Mulheres espíritas pelo direito de decidir

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A Plenária do Segundo Encontro Nacional recebeu o primeiro manifesto das Mulheres Espíritas pelo Direito de Decidir.

O tema do aborto começou a ser discutido entre um grupo de mulheres do Coletivo Espíritas à Esquerda após a repercussão do artigo “Desprezado Patriarcado, até quando”, na coluna Feminismos. A discussão ensejou outra publicação, “Ouvindo as Mulheres: aborto e movimento espírita”. Em seguida, um grupo de mulheres do núcleo regional do Distrito Federal organizou um debate on line “Diálogos sobre o aborto – sob o enfoque Espírita”, em 30 de junho de 2022 (infelizmente, não ficou gravado). O evento on line contou com a participação de representantes dos diversos núcleos estaduais e teve, como encaminhamento, a criação do Coletivo Mulheres Espíritas pelo Direito de Decidir. O Coletivo das mulheres elaborou um manifesto, apresentado e aprovado na plenária do Segundo Encontro Nacional da Esquerda Espírita. A seguir, apresenta-se a íntegra do Manifesto. O tema aborto é criminalizado na sociedade e no movimento espírita tradicional, a partir de premissas que atendem a uma perspectiva de controle do corpo da mulher, fato já amplamente descrito em estudos científicos validados. O espírito que, em dada existência, toma um corpo feminino, estabelece com este uma relação na qual irá construir conhecimentos específicos, a partir de condições socialmente determinadas, sendo, uma das mais determinantes, a condição de gênero. Este espírito está encarnado para intervir na realidade do mundo material, em conformidade com suas escolhas. Por vivermos em uma sociedade que estabelece padrões de comportamento e delimita espaços às mulheres, existir nessa condição é um constante desafio à alma. Há papéis sociais estabelecidos às mulheres como zelar pela moralidade, guardar recato, resignar-se, acolher de forma incondicional, cuidar de todos e produzir filhos. Embora seja lugar comum a ideia de que ter filhos seja destino de todos os espíritos encarnados como mulheres, a fatalidade não é uma premissa da Doutrina Espírita, conforme se vê nas obras da Codificação, como o Livro dos Espíritos (LE). Ser mãe, em princípio, é uma condição biológica e não um dever. O Espírito, ora encarnado em corpo feminino, tem livre arbítrio para escolher – ser ou não ser mãe – a partir de motivações próprias, não cabendo a ninguém – Estado, Igreja ou Centro Espírita – determinar essa decisão. É necessário falar, abertamente, acerca do aborto, no ambiente espírita, relembrando que a alma é livre para decidir acerca de seus caminhos durante a existência física.

843: “Pois que tem a liberdade de pensar, tem a de agir. Sem o livre-arbítrio o homem seria uma máquina”. (LE).

Também é urgente reviver a prática explicitada no Evangelho Segundo o Espiritismo, acerca da indulgência para com todos e todas.

ESSE – Cap. 10 – A Indulgência – (…) A indulgência jamais se preocupa com os maus atos alheios, a menos que seja para prestar um serviço, mas ainda assim com o cuidado de os atenuar tanto quanto possível. Não faz observações chocantes, nem traz censuras nos lábios, mas apenas conselhos, quase sempre velados. Quando criticais, que dedução se deve tirar das vossas palavras? A de que vós, que censurais, não praticastes o que condenais, e valeis mais do que o culpado. Oh, homens! Quando passareis a julgar os vossos próprios corações, os vossos próprios pensamentos e os vossos próprios atos, sem vos ocupardes do que fazem os vossos irmãos? Quando fitareis os vossos olhos severos somente sobre vós mesmos?

Acolher hoje, acolher amanhã, acolher sempre: eis o que se espera dos espíritas. A Caridade, pilar da Doutrina, chama atenção para as irmãs que chegam às casas espíritas suplicando auxílio e conforto, seja da ordem material ou espiritual.

886. Qual o verdadeiro sentido da palavra caridade, como a entendia Jesus?

“Benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas.”

