Feminismos com Susete Campos
Relato de Susete Campos, que acompanha o Coletivo Espíritas à Esquerda desde o I Encontro Nacional em 2019, em Salvador
“Em tempos de tempestades
Diversas adversidades
Eu me equilibro e requebro
É que eu sou tal qual a vara
Bamba de bambu-taquara
Eu envergo mas não quebro” (Lenine)
Lá em 2019, quando aconteceu o primeiro encontro dos EàE, imaginávamos que esses anos seguintes seriam difíceis, mas foram piores que o anúncio do pesadelo. Tudo que já foi um dia, deixou de sê-lo. Veio a pandemia –solidão, doença e morte. Despedidas e enterros. A perversidade travestida de governo nos horrorizou diariamente com absurdos, violências, desrespeitos, malfeitos, malandragens, crueldades. Não houve um dia sequer em que o mal não se descortinasse à nossa frente e sem que nos perguntássemos até quando.
Mas como não há mal que se imponha para sempre, resistimos. Tivemos importantes vitórias na justiça. A operação lava-jato, agora conhecida como farsa-jato, ruiu junto com seus heróis fajutos. Estamos nos preparando para um novo tempo de esperança.
Envergamos, mas não quebramos.
Paralelamente, o movimento de espíritas progressistas floresceu. Com a criação de vários coletivos, foi produzida uma vasta lista de materiais de estudo no formato de
lives, reuniões
online, publicação de novos livros. Foi como uma onda resgatando companheiros e companheiras de ideais, pessoas desiludidas com o que se transformou as casas espíritas sob a égide da FEB.
Envergamos, mas não quebramos.
Em agosto de 2020, o grupo EàE-DF criou o grupo de estudo Léon Denis com reuniões quinzenais. O primeiro tema estudado foi a Teologia da Libertação (Leonardo Boff e Frei Betto) com foco na metodologia de ensino de Paulo Freire e nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB). Passamos pela obra de Léon Denis,
Socialismo e espiritismo, e atualmente estamos estudando a obra de Herculano Pires,
O Reino. Fazer parte dos grupos de
WhatsApp desse pessoal, ler e discutir, em reuniões quinzenais, também tem sido uma forma de resistir. Mas queremos mais. Inspirados por Paulo Freire, é preciso esperançar, agindo. Queremos levar adiante nossos projetos, junto com todos e todas que se somam e sonham com um mundo mais justo e fraterno, o Reino anunciado por Jesus.
Envergamos, mas não quebramos.
Com adiamento de mais de dois anos por conta da pandemia, finalmente em 10 de julho, em São Paulo, aconteceu o II Encontro Nacional da Esquerda Espírita, com os seguintes temas para reflexão e debate “Política e eleições” e “Conjuntura política brasileira”. Calor humano, reflexão, escuta ativa, assim foi nosso dia.
O objetivo desse texto é fazer um registro do conteúdo das palestras, para que essas falas possam trazer conhecimento, reflexão e inspiração para agir.
Dora Incontri
Dora Incontri (educadora, jornalista, poetisa e escritora) nos dá conta que o movimento progressista espírita começou há, pelo menos, vinte anos (ver a obra
Cristianismo libertador, de Alysson Mascaro, publicado em 2002), pavimentando esse pensamento em diálogo aberto com o mundo contemporâneo, com as ciências, com a filosofia e com as teorias sociais. Nada de embalar o espiritismo em garrafas de água fluidificada, pelo contrário, conduzi-lo para a ação em busca da melhoria da sociedade. E sim, devemos recuperar a prática mediúnica, hoje restrita aos centros espíritas. Todos nós podemos fazê-la em nossas casas, inclusive. Dois desafios são trazidos para nossa reflexão:
1)
Fazer a luta social sem perdermos a dimensão da espiritualidade. É a transcendência que nos garante que haverá um futuro melhor. O caminho é de equilíbrio e junção. Dentro do centro espírita deve-se falar de política, não partidária, de questões sociais, estrutura da sociedade, introduzir educação sociopolítica para os seus frequentadores. Precisamos entender o mundo para atuar nele.
2)
Necessidade de união entre os progressistas. Podemos discutir ideias de forma respeitosa, divergir sem sermos radicais. O caminho consistente para o debate sério são os estudos.
Precisamos vencer esses desafios para contribuirmos com a transformação do mundo tornando-o mais justo e mais pacífico. Diálogo interreligioso e educação em suas dimensões crítica, espiritual, cognitiva e afetiva são caminhos consistentes para transformar nosso mundo no reino anunciado.
Apesar da inegável importância de Kardec, é necessário reconhecer as limitações históricas do seu tempo e as contradições em sua obra.
