Coluna Releituras kardecistas com Marcio Sales Saraiva
Um dos pilares do espiritismo é a convicção de que existe uma pluralidade de mundos habitados e não somente o planeta Terra, onde atualmente vivemos. Isso é inequívoco em “O livro dos espíritos”, na questão 55:
“Todos os globos que circulam no espaço são habitados?
— Sim, e o homem terreno está bem longe de ser, como acredita, o primeiro em inteligência, bondade e perfeição. Há, entretanto, homens que se julgam espíritos fortes e imaginam que só este pequeno globo tem o privilégio de ser habitado por seres racionais. Orgulho e vaidade! Creem que Deus criou o universo somente para eles.”
Orgulho e vaidade é achar que o universo é todo nosso. Esta é a resposta dos espíritos.
Não se trata, é óbvio, de mundos iguais à Terra. Os espíritos dizem que “eles absolutamente não se assemelham” (questão 56, LE) com o nosso planeta azul.
Os seres que habitam estes outros mundos também não são iguais aos humanos terráqueos, da mesma forma que “os peixes são feitos para viver na água e os pássaros no ar” (questão 57, LE). Kardec explica que “As condições de existência dos seres nos diferentes mundos devem ser apropriadas ao meio em que têm de viver”. Nada mais lógico do que isso.
Jesus de Nazaré disse: “Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim. Na casa de meu pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo teria dito” (João 14:1,2).

Allan Kardec, em “O evangelho segundo o espiritismo” (OESE), capítulo 3, está consciente de que há possibilidades diferentes de interpretação desta passagem, mas o fundador sinaliza para a primeira leitura:
“A casa do pai é o universo. As diferentes moradas são os mundos que circulam no espaço infinito, oferecendo aos espíritos desencarnados estações apropriadas ao seu adiantamento” (OESE 3:1).
Sendo o universo a morada da divindade, nele encontramos pluralismo de populações. A Terra é apenas uma delas. Há diversidade de mundos habitados e cada um tem desenvolvimento cognitivo e espiritual distinto, pois
“[…] há os que são ainda inferiores à Terra, física e moralmente. Outros estão no mesmo grau, e outros lhe são mais ou menos superiores, em todos os sentidos. Nos mundos inferiores a existência é toda material, as paixões reinam soberanas, a vida moral quase não existe. À medida que esta se desenvolve, a influência da matéria diminui, de maneira que, nos mundos mais avançados, a vida é por assim dizer toda espiritual” (OESE 3:3).
E nessa diversidade de mundos inferiores à Terra e outros que lhes são superiores, há os mundos intermediários, mais ou menos como o nosso, “o bem e o mal se misturam, e um predomina sobre o outro, segundo o grau de adiantamento em que se encontrarem” (OESE 3:4).
A convicção espírita sobre a pluralidade de mundos habitados é bem anterior aos modismos ufológicos do século XXI e ainda não encontra uma resposta positiva na ciência, apenas indícios ou razoabilidade filosófica. Em outras palavras, a ciência humana ainda não tem fatos concretos que corroborem essa convicção espírita que nasce com as comunicações dadas pelos espíritos, alguns inclusive de outros planetas.
Ainda sem o respaldo da ciência, o espírita poderá deixar essa convicção “pendurada” até que o tempo possa ou não confirmar. É uma hipótese válida, mas não sendo o espiritismo dogmático, ele não poderia exigir de seus adeptos uma crença cega nesse ponto, apenas uma abertura mental e uma confiança no que dizem os espíritos sobre o assunto.
É importante compreender isso porque o tema caiu no ridículo e não faltam médiuns dispostos a psicografar sobre coisas de outros planetas, incluindo naves estelares de Júpiter, que não encontram respaldo nas ciências deste mundo e nem no bom senso, na razoabilidade.
Sendo assim, façamos como Allan Kardec e tenhamos sempre um pé atrás quando alguém diz falar em nome de “espíritos de outros planetas” ou que já testemunhou comunicações com “extraterrestres”. Não vamos confundir as pesquisas sérias neste campo, como o Paradoxo de Fermi e a hipótese do zoológico —e é com elas que o espiritismo deve dialogar—, com algumas viagens alucinógenas sobre espíritos de supostos comandantes de frota intergalácticas. “Tudo temos de ter cautela”, disse Titão Passos em “Grande sertão: veredas” de Guimarães Rosa. E assim deveria ser no espiritismo que leva a sério o legado de Allan Kardec.





Toca o celular. Ela hesita em atender. Deve ser o marido querendo saber do jantar. Melhor chegar logo na parada e esperar a sorte de passar ônibus para a Rodoviária do Plano Piloto. Melhor não perder tempo se explicando. Para não exibir o telefone novo lá no ponto de ônibus, resolve desligar e vê que não é o marido. É a nova cliente, cuja casa acabara de deixar. “Ôxi! O que será que essa mulher ainda quer?“
– Ketlin[1], onde você está?
Ela se assusta, pois a mulher (que foi educada e gentil o dia todo) falou alto, pareceu nervosa.
– Tô indo pra parada, mas ainda tô aqui dentro, perto daqueles aparelho de malhar.
– Mas eu não te disse que te levaria até a Rodoviária, mulher?!
– Mas eu achei que já tava muito tarde… não quis incomodar… não vi a senhora se arrumar pra sair.
– E porque eu me arrumaria para te levar até a Rodoviária, criatura?
– Mas eu achei que a senhora fosse sair pra outro lugar e me dar carona, que era caminho…
– Ketlin, fica parada aí, agora, nesse banco perto dos aparelhos. Tô indo aí. Não saia porque nem vão te liberar na portaria.
– Mas o que aconteceu, Dona Márcia?
– Te falo já, me espera.
“Agora lascou! Será que sumiu alguma coisa e ela pensa que fui eu?”
Em dois minutos a mulher branca para o carro e já vai falando.
– Criatura, como assim você sai sem me falar nada?!
– Mas Dona Márcia, eu me enrolei porque ainda não conhecia direito o jeito da sua casa e aí ficou tarde. É assim mesmo no primeiro dia. Eu esqueci de fazer alguma coisa? A senhora tava lá no computador e eu pensei: bom, acho que ela não vai mais sair. E resolvi tomar logo meu rumo porque nem sei o horário dos ônibus por aqui.
– Mas eu não falei que ia te levar?!
– Pensei que a senhora tinha esquecido, que tinha desistido de sair. E a culpa do atraso no serviço foi minha.
O carro segue entre as ruas do bairro de alto IDH, muito agradável para quem tem carro, muro, porteiro e segurança, na capital do Brasil, zil, zil.
As duas mulheres conversam sobre tudo e nada, enquanto o veículo avança na escuridão de Brasília, conhecida apenas dos que se locomovem a pé ou de ônibus.
– Dona Márcia, se a senhora não vai sair, por que está me levando até essa lonjura da Rodoviária?