Além de acolher é necessário compreender os desafios das formas atuais de organização das famílias e do exercício da sexualidade, superando a visão medieval de sexo como “pecado” ou ato fisiológico destinado apenas à procriação. Sobre a sexualidade, também a ciência – instituição respeitada no âmbito da Doutrina Espírita –oferece resultados de pesquisa acerca de sua influência sobre a saúde física e emocional. Entender esse fenômeno e esclarecer as pessoas sobre o exercício de uma sexualidade responsável – bem como sobre abusos sexuais – é importante na prevenção de uma concepção indesejada. Se punir o aborto não o evita, tampouco execrar a se xualidade contribui para seu exercício saudável. Fora do ambiente da religiosidade, há as questões de saúde pública, abordadas nas áreas das Ciências da Saúde, notadamente nas áreas da Epidemiologia e Saúde Coletiva. Com a criminalização do aborto, as mulheres, especialmente as pretas e pobres, não têm acesso a cuidados no sistema público e, aquelas que conseguem atendimento privado, podem vir a sofrer discriminação, violência obstétrica ou ainda ter sua intimidade violada. Sem acesso aberto ao Sistema de Saúde, os abortos são subnotificados, prejudicando os registros epidemiológicos e impedindo a mensuração correta do fenômeno da interrupção de gravidez, suas associações causais, intercorrências e desfechos. Ou seja, não se conhece, com rigor científico, as razões que levam mulheres e meninas a abortarem ou o que falhou em seus planos reprodutivos. Podem ser mulheres que não têm acesso regular a métodos contraceptivos; que não saibam usá-los da forma correta; que estejam em situação crônica de violência sexual ou ainda convivendo com companheiros que recusam a contracepção. Tratar o aborto como questão de saúde pública, além de proteger a vida das mulheres, pode prevenir a ocorrência de mais abortos. A Organização Mundial de Saúde estabelece diretrizes sobre o aborto, na perspectiva de proteger a saúde de qualquer pessoa que possa engravidar. Segundo a OMS, cerca de 25 milhões de abortos inseguros são realizados anualmente, o que resulta em altos percentuais de complicações pós-operatórias, hospitalizações e mortes. No Brasil o aborto é considerado crime, na maioria das situações e, por isso, muitas mulheres interrompem a gravidez usando métodos inadequados e perigosos. Além disso, evitam procurar ajuda médica até que as complicações se tornem muito graves. Estima-se que metade dos abortos, no País, resulta em internação posterior e que quase todas essas internações poderiam ser evitadas. A Organização Mundial da Saúde calcula que apenas 2% a 5% das mulheres fazem aborto com medicamentos confiáveis, sem necessidade de intervenção posterior. Criminalizar o aborto traz intercorrências evitáveis nas condições de saúde dos indivíduos, risco de vida e ônus para o Sistema. A maternidade somente será de livre decisão para as mulheres se, além das condições materiais e sociais, elas puderem ter acesso a meios de planejamento reprodutivo e também ao aborto legal, seguro e gratuito, livres do controle de natalidade exercido pelo Estado e por instituições religiosas. Pelos motivos expostos neste Manifesto, entendemos a necessidade de parar de tratar o aborto sob a ótica do moralismo religioso. Ele deve ser visto como parte de uma ampla Política de Saúde, entendendo-se saúde como bem estar físico, moral, social e espiritual. Nós, mulheres espíritas progressistas, entendemos que a vida deve ser preservada em primeiro lugar, principalmente, a vida das mulheres. Reconhecemos a existência de mulheres que, por inúmeras razões, decidem abortar. Elas são nossas irmãs ou somos nós mesmas, em diferentes momentos de nossas vidas. Nessa situação, as mulheres necessitam de acolhimento e não de dedos apontados ou anátemas. Em um estado laico, o aborto é competência da área da Saúde Pública e somos a favor da sua descriminalização. Aos espíritas compete não julgar e sim, acolher, a mulher que os procura em busca de alívio para suas dores. Também não cabe, aos espíritas, definir para que local irá a alma da mulher que aborta, após o encerramento de sua vida física e sim esclarecer que novas oportunidades de servir surgirão e que ela terá apoio social, emocional e espiritual para que esteja pronta para assumir os encargos de sua jornada. Assim, a proposta das Mulheres Espíritas pelo Direito de Decidir, a esta plenária, é:
  • Discutir sexualidade, contracepção, saúde das mulheres e aborto, sem anatematização ou tabus, no âmbito das casas espíritas,
  • Acolher e esclarecer todas as mulheres que nos procurarem num momento em que estejam atormentadas pela dor de uma gravidez indesejada, sem julgá-las e sem ter a arrogância de querer influenciar nas suas decisões, reconhecendo seu livre arbítrio.
Por uma maternidade verdadeiramente livre!

II Encontro Nacional da Esquerda Espírita foi um sucesso

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O II Encontro Nacional da Esquerda Espírita, organizado pelo Coletivo Espíritas à Esquerda aconteceu no domingo, 10 de julho, em São Paulo, na sede do Sindicato dos Bancários. O evento reuniu cerca de 100 pessoas presencialmente e mais cerca de 150 pessoas simultaneamente que assistiram à transmissão online pelo YouTube, Twitter e Facebook. A primeira palestra esteve a cargo da professora Dora Incontri, que tem reconhecida produção teórica e várias publicações que questionam o conservadorismo dos espiritismo tradicional e propõem uma profunda reflexão sobre a obra de Kardec, sobretudo com a compreensão do período histórico em que ele produziu a sua obra. Dora defende que os equívocos e limitações sejam apontados, preservando a integridade da obra, mas apontando o que deve ser revisto. Thiago Torres, estudante de Ciências Sociais da USP, de 22 anos, foi o segundo palestrante. Ele é conhecido como @chavososdausp e soma mais de 200 mil seguidores nas redes sociais onde discute política, filosofia e sociologia falando a partir de seu lugar de jovem da periferia paulistana. Ele próprio resumiu sua participação em seu perfil no Instagram: Contei minha trajetória no espiritismo, apresentei algumas das minhas críticas ao movimento e falei da necessidade de resgatarmos suas raízes filosóficas, científicas e, principalmente, progressistas, em meio ao reacionarismo em que se afundou. Relembrei a famosa frase de Paulo Freire (que inclusive foi secretário da Educação de Erundina), de que nossa esperança deve vir do verbo ‘esperançar’, e não do verbo ‘esperar’. A superação desse mundo de provas e expiações, para um mundo de paz e harmonia que nós espíritas almejamos depende da nossa ação coletiva para acontecer. Saltando de uma geração para outra, a terceira convidada a falar foi a deputada federal do PSOL de SP, Luiza Erundina, 87 anos. A ex-prefeita de São Paulo falou sobre a conjuntura política nacional e ressaltou a importância de movimentos progressistas, que pensam a sociedade a partir de perspectivas espiritualistas, ganharem força e intervirem na realidade. A deputada enfatizou a importância do engajamento da juventude, expressando admiração pela fala de Chavoso, que a antecedeu. A doutora em Direito Juliana Magalhães foi a quarta painelista, compartilhando a elaboração crítica considerando a ideologia como resultado de práticas materiais. Refletiu sobre como as esquerdas do mundo todo restringem sua percepção a um universo juridicamente organizado, institucional e eleitoral, numa visão de que o estado “vai nos salvar”. Utilizou versos de Adoniran Barbosa para exemplificar que o direito serve sobretudo para defender a propriedade privada da burguesia: “Saudosa maloca é sobre um despejo, uma reintegração de posse”. Segundo ela o verso “os homi tão com a razão, nós arranja outro lugar”, exemplifica a submissão à ordem jurídica. E mais: “Deus dá o frio, conforme o cobertor”, materializa a submissão a uma suposta ordem divina que naturaliza a desigualdade na forma do conformismo. Juliana destacou que “o espírita constituído pela ideologia burguesa, pela lógica do capitalismo, replica o discurso de uma ordem constituída e sacralizada, mas que é apenas a ordem capitalista injusta e desumana”. Acometido por Covid-19, o quinto palestrante, Alysson Mascaro participou à distância do evento, mas acrescentou uma profunda reflexão sobre o papel das religiões no decorrer da história. O jurista e escritor afirmou que “estamos com 250 anos de atraso histórico para acabar com as religiões”. Destacou que as religiões não têm materialidade suficiente para sua justificativa desde o tempo do iluminismo, no século XVIII. Segundo ele, “a própria trajetória progressista no campo das religiões tem um teto muito baixo; a igreja católica que conheceu  a Teologia da Libertação teve, por condução papal, o extermínio desta experiência”. O afeto que é gestado nas massas para que elas se aproximem da religião é uma afeto efetivamente conservador, tendente ao reacionarismo. Pessoas buscam a religião por perspectivas que confirmarão expectativas conservadoras de que há uma razão de ser no mundo, de que os sofrimentos são explicáveis por causas ocultas”, disse Mascaro.