E como lidar com os fascistas, com a extrema-direita? De forma respeitosa sempre, sem nos igualarmos aos discursos de ódio, pois alguns deles poderão ser tocados e, um dia, todos deixarão de sê-lo.
Dois pilares da doutrina: o da fé raciocinada e o de que ciência e religião não podem se opor, devendo a religião se orientar com base na ciência e, se preciso, ajustar-se a ela em suas evoluções e revisões.
Thiago Torres, o “Chavoso da USP”
Thiago Torres, o “Chavoso da USP” (22 anos, estudante de ciências sociais da USP, morador da Brasilândia, zona norte da cidade de São Paulo, com 200.000 seguidores no Instagram). Foi uma grata surpresa conhecer a história desse jovem estudante, que acredita que a educação é o principal instrumento para romper barreiras entre a periferia e a universidade. De espírito inquieto, criado na periferia com formação evangélica, cedo começou a frequentar o movimento espírita e a estudar, por conta própria, as obras básicas de Kardec. De início percebeu a diferença das pessoas da periferia com os frequentadores do centro. Identificou-se com a dinâmica do funcionamento da mocidade, aberta ao diálogo para construir conhecimento e, por outro lado, se incomodou com as falas conservadoras e moralistas de dirigentes, que lhe pareceram elitistas, racistas e problemáticas como é o caso do tema reencarnação, usado como dogma para explicar tudo, inclusive as desigualdades sociais e outras atrocidades.
Pelo conhecimento adquirido, passou a enxergar o distanciamento dos fundamentos de Kardec com o espiritismo de Chico Xavier. Destaca as contradições do livro
Nosso Lar, com lugares, colônias, umbral, cidades espirituais, tudo pré-determinado para cada tipo de espírito que desencarna. Se a ciência, na época de Kardec, tinha traços racistas, esses traços influenciaram a obra kardecista, na qual os espíritos superiores são sempre de origem branca e europeia, e os seguidores sempre pessoas da classe média (advogados, médicos etc.).
Conheceu a umbanda, onde sentiu o ambiente mais acolhedor, sem moralismo e conservadorismo. Optou por permanecer no espiritismo por entender tratar-se de uma filosofia espiritualista, portanto, aberta ao debate e à crítica, com espaços a serem ocupados.
Como ciência, o espiritismo deveria estar em constante construção e a orientação de Kardec foi seguir a ciência. Nesse contexto, considera que o espiritismo deveria seguir a ciência que defende a descriminalização do aborto como uma questão de saúde pública. A exemplo da condenação do aborto, o espiritismo não incorporou os debates contemporâneos das ciências, em especial as ciências sociais e biológicas, o que denota seu religiosismo.
Pontos importantes da sua fala:
– Reencarnação para justificar desigualdades e anestesiar consciências;
– Crença cega no conteúdo das mensagens recebidas por espíritos ditos “superiores”;
– Uso da filosofia espírita, pela classe dominante, para oprimir, manipular e controlar a população mais pobre e vulnerável. “
Tudo que acontece é por vontade de Deus”, “
você escolheu suas provas e então deve aceitá-las sem questionar”;
– Nem tudo vai ser resolvido no amor e no diálogo. O nazismo só foi derrotado por um outro exército;
– A condição de pobreza é responsabilidade da classe dominante e devemos reduzir a culpa do pobre;
– A classe média tem seus direitos garantidos. A população pobre não tem;
– Ter casa, emprego, saúde, educação é direito. Ter jatinhos, iate, mansões é privilégio;
– Reforma íntima que ignora a necessidade de reformas sociais não é reforma; e
– A ideia da caridade do branco/rico “salvando” o negro/pobre deve ser problematizada; caridade é necessária, mas jamais suficiente. Melhor substituir caridade por justiça social.
Luiza Erundina
Luiza Erundina, deputada federal. Em sua exposição, a deputada apresentou uma leitura do atual cenário político do país e nos alertou que haverá tentativa de golpe. A política é a única ferramenta para transformar a realidade social. A esperança é revolucionária, desde que acompanhada de ação.
Juliana Magalhães
Juliana Magalhães, bacharela e doutora em direito. Distanciamento da prática espírita com os fundamentos de Kardec. Espiritismo deveria ser um agente de transformação social, daí sua visão crítica do movimento no Brasil, do sistema capitalista e, consequentemente, seu interesse e estudo aprofundado do marxismo. A sociedade capitalista é uma imensa coleção de mercadoria, em que estão separados os trabalhadores de um lado e proprietários dos meios de produção de outro. É o direito que vai garantir a propriedade privada.
Questão: “Qual o grau de liberdade que o trabalhador tem, de fato, no capitalismo?”
Razão da religião: “Deus dá o frio conforme o cobertor”. É o ópio do povo, funcionando tanto como um lenitivo ou como algo para alienar. No capitalismo, a religião assume o papel coadjuvante de fazer com que as pessoas não exerçam o papel de crítica mais avançada (conformismo).
