Feminismos com Elizabeth Hernandes (EàE-DF)
Mulheres de fé – I
O Natal de Eny, a advogada movida pela indignação
O ano de 2022 começa com uma grande perda. Eny Raimundo Moreira se retira da dimensão material, deixando-nos o dever de honrar seu legado de altivez, resistência e luta.
Por ocasião de sua partida, viralizou nas redes sociais o comovente texto escrito por Frei Betto, narrando a visita que recebeu, na penitenciária de Presidente Venceslau (SP), em 1972[1].
Em seu relato, Betto conta que os prisioneiros conseguiram convencer o capelão do presídio a permitir a participação de Eny na missa daquela noite especial. Durante a celebração, o diretor do presídio discursou e, entusiasmando-se com a própria demagogia, convidou Eny a falar aos presos.
“Impossível de reproduzir o que disse. Um canto de amor não pode ser descrito. Como doce perfume, suas palavras contagiaram o ambiente. Seu carinho penetrou o coração de cada presidiário. Só lembro que terminou dizendo: ‘Beijo cada um de vocês’. Mas não se limitou à palavra. Emocionada, preferiu uma atitude: ‘É noite de natal e quero abraçar cada um de vocês’.”[1]
Ao invés de estar com seus familiares, naquele Natal, Eny escolheu abraçar 400 homens encarcerados e, dentre estes, cinco considerados “terroristas” pelo governo vigente. Segundo o relato do frei, dentre os “não terroristas”, alguns, entre lágrimas, disseram o que era considerado um grande elogio, naquele contexto: “Frei, por esta mulher, eu mato qualquer um”. E outro começou a morrer ali mesmo quando afirmou: “eu não acreditava em gente boa, mas agora sou obrigado a reconhecer que estava errado”. Morria para renascer como homem novo. Um homem que, agora, tinha fé na bondade[1].
A advogada, que foi estagiária no escritório de Heráclito Fontoura Sobral Pinto, certamente merecerá artigos, teses, biografias etc. Mas será difícil definir a mulher que, na defesa de Paulo Vanuchi, notando a atitude incrédula do juiz militar acerca da tortura infligida ao seu cliente, recorreu ao simples, que é sempre o mais eficaz, ordenando que Vanuchi se despisse em pleno tribunal e expusesse as marcas da indignidade inaceitável da tortura[2].
De acordo com o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, citado por Castro (2021)[3], em artigo que destaca a advocacia como “a profissão da solidariedade e da empatia”, são finalidades da Ordem “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.
É possível imaginar uma jovem mulher sendo fiel a esse Estatuto, no auge dos anos de chumbo? É possível, mas não é necessário. Não foi imaginação, foi vida vivida.
Foi Eny buscando Ísis de Oliveira em presídios e não conseguindo evitar que a militante da Aliança Libertadora Nacional fosse morta nos porões da ditadura; defendendo estudantes presos e torturados nas dependências do DOI-Codi do Rio de Janeiro, juntamente com outros dois advogados, Lino Machado Filho e Humberto Jansen de Melo e fazendo com que o Cardeal Eugênio Sales interferisse e garantisse a integridade física do grupo[3].
Onze anos após o encerramento –oficial– dos anos de tortura, Eny foi presa, numa sessão de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito), por sustentar que seu cliente tinha o direito de permanecer calado. Nessa ocasião, surpreendeu a todos a grande quantidade de parlamentares que saíram em sua defesa, inclusive José Genoíno, que não contara, diretamente, com os serviços da valente causídica: “(…) essa pessoa aqui é feita de material humano diferente (…) porque eram estas pessoas que iam lá no parlatório, ficavam três horas e corriam muito risco. Isso é um valor muito grande porque hoje essas coisas, às vezes dão publicidade, mas naquela época não dava, e estas pessoas faziam isso (…).”[2]
Eny fazia o que achava correto, mesmo quando não dava publicidade.
Na pesquisa feita para esse artigo, não foi possível saber se Eny seguia outra deusa que não a Themis. Sabe-se, porém, que liderou um projeto financiado pelo Conselho Mundial de Igrejas: Brasil, Nunca Mais. Segundo Pedlowski e Asfora (2010)[2], o objetivo inicial era a realização de um levantamento da situação dos presos políticos. Mas como falar de prisões políticas, no Brasil da ditadura militar, sem falar de tortura? Assim, o projeto evoluiu para a documentação da existência de tortura, a partir dos documentos elaborados pelo próprio regime militar, quando tentou legalizar o ilegalizável.
Muito ainda se pode falar da vida de Eny, porém, neste espaço que aborda mulheres, política e religião, vamos especular sobre seu posicionamento religioso.
No livro “Espiritismo, sociedade e política”, no capítulo “Bem, caridade e política: relações necessárias”[4], o autor inicia destacando uma passagem evangélica e uma pergunta/resposta de “O livro dos espíritos”:
“Senhor, quando é que te vimos com fome ou com sede, forasteiro ou nu, doente ou preso e não te servimos? E ele responderá com essas palavras: Em verdade vos digo: todas as vezes em que deixastes de fazer a um desses pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer” (Mateus, 25, 44-45).