Plenária

Após as palestras, na parte da tarde, foi realizada uma Plenária do Coletivo Espíritas à Esquerda. Foi discutida espacialmente a organização do coletivo na perspectiva de fortalecer-se como um movimento “atuante, solidário e inclusivo”, acentuando a identidade suprapartidária de esquerda, que acolhe os movimentos sociais e identitários respeitando a sua autonomia. A plenária deliberou que o próximo período vai ser dedicado à ampliação e consolidação dos grupos regionais, com ênfase na realização de eventos presenciais na perspectiva de iniciar efetivamente a construção de Núcleos Espíritas Populares, especialmente para acolher populações marginalizadas socialmente.

VEJA A ÍNTEGRA DAS PALESTRAS

 

Do átomo ao arcanjo

Releituras kardecistas –  Marcio Sales Saraiva

Os espíritos foram criados “simples e ignorantes” ou “sem saber”. Eles crescem gradualmente até chegarem “progressivamente à perfeição”, através do “conhecimento da verdade” que brota das experiências múltiplas.

Esta é a síntese da evolução pessoal que os espíritos apresentam para Allan Kardec na questão 115, em O livro dos espíritos. Nada se diz sobre a tal “reforma íntima”. A questão é viver, experienciar, aprender e crescer, amadurecer, até chegar à plenitude de si mesmo. Esta é a concepção espírita, sem firulas ou misticismos.

Em outras palavras, podemos dizer que o espiritismo é universalista quando analisa a salvação-redenção dos indivíduos. Isso quer dizer que ninguém será condenado ao “inferno eterno” e, portanto, todos os espíritos “se tornarão perfeitos” um dia, pois “um pai justo e misericordioso não pode banir eternamente seus filhos” (questão 116), tal como pregam algumas religiões, especialmente as de matriz judaico-cristã.

É claro que o ritmo de amadurecimento e plenitude é pessoalíssimo. Cada espírito chegará ao ápice de seu desenvolvimento cognitivo e moral no tempo que for necessário, através de uma longa jornada por diversas encarnações. Alguns já alcançaram esta plenitude, outros ainda caminham com dificuldades, alguns estão parados na estrada faz tempo, mas nenhum espírito retrograda (questão 118). Ou seja, de acordo com o kardecismo, todos os espíritos crescem em ritmo variado, alguns podem até estacionar por algum tempo, mas nenhum poderá retroceder, pois isto feriria a lei natural de progresso contínuo.

Quando olhamos para o mundo, é fácil identificar espíritos reencarnados fazendo o mal, destruindo políticas sociais, ampliando o desemprego, espalhando o armamentismo, ampliando a fome e a desigualdade, agindo com egoísmo, perversidade e má-fé. Os espíritos dizem para Kardec que tais ações malignas nada têm com a criação divina, ou seja, “Deus não criou espíritos maus”, mas estes se tornaram maus “por sua vontade” (questão 121) e é sobre isso a alegoria da queda adâmica (questão 122).

Aí está a lei de liberdade. Os espíritos, encarnados ou desencarnados, podem escolher o caminho do mal e abandalharem-se. Deus, como mecanismo causal-criador, nada faz para intervir ou impedir, porém, de acordo com as leis cósmicas criadas pela causa primária, todo o mal feito irá retornar para quem o fez. Não por vingança, mas por conta de um mecanismo natural chamado lei de causa e efeito. Recebemos o que fazemos, sempre! E assim o mundo se autoajusta.

Nesta grande marcha ascensional, chamada por Pietro Ubaldi de “retorno ao sistema”, encontraremos espíritos que desde o início caminharam pela estrada íngreme do bem, outros pegaram o atalho do mal, mas todos estão envolvidos pela lei de progresso, todos estão em processo de aperfeiçoamento contínuo e dia chegará em que todos os espíritos chegarão à comunhão plena com a luz de Deus, à maturidade cognitiva-moral, ao estado de espíritos puros ou “anjos”, para usar uma imagem muito comum ao campo religioso.

Diz o Novo testamento que “Deus enviou o seu filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele” (João 3:17). A ideia de que Jesus é o salvador do mundo inteiro e de que todas as coisas estarão reconciliadas com a divindade, com a causa primária, foi chamada de “apocatástase” e defendida por um dos grandes pais da igreja, Orígenes de Alexandria. O que o espiritismo kardequiano faz é atualizar a linguagem e a compreensão da salvação universal (apocatástase) através de uma longa jornada do espírito pela reencarnação.

Com o espiritismo, as tenebrosas ideias de “inferno eterno” ou de “juízo de Deus” baseadas em uma única existência foram desconstruídas. No lugar disso, o pensamento kardequiano nos ensina que somos espíritos em processo evolutivo, caminhando na direção do infinito, errando e acertando, mas sempre crescendo. E que um dia chegaremos à plenitude de nós mesmos, sempre julgados pela nossa própria consciência. Dizem os bons espíritos para Kardec (questão 540):

É assim que tudo serve, que tudo se encadeia na natureza, desde o átomo primitivo até o arcanjo, que também começou por ser átomo. Admirável lei de harmonia, que o vosso acanhado espírito ainda não pôde apreender em seu conjunto!