No Brasil, o movimento espírita fecha os olhos para a realidade do mundo, incorpora o reacionarismo que baliza o seu pensamento, distorcendo o próprio Kardec e legitimando as injustiças sociais numa sociedade de exploração. A ideologia do capitalismo é que vai normalizar os pobres sem-teto, sem-terra. Caridade assistencialista não transforma o mundo.
Naturalizar as desigualdades é anticiência.
Kardec, como herdeiro do iluminismo, buscava distanciar o aspecto religioso, era crítico de rituais, hierarquias, amuletos e qualquer distinção entre as pessoas. Era defensor da ciência e da razão.
Aristóteles: “
Toda justiça é social”. Só se é justo na pólis. Eu só posso ser justo numa pólis justa. Daí a incoerência de espíritas condenarem movimentos sociais como o MST e MTST, que reivindicam o básico: terra e teto.
Capitalismo é um patriarcado, produtor de mercadorias, é racista, homofóbico, tudo contrário à ética de Jesus, que nasceu de uma mulher e viveu uma vida material.
Do que adianta falar de amor ao próximo, de caridade, se há oposição às conquistas sociais no discurso reacionário que os espíritas abraçaram?
É possível pensar criticamente a sociedade e transformá-la.
Alysson Mascaro
Alysson Mascaro, jurista marxista, escritor. A religião tem um papel histórico na defesa do mundo –aristocrático, feudal, burguês– para fins de dominação.
Iluminismo (século XVIII): insurgência da burguesia em defesa do uso da razão, “luzes da razão contra as trevas da fé”. Nessa época deveriam ter sido extintas as religiões por falta de materialidade suficiente para sua justificativa. Ou seja, há 250 anos a humanidade já possuía material teórico para superar as religiões.
Ao invés de extinguir a religião, a própria burguesia a reconfigurou sob as formas do orgulho protestante, do catolicismo reacionário (misticismos) e do esoterismo (de onde surge o espiritismo).
No início do sec. XX, o imperialismo ideológico estadunidense se manifestou com as igrejas pentecostais e neopentecostais, criadas num caldo político originalmente protestante. Esse modelo serve de combate a todo progressismo que impede que lutas e conquistas sociais aconteçam (EUA não tem saúde pública, por exemplo). A religião nos EUA funciona como trava ideológica.
A ideologia do imperialismo religioso americano pentecostal e neopentecostal prosperou no Brasil e hoje a religião evangélica representa quase a metade da nossa população.
A religião funciona como instrumento para bloquear as lutas e avanços sociais. As populações desgraçadas morrem para enriquecer o 0,1% de ricos do mundo e um dos gatilhos imediatos disso é a religião. Quanto mais o capitalismo se impõe com todas as suas contradições, mais o povo se torna religioso. O sistema precisa de uma massa oprimida e dócil para o interesse de sua exploração.
A religião tem um papel estrutural que tem sido cumprido há 200 anos, que é reacionário, na medida que faz acreditar que tudo é vontade divina, que o presidente tal é enviado de Deus, que nenhuma folha cai sem ordem divina, que todas as mensagens psicografadas do espírito tal é verdadeira e por aí vai. Ou seja, todos os movimentos religiosos servem a esse reacionarismo.
A experiência católica da Teologia da Libertação com as Comunidades Eclesiais de Base (CEB) mostrou-se como a única tentativa notável de uma religião implantar uma visão progressista e que teve alcance das massas. No entanto, o movimento foi abafado por decisão do Vaticano.
A própria trajetória progressista no campo das religiões tem um teto muito baixo. O afeto, que é gestado nas massas para que elas se aproximem da religião, é um afeto conservador, tendente ao reacionarismo. Pela tradição das religiões, os sofrimentos são explicáveis por causas ocultas de tal forma que o impulso não é de transformação e sim de consolação. Daí a necessidade de avançar progressivamente dentro das religiões que querem apenas consolar para manter o que aí está. O aspecto religioso do espiritismo impede seu desenvolvimento progressista.
A tutela religiosa não permite avançar o progressismo nas religiões.
Com o surgimento de novos grupos religiosos progressistas há que se estabelecer um horizonte em favor da racionalidade da ciência e um horizonte no qual as lutas sociais se apresentem como a sua diretriz e sua dinâmica.
É chegado o tempo da ciência, da ciência da transformação social.
Finalizando
E depois de todos esses conteúdos, houve a plenária para discutir os rumos da esquerda espírita que deve ser o mote de relatos futuros. Apenas para começo de conversa, as mulheres progressistas apresentaram um manifesto pela descriminalização do aborto.
Envergamos, mas não quebramos.