Em um único dia Eny visitou presos, forasteiros e também aplacou sua sede e sua fome de afeto e de esperança.
Na pergunta 629, de “O livro dos espíritos”, temos: “Que definição se pode dar à moral? – A moral é a regra da boa conduta e portanto, da distinção entre o bem e o mal. Funda-se na observação da lei de Deus. O homem se conduz bem quando faz tudo tendo em vista o bem e para o bem de todos, porque então observa a lei de Deus.”
A advogada Eny Moreira, apoiando-se num sistema de leis que, à época, estava fragilizado e desmoralizado, cumpriu o que “O livro dos espíritos” traz como a observação da lei de Deus. Ao visitar seus clientes, prestou assistência a toda a comunidade do entorno. Não deixou nem um encarcerado sem o acalento de sua presença. E, ao fazer isso, também avançou na luta pela reconquista de um precioso bem coletivo, que só seria recuperado muitos anos depois, a democracia.
Até onde se sabe, Eny não era espírita e, provavelmente, não utilizava a expressão “reforma íntima”, que pode ser caracterizada como uma busca pelo bom caminho, descrito no item “Missão dos espíritas”, capítulo XX de “O evangelho segundo o espiritismo”:
“(…) como reconhecer os que se acham no bom caminho? Podeis reconhecê-los pelo ensino e prática dos verdadeiros princípios da caridade; pela consolação que distribuírem aos aflitos; pelo amor que dedicarem ao próximo; pela sua abnegação e seu altruísmo.”
Tudo que se encontrou registrado, acerca da atuação da Doutora Eny, revela coerência com a noite de Natal descrita por Frei Betto. A jovem advogada viveu para ver a derrocada da ditadura militar.
“Eny Moreira deverá ser lembrada como uma militante política que primou por atuar apaixonadamente em defesa da restauração da democracia no Brasil e que, movida por uma profunda indignação, jamais se curvou frente às pressões e ameaças que recebeu” (Pedlowski e Asfora, 2010, p.222)[2].
Eny não distribuía cestas básicas, advogava. É a única mulher citada num livro registrou a atuação dos bacharéis que trabalharam em conformidade com a definição de Sobral Pinto, destacada na contracapa:
“O advogado só é advogado quando tem coragem de se opor aos poderosos de todo gênero que se dedicam à opressão pelo poder. É dever do advogado defender o oprimido. Se não o faz, está apenas se dedicando a uma profissão que lhe dá sustento e à sua família. Não é advogado.”
Também não se encontra nenhuma menção à Eny como pessoa caridosa. Para compreender essa dimensão, teremos de recorrer à literatura espírita progressista:
“Passando, portanto, ao próximo ciclo da espiral dialética na busca de sua transformação moral e cognitiva, os espíritas precisam despertar para a forma de caridade mais abrangente e pautada nas necessidades reais da sociedade em que vivem. Essa forma de caridade tem o nome singelo de política. Ela é a expressão maior da caridade, pois é por meio da atividade política, pautada no respeito e no desprendimento, que se pode alcançar a totalidade da sociedade que se administra ou legisla. Apesar da repulsa que muitos espíritas ainda sentem pela participação mais ativa na política, consolidando dentro do ambiente das casas espíritas o errôneo conceito da criminalização da atividade política, deve-se ressaltar que ela não é apenas uma forma possível de solução dos graves problemas sociais em que se vive, a política é a única forma real de solução e qualquer outra forma, por mais que haja empenho e amor envolvidos, será simplesmente uma ação paliativa que resolve problemas pontuais sem alcance significativo” (Pinto, 2021, p.212)[4].
Enfim, Eny Raimundo Moreira, presente e necessária, aqui na terra, está no céu. Qualquer que seja sua definição de céu.
Notas:
[1] Christo, Carlos Alberto Libânio . Eny Raimundo Moreira, a advogada que enfrentou a Ditadura Militar. Disponível em https://www.freibetto.org/index.php/artigos/14-artigos
[2] Pedlowski, Marcos A.; Asfora, Nicolle. Eny Moreira: breve história de uma advogada movida pela indignação. In: Sá, Fernando; Munteal, Oswaldo; Martins, Paulo Emílio (orgs). Os advogados e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.
[3] Castro, Aldemário Araújo. Advocacia: a profissão da solidariedade social e da empatia. Disponível em https://questaopolitica.com.br/advocacia-a-profissao-da-solidariedade-social-e-da-empatia/
[4] Pinto, Sergio Mauricio. Bem, caridade e política: relações necessárias. In: Incontri, Dora; Pinto, Sergio Mauricio (orgs). Espiritismo, sociedade e política: projetos de transformação. Bragança Paulista: Comenius, 2021.