Ouvindo as mulheres: aborto e movimento espírita

Feminismos –  com Elizabeth Hernandes e Marcos Costa

“Minha percepção acerca do aborto não foi modificada pelos homens, mas pelas mulheres”. A publicação, neste portal, do artigo “Desprezado Patriarcado, até quando?”  suscitou amplo debate, como é usual ocorrer, sempre que se aborda a temática do aborto. Uma das repercussões diz respeito à chamada, feita por um grupo de mulheres do EàE-DF, para um debate sobre o assunto. O encontro virtual, denominado “Diálogos sobre o aborto: enfoque espírita”, marcado para 30 de julho de 2022, tem como objetivo discutir o assunto e produzir um documento a ser apresentado na plenária do II Encontro Nacional da Esquerda Espírita, dia 10 de julho em São Paulo. Uma das questões que acirrou o debate do grupo do DF, foi o fato de os homens participarem na condição de ouvintes e, uma das contribuições apresentadas veio de Marcos Costa, que destacou a abordagem do assunto com base na codificação kardequiana e reafirmou a disposição de, neste assunto, ser ouvinte. Coerente com o que defende, Marcos aceitou que seu texto fosse publicado, desde que sua fala fosse mediada por uma mulher. Assim, apresento o relato do companheiro, no qual trabalhamos em conjunto no que tange à forma porque, na essência, não houve ressalva. O relato de um homem que se dispõe a ouvir as mulheres e caminhar junto traz esperança e perspectiva de concretude: juntos, humanos de todos os sexos e gêneros, podemos implantar o reino de justiça que Jesus anunciou para todos, todas e todes. Não havendo o que acrescentar, segue o relato de um homem que ouve as mulheres. “A experiência do corpo feminino não faz parte da minha encarnação atual, portanto para saber das dores e das alegrias de ser mulher somente escutando uma mulher. Preliminarmente, é importante destacar que movimento espírita, doutrina espírita e espiritismo são grandezas diferentes que, embora à primeira vista tratem de espiritismo, significam coisas distintas. Movimento espírita é o conjunto social de espíritas, que agem de forma não uníssona, mas com certas semelhanças por se definirem espíritas, e abrange pessoas de todas as identidades. Doutrina espírita é o texto compilado e explicitado desde Kardec, havendo concordância e discordância entre pontos, especialmente no que tange às explicações naturais e aos costumes, ainda mais assumindo-se que, com o tempo, a ciência e a sociedade evoluem. Espiritismo é a essência das ideias, que fluem no convívio entre os espíritas, no desvelar do plano espiritual, no trato com a existência carnal e espiritual, na práxis dos princípios morais e éticos, esses últimos, imutáveis. Fui muito a reboque do conceito pronto acerca do aborto dentro do movimento espírita. Desde criancinha escutava que aborto é errado e me parece que esse assunto foi levado ao patamar de ‘pecado capital’ dentro do espiritismo. Frequentei várias casas espíritas, venho de uma família espírita e era conceito absoluto: aborto é crime, compreende-se até que há atenuantes, mas a ideia geral é de que a mulher deve levar a gravidez até o fim, como forma de ‘demonstrar renúncia e abnegação’. É compreensível apenas o aborto espontâneo. Na leitura da literatura de Kardec, entretanto, o aborto é considerado como a interrupção de uma possibilidade de vida (questão 353 e 359 do LE), não de uma vida formada, e quem o faz, assumirá as consequências dos seus atos pela interrupção de uma possibilidade de vida (q. 358 do LE). Além disso, fica claro que há atenuantes (q. 359 do LE) e que o espírito que não reencarnou terá outras oportunidades (q. 357 do LE). Faço um parêntese e passo a tratar de outro ponto que também é considerado como capital para a doutrina espírita, mas que não tem o mesmo tratamento rígido, o suicídio. Em O livro dos espíritos o suicídio é tratado com muito mais rigor (questões 943 a 957), como um crime, sendo que se compreende os atenuantes, sejam culturais, falta de conhecimento, ausência de discernimento (doença mental). Mais ainda, entende-se que o suicídio provocado por situações de penúria é um ato reprovável, porém, será mais culpado aquele que provocou a penúria. Volto ao assunto e faço um balanço entre os dois atos mais reprováveis dentro da doutrina espírita, o aborto e o suicídio. Se há o entendimento dos espíritos de que o suicídio é ato bem mais reprovável, contudo, conforme os atenuantes já explicitados demonstram, há a presença não somente da misericórdia divina, mas da inteligência do plano espiritual ao lidar com o assunto, por que o movimento espírita não apresenta compreensão idêntica quanto ao aborto? Ressalto aqui os atenuantes citados: falta de conhecimento, penúria, fatores culturais e problemas de discernimento. A quem interessa reprovar mais o aborto que o suicídio? Eu tenho a resposta: é de interesse do patriarcado. O controle dos corpos femininos que se apresenta nas prescrições religiosas, que são em si instituições políticas, como é o movimento espírita, é universalmente exercido pelo homem. Sempre escutei: ‘ora’ (dirão alguns dentro do movimento espírita), ‘a dor educa!’ A mulher que escolhe progredir na gravidez, com todos os percalços, como resultado de sua renúncia e abnegação, será uma pessoa mais evoluída. Palavras usadas de modo dúbio, como vou demonstrar. Veja, no começo do texto expliquei que vendo e ouvindo aprendo muito sobre o que não posso vivenciar. Minha percepção acerca do aborto não foi modificada pelos homens, mas pelas mulheres. Conversando e convivendo com quem interrompeu uma gravidez não escutei uma só história que não fosse de muita dor, de muita angústia. Por que essa mulher que sofre com a angústia e a dor de ter de suprimir a gravidez também não teria como resultado um aprendizado, uma evolução? É controle sobre os corpos, é controle social! O querido Engels explicitou que o modo de produção familiar foi o primeiro que existiu, com a exploração do trabalho do mais forte sobre o mais fraco, do homem sobre a mulher, ou seja, a luta de classes começou com o patriarcado. Isso fica também muito evidente quando se identifica o tratamento diferenciado, especialmente entre as mulheres pobres e as ricas, quando o assunto é aborto. Para quem pode pagar, há inúmeras clínicas, esteticamente perfeitas, estéreis e mantidas sob uma fachada impecável. Os cuidados permitem a diminuição das possíveis sequelas a níveis aceitáveis do ponto de vista sanitário. Para as mulheres pobres há a opção de perfuração de placenta, chás e medicamentos abortivos, ou mesmo remoção por choque mecânico. O resultado é um trauma físico e nem sempre há um médico para atendê-las, causa de inúmeras sequelas e mortes. Historicamente o homem limitou ou extinguiu os direitos das mulheres, fato incontroverso. E, ao lembrarmos que hoje podem votar, trabalhar e escolher companheires, não podemos esquecer que nós homens não as permitimos escolher a gravidez, não permitimos os corpos femininos expostos, não permitimos as ideias femininas. Mas, na cabeça do homem médio, parece que o aborto é uma visita ao supermercado, onde se recolhe na prateleira um produto e se paga no caixa. Ledo engano, lembro sempre que é resultado de muita dor e desespero. As experiências de países, cito em especial os extremamente católicos, como Portugal e Uruguai (têm outros, mas vou ficar nesses exemplos), demonstram que, ao legalizarem o aborto, houve uma diminuição dessa incidência. Parece paradoxal, mas não é. Como o estado regulamentou uma situação que era tratada nos porões, as mulheres puderam ter auxílio e orientação profissionais. Quando manifestam a intenção de interromper a gravidez, há um período necessário de reflexão em que as mulheres são atendidas por profissionais capacitados, caso persista o interesse em prosseguir com o aborto, são informadas dos riscos à sua saúde resultantes e do apoio do estado à gravidez e à maternidade. Caso a mulher persista na decisão, são encaminhadas a uma clínica segura. Isso possibilitou a diminuição da morte materna para índices irrisórios. No Brasil, entre 1996 e 2018, ocorreram 38.919 óbitos maternos resultantes de causas obstétricas diretas, ou seja, complicações obstétricas durante gravidez, parto ou puerpério devido a intervenções desnecessárias, omissões, tratamento incorreto ou a uma cadeia de eventos resultantes de qualquer dessas causas. A principal causa de morte foi a hipertensão (8.186 óbitos), seguida por hemorragias (5.160 óbitos), infecção puerperal (2.624 óbitos) e, em quarto lugar, o aborto (1.896 óbitos). Ainda de acordo com essa sinistra estatística, a cada quatro dias morre uma mulher em decorrência de um aborto sem condições seguras. Na maioria dos casos de morte, trata-se de uma mulher pobre, que não teve acesso a uma clínica segura (1). [VEJA OS DADOS AQUI] Por isso, ouço as mulheres e com elas me solidarizo e busco ter empatia. Não sinto necessidade de ter voz nesse assunto, embora este longo texto, que trato mais como uma contribuição mínima. Sou um homem que apoia a descriminalização do aborto porque não quero ver nenhuma mulher presa ou morta em decorrência do controle que uma sociedade machista, misógina e exclusiva quer exercer sobre seus corpos.”

Desprezado Patriarcado, até quando?

Feminismos com Elizabeth Hernandes – EàE-DF

Eu havia prometido escrever sobre a violência imposta a uma criança, por profissionais do judiciário, que deveriam atuar no interesse das vítimas. Mas eu não conseguia falar sobre o assunto. O lado racional dizia que nada mais havia a acrescentar, mas isso era apenas para disfarçar o horror do emocional, que não queria mais ver, ouvir, falar. Porque dói demais falar sobre uma criança abusada que não teve o acolhimento de quem deveria acolher, proteger e resgatar. Porque quando falo de meninas é sobre mim mesma, é sobre minhas filhas, é sobre todas as mulheres.

E sabe, Patriarcado, tem dias que a gente se cansa. Mesmo as mais combativas, as que se importam, as que não se resignam, as que não obedecem sempre, mesmo essas, têm seus dias de cansaço. E eu, que nem sou tudo isso, me sentia muito cansada nos últimos tempos. Cansada da Amazônia envenenada, dos ambientalistas trucidados, dos números da fome e da morte, das injustiças nunca resolvidas (quem mandou matar Marielle?). Cansada.

Mas em meio a esse imenso desânimo, minha filha, que está fora do Brasil, me manda uma mensagem e se diz horrorizada com o que aconteceu a uma jovem atriz que foi estuprada e que se viu na circunstância de levar adiante a gravidez, até o parto, após o qual deu, legalmente, a criança para adoção. Essa moça teve a intimidade violada por outros coestupradores, profissionais da mídia.

Mais uma que sofreu a violência de um estuprador e depois, a dos coestupradores. E aí, Patriarcado, não tem cansaço que me mantenha calada porque eu preciso, no mínimo, perguntar: até quando?

Até quando mulheres e meninas estarão indefesas diante de estupradores e coestupradores que as recebem no sistema de saúde e não lhes prestam os devidos cuidados; que as julgam no sistema judiciário ou as perseguem na mídia? Até quando a falsa moral religiosa, aquela da pátria-com-deus-pela-família-e-pela-liberdade continuará a deixar meninas e mulheres sem pátria, sem Deus, sem família e sem liberdade? Até quando?

O que leva alguns agentes do judiciário, do sistema de saúde e dos meios de comunicação a tratarem vítimas de abuso sexual como culpadas? O que os faz descumprir regras básicas dos códigos de ética que devem reger suas práticas?

E você ri na minha cara, Patriarcado, dizendo que eu sei muito bem o que é.

Sim, eu e muitos já sabemos.

O que leva essas pessoas a se tornarem coestupradoras é a moral tacanha, capitalista e igrejeira que move as cordas ocultas e desveladas de uma sociedade cruel. Uma sociedade fundada na cultura do estupro, da escravização e da produção de lucro a qualquer custo, principalmente da vida das mulheres.

