimentos e da capacidade analítica dos mesmos, temos também o nosso instinto, nosso “sexto sentido”, nossa intuição que emerge das profundezas inconscientes do nosso ser que vem renascendo ao longo das eras e acumulando muita experiência. E os bons espíritos dizem que “inteligência [no sentido de psiquismo] e matéria são independentes” (questão 71), ou seja, o espiritismo kardequiano é dualista.

Em “O livro dos espíritos”, os mentores explicam os limites da inteligência, do psiquismo humano, para Allan Kardec, mostrando que nem tudo temos condições de compreender, nem eles, os espíritos, de explicar.

72-a. Poder-se-ia dizer que cada ser tira uma porção de inteligência da fonte universal e a assimila, como tira e assimila o princípio da vida material?

Isto não é mais que uma comparação; mas não exata, porque a inteligência é uma faculdade própria de cada ser e constitui a sua individualidade moral [ou sua bagagem pessoal ao longo de diversas encarnações]. De resto, bem o sabeis, há coisas que não é dado ao homem penetrar, e esta, por enquanto, é uma delas.”

Então, até onde podemos compreender, de acordo com a visão que nos é dada pelos espíritos, é que o chamado “instinto” é uma espécie de inteligência, mas “não racional” (questão 73). Em outras palavras, a inteligência é fruto da consciência e de nossa capacidade cognitiva-racional, mas o nosso instinto vem de uma camada mais profunda e inconsciente, é uma espécie de inteligência intuitiva e não racional.

Há quem diga que Allan Kardec era um racionalista fanático, mas não é bem assim. Os próprios espíritos dizem que o ser humano erra ao “desprezar” o instinto, o insight, a inteligência não racional que trazemos.

Por que erra o ser humano ao não dar valor a essa outra forma de inteligência, que Kardec chama de “inteligência rudimentar”?

A resposta é chocante para quem desconhece o kardecismo:

O instinto existe sempre, mas o homem o negligencia. O instinto pode também conduzir ao bem; ele nos guia quase sempre, e às vezes mais seguramente que a razão; ele nunca se engana.” (questão 75)

Note bem! O instinto, essa inteligência não racional, sempre existiu, quase sempre nos guia ao caminho do bem e, pasmem!, é geralmente mais seguro do que a própria razão, essa deusa louvada pela modernidade iluminista que Kardec tanto bebeu filosoficamente. E tem mais. Comparado com a razão cognitiva, o instinto, nosso “sexto sentido” –como se diz no senso comum–, “nunca se engana”. Repito. Os espíritos dizem: “nunca se engana”!

Sendo assim, nós, kardecistas, deveríamos estudar mais e valorizar nossos insights, essa inteligência emocional e não racional que nos conduz ao reto caminho e, geralmente, de uma maneira mais sábia do que todas as teorias racionais que decoramos. Sejamos mais intuitivos e menos arrogantes quanto ao conhecimento intelectual.