Uma sociedade cheia de pessoas rezadeiras que levam o terço numa mão e a chibata na outra; que frequentam o centro espírita e falam com voz macia em defesa da vida, mas apenas falam. Na prática, votam duro contra a vida. Contra a vida das mulheres, do povo preto e de tudo que ameaça seus imaginários privilégios. São imaginários porque se trata de uma ilusão de segurança: ninguém está seguro onde as mulheres não estão seguras, onde os pretos são mortos estupidamente e a floresta e os povos originários são, sistemática e paulatinamente, destruídos.

Você, Patriarcado, não tem escrúpulos em usar qualquer tipo de ameaça: milícia, polícia, poder judiciário, sistema de saúde, exposição na mídia, fogo do inferno ou frio do umbral. E segue impune, matando e lesionando mulheres e meninas, todos os dias, seja no aspecto físico ou emocional.

E assim será –tudo pra você e nada pra nós– até perdermos o medo de confrontá-lo. Até a gente não se permitir nem mesmo se sentir muito cansada e emudecida de dor. Assim será até o dia em que, no âmbito religioso, ao invés da culpa, seja o amor a nossa força mobilizadora. Até o dia em que nos dispusermos a crer num Deus que concede livre arbítrio e aceitarmos o legítimo e humano direito de resolver, na vida material e concreta, as questões que são materiais e concretas.

Até quando?

Até que religiões aceitem a existência das mulheres e do seu direito de defender-se de todas as formas de violência, das práticas que atrasam a implantação do reino de amor e justiça prometido por Jesus.

Atenção, Patriarcado, nós continuaremos em luta por uma religiosidade que defenda, de forma concreta, o direito à vida e à liberdade.

Para que este “até quando?” se torne hoje, precisamos falar –em todos os lugares e nas casas religiosas– sobre o direito das mulheres à vida. Precisamos combater o moralismo que causa a morte de umas e torna coestupradores a outros.

Por hoje é só, Patriarcado. Mas saiba que nós estamos atentas e, quando uma de nós se cansa, há sempre uma filha que nos lembra do nosso dever maior para com Deus: o de amar ao próximo na medida em que amamos a nós mesmas. Sempre haverá uma filha que dirá: levanta, mãe, porque é sobre mim.

II Encontro Nacional da Esquerda Espírita: 10 de julho em São Paulo

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O II Encontro Nacional da Esquerda Espírita (II ENEE) chega cheio de novidades. A programação contará com duas mesas pela manhã, com o tema “Política e eleições: debate necessário na casa espírita”, com Thiago Torres (Chavoso da USP), Dora Incontri e Alysson Mascaro já confirmados. Pela tarde, no II ENEE, haverá reunião plenária com o tema “Organização e projetos: construindo um coletivo popular”, com a presença de todos os participantes do encontro para pensar, discutir e deliberar sobre os rumos do movimento e do coletivo da esquerda espírita. O II ENEE ocorrerá na sede do Sindicato dos Bancários de SP, bem no centro da cidade, Rua São Bento, 413, Edf. Martinelli, próximo ao metrô São Bento. O Sindicato dos Bancários de SP receberá a esquerda espírita de coração e braços abertos. O Espíritas à Esquerda organizou o I ENEE em 2019, em Salvador, encontro que marcou o movimento espírita progressista. Foi organizado ainda o II ENEE no Rio, em 2020, mas a pandemia impediu a sua realização. Agora, o Espíritas à Esquerda retoma seus encontros nacionais presenciais com esse evento que certamente também marcará os rumos do movimento espírita progressista.

A participação no II ENEE é gratuita e as inscrições já estão abertas AQUI.

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Apesar de gratuita, a inscrição para a participação é obrigatória por conta do tamanho do espaço cedido pelo Sindicato dos Bancários de SP. Ainda estamos em pandemia e aprendendo a conviver com ela. Por isso é importante que todos os participantes tomem os cuidados necessários durante o evento, porque, afinal, o espiritismo progressista é um parceiro da ciência e não comporta o negacionismo. A apresentação do certificado de vacinação e o uso de máscara serão obrigatórios. Não perca esse evento. Agende-se. Inscreva-se. Participe.  

RELEMBRE AQUI O 1º ENCONTRO NACIONAL

 

O mundo espiritual, divisões de classe e o fim do diabo

Releituras kardecistas com Marcio Sales Saraiva

Se no mundo físico temos uma sociedade dividida em classes sociais diferentes, com preconceitos e exclusões que mantêm determinadas hierarquias sociais, mais ou menos opressivas, não é assim no mundo espiritual.

Os espíritos de luz dizem para Allan Kardec que existe diferença no mundo dos espíritos, mas ela está assentada no “grau de perfeição” –ciência, sabedoria e virtudes ou bondade– de cada um e nas afinidades que os aproximam (questão 96 e 98 de “O livro dos espíritos”).

Basicamente, os espíritos de luz identificam, grosso modo, três grandes famílias de espíritos: os espíritos puros (também chamados de anjos), os espíritos medianos (também chamados de bons espíritos, pois desejam fazer o bem) e os espíritos imperfeitos (neles prevalecem a ignorância, as más paixões ou o desejo do mal). Em outras palavras, na cosmovisão espírita não existem demônios ou espíritos devotados única e exclusivamente para o mal. Não há também a figura de satanás, nem de capetas que estariam constantemente atrapalhando os planos do bem.

Esse temor de espíritos malignos foi algo que o espiritismo kardequiano destruiu, libertando o ser humano de crendices inúteis e favorecendo que o mesmo assuma sua responsabilidade existencial sem culpas e sem buscar legitimação em “ações do diabo”.

Além disso, os chamados espíritos imperfeitos são apenas irmãos nossos que, com o tempo, alcançarão também o grau de perfeição que todos nós estamos destinados, ou seja, a plenitude em comunhão com Deus.

Não há, portanto, um estado fixo na maldade, mas apenas ilusão e ignorância que, gradualmente, será dissipada, fazendo com que esses espíritos imperfeitos cheguem ao grau de espíritos medianos até se elevarem à categoria de espíritos puros.

Sim, um dia, todos nós seremos espíritos puros, mas entre esse estado final e o que vivemos ainda hoje, vai um enorme abismo que, somente através das reencarnações, poderemos nos depurar e alcançá-lo.

Esta concepção evolucionista e progressiva é um poderoso antídoto contra os preconceitos e os pavores causados pelas velhas concepções religiosas de céu e inferno, povoado por demônios que atordoavam a paz de espíritos dos seres encarnados.

O espiritismo nos traz, assim, uma visão de mundo onde o mal e a ignorância são estados transitórios da alma e, como todas as coisas, tende ao crescimento e amadurecimento, através de erros e acertos, ao longo de um processo pedagógico chamado de reencarnação.

Um dos dados mais interessantes, na questão 99, é que os espíritos de luz colocam os omissos, aqueles que não fazem nem o bem nem o mal, os que não se engajam nem a favor nem contra, dentro da categoria de espíritos imperfeitos ou inferiores.

Se em algumas religiões, o silêncio e a “neutralidade” são valorizados, no espiritismo kardecista não é assim, pois nele não basta ficar “de fora” das coisas que acontecem na vida, escondendo-se das nossas responsabilidades éticas e políticas. É preciso se comprometer com o bem, com o processo de crescimento de si mesmo e da sociedade onde vive, pois nós somos responsáveis pela nossa existência e pelo mundo social que criamos ao longo das reencarnações.

É dentro deste quadro que Allan Kardec apresenta, em “O livro dos espíritos”, a chamada “escala espírita”, subdividindo as três grandes famílias espirituais em 10 “classes” ou “categorias” de espíritos. Não se trata de uma visão dogmática. Kardec deixa claro que esta tabela classificatória “nada tem de absoluta” (questão 100) e que “os espíritos não ligam a menor importância” (questão 100) para tais convenções, pois o importante é a compreensão geral da ideia e não as tabelas que humanamente construímos. As fronteiras entre as famílias espirituais são borradas ou fluidas, pois há intercâmbio e interações de diversos tipos.

Em resumo, esqueça essa conversa de diabo ou satanás, pois no mundo dos espíritos (ou extrafísico) temos apenas três grandes famílias espirituais, mas não encontramos nenhuma classe de “espíritos demoníacos” –de acordo com Allan Kardec!– e nem uma divisão de classe social onde relações de dominação e exploração sejam estruturais, como nas sociedades capitalistas existentes.

Só nos mundos inferiores e nas regiões menos adiantadas da espiritualidade (ou erraticidade) encontramos relações de dominação e exploração, portanto, abolir tais estruturas de opressão, exploração e violência deveria ser o objetivo de todos os espíritas encarnados, procurando fazer deste planeta um espaço de igualdade, liberdade, justiça e fraternidade.

Bolsoespiritismo: a opção pelo “eu” e o esquecimento da caridade

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É importante falar sobre o que se entende como bolsoespiritismo.
A adesão reacionária de muitas lideranças espíritas ao abjeto bolsonarismo não é a causa, mas uma consequência duma forma de entender e agir dentro do movimento espírita.
O agir autocentrado, pautado na infame “reforma íntima”, que se tornou um mantra desse tipo de reflexão egoica, já produziu seus frutos apodrecidos no transcorrer da curta história do movimento espírita.
Médiuns, palestrantes, lideranças, todos afeitos a esses trejeitos ególatras, propalam uma “transformação interior” como objetivo principal do espírita. Nada é mais falso e divergente em relação às propostas espíritas, pois, ao se fazer uma leitura ampla e cuidadosa das obras kardecistas, o que salta aos olhos e mentes atentos à mensagem é um grito aos encarnados no sentido de que a única forma de se autotransformar é transformar o mundo em que se vive. Não há nenhuma possibilidade de mudança pessoal sem que ela venha acompanhada de esforços na luta por uma sociedade mais justa e fraterna.
E não se fala aqui de ação social por meio da “caridade” esmoler, como os próprios espíritos repudiam, mas de uma verdadeira ação transformadora da sociedade, para que não se tenha, no meio em que se vive, ninguém com fome ou sem ter onde morar.
Os espíritos encarnam para mudar o mundo, e isso é que muda o espírito encarnado, ensinam aqueles que auxiliaram Kardec.
Todo esse movimento reacionário, que abafou a necessária ação transformadora do espírita na sociedade, foi o fermento que fez crescer essa massa disforme de lideranças espíritas que pregam o exclusivo subjetivismo burguês como mensagem cristã em contraposição a uma sociedade em que todos vivam com dignidade.
O resultado dessa escolha pelo eu e não pelo coletivo é exatamente o que hoje se entende como bolsoespiritismo. Pessoas, grupos e instituições, que pregam essa mensagem personalista e egoísta, hoje barbarizam com suas interpretações inconsequentes e escolhas políticas malsãs, que falam de amor mas praticam o ódio, que defendem a vida mas escolhem a morte, enfim, que são o sumo da hipocrisia denunciada por Jesus: “Ai de vós, hipócritas, sois sepulcros caiados”.

Divaldo, o médium decaído

Ana Cláudia Laurindo

A inclinação do meio espírita brasileiro liderado por Divaldo Franco tem sido acreditar em sofismas rebuscados, anunciados com palavras conhecidas, ditas pelo médium , que ao analisar os conflitos armados entre a Rússia e a Ucrânia mostra o quanto se tornou fácil convencer multidões sobre uma narrativa, mesmo quando nada se compreende sobre o fato analisado. De maneira vergonhosa, a ortodoxia espírita tupiniquim atribui efeitos satânicos ao termo comunismo, ao qual Divaldo tem acostumado  citar em discursos de cunho político conservador, que no contexto brasileiro logo indica com qual política está afinado. É lamentável observar a derrocada ética/humanitária deste núcleo que centralizou as representações da linda doutrina, manipulando através de  médiuns oradores e escreventes, conteúdos que iludem, enganam, induzem milhares de mentes viciadas em poder e ajustes moralistas das condutas exteriores a enfileirar nas correntes nazi-fascistas envolvidas nas políticas partidárias em nosso país. Oportunidades de compreender os males sociais gerados por políticos de inclinação fascistas todos os brasileiros possuem há anos, mas a cosmossociologia espírita se torna cada vez mais envolvida nas teias do poder que privilegia líderes míopes para os desmandos da política hegemônica, que atua sobre os sentidos com a voracidade demoníaca real, pois o mal chega até as pessoas de carne e osso através de decisões políticas que desarmonizam e desequilibram todas as vítimas. Divaldo Franco nada entende sobre geopolítica mundial mas insiste em espalhar vídeos com conteúdos lastimosos para alimentar seus fanáticos seguidores, reafirmando jargões enquanto os libera da responsabilidade de estudar em fontes verdadeiras no intuito da compreensão que liberta; o jugo da classe não tem permitido essa experiência profunda de autonomia? Para não entender sobre política real, a casta salvífica que administra caridades materiais mantém-se no cercadinho espírita, fascinada em torno da fala rouca do médium arrogante, e lá se vão inúmeras experiências encarnatórias perdidas na preguiça de pensar! O número dos que estão recusando seguir sob a denominação “espírita” no Brasil está aumentando, pois lidar com as aparições patéticas dos médiuns perseguidores do “comunismo” está desanimando estudiosos da doutrina, médiuns anônimos sérios e comprometidos com o trabalho educativo, generoso e incentivador que Kardec espelha e indica nos muitos escritos que deixou. Espiritismo não tem donos, não necessita de guetos, e fomenta o livre pensar , mas infelizmente o meio espírita brasileiro atua contra estas assertivas e gera dependências religiosistas, caminhando para o lado oposto do que exemplificou Kardec, um espírito cientista e político, digno de respeito, mesmo nos casos de reprodução das verdades do seu tempo histórico, em evolução. O religiosismo acrítico sustenta as aparições de Divaldo Franco, as vezes oráculo, outras sofista, mas sempre comprometido com os interesses das classes dominantes e grupos hegemônicos dispersos nas instâncias de poder. Isso não é espiritismo. Isso é a escolha do médium e daqueles que o seguem. Despertemos. Texto publicado originalmente em Repórter Nordeste, gentilmente cedido pela autora para publicação.

O que são os espíritos?

Releituras kardecistas com Marcio Sales Saraiva

A visão kardecista é de grande objetividade e sem misticismos quando o assunto é espírito, alma ou consciência. Em “O livro dos espíritos”, de Allan Kardec, nossa referência central nesta coluna, os espíritos são simplesmente “os seres inteligentes da criação” que “povoam o universo, fora do mundo material” (questão 76).

Seres de consciência, agentes inteligentes, estão por toda a parte, ainda que não visível para a maioria das pessoas e até mesmo para a ciência mais materialista e menos aberta para os fenômenos transpessoais.

Quem os criou?

A resposta é simples. Deus. Por outro lado, os espíritos superiores assumem seus limites cognitivos, sua ignorância, ao afirmarem que “ninguém sabe” o quando (tempo) e o como (processo) que se deu esta criação dos espíritos. “Eis o mistério”, diz na questão 78. “A origem deles é mistério”, diz a questão 81. E mesmo sobre sua “essência”, o próprio Allan Kardec assume: “somos verdadeiramente cegos” (comentário da questão 82).

O que o kardecismo nos deixa como informação razoável?

Os espíritos foram criados por Deus, existem antes do corpo físico, povoam todo o universo, são seres incorpóreos (mas não imateriais) e que Deus jamais deixou de criá-los em todos os tempos.

Eles “estão por toda parte”, porém, “há regiões interditadas aos [espíritos] menos adiantados”. Sendo assim, o deslocamento dos espíritos é maior quanto maior for sua evolução intelectual, cognitiva e ético-moral. Além do deslocamento, há também a possibilidade de um único espírito irradiar sua “presença” para diversos locais e direções, como o Sol (questão 92). E isso explica porque o espírito Irmão X poderá enviar uma mensagem que será psicografada por pessoas diferentes em locais diferentes ou porque um espírito poderá irradiar sua comunicação sendo “incorporado” (psicofonia) em diversos médiuns em casas espíritas ou espiritualistas diferentes, mesmo que seja no mesmo dia e horário.

Quanto mais avançado é um espírito, lógico, maior será seu poder de irradiação sem jamais perder sua unidade interna, sua “persona” individual.

Os espíritos poderão ser chamados de entidades, inteligências extrafísicas, entidades, almas, santos, anjos, o “Espírito Santo”, orixás etc. Não importa a forma com que, em cada cultura ou em cada saber religioso, o espírito poderá ser nomeado. Trata-se, para o kardecismo, simplesmente de comunicação dos espíritos, seres que momentaneamente não estão usando um corpo físico e denso como o nosso, mas que, em algum momento, poderão novamente mergulhar na carne (reencarnação) para poder continuar a longa jornada de volta para a casa divina.

Os espíritos não são coisas de “outro mundo”, pois eles estão aqui mesmo, entre nós, povoando todo o cosmo. Têm erros, acertos e preconceitos, mas também têm insigths, informações interessantes, preferências religiosas ou ideológicas, e apresentam grande sabedoria adequada ao seu grau de crescimento cognitivo-moral. Acima de tudo, os espíritos, para Allan Kardec, não devem ser idolatrados, não são perfeitos, nem puros —caso contrário, já nem poderiam se comunicar diretamente conosco, dada a nossa inferioridade— pois os espíritos que se comunicam com o mundo terreno são somente seres humanos, como nós, apenas sem a vestimenta corpórea, usando, em seu lugar, uma vestimenta perispiritual que lhe dá uma forma de apresentação.

Sendo assim, não se espante com espíritos e nem os tema, pois você é espírito e em todas as partes há espíritos. Talvez você não os veja, nem os sinta, mas aí é outro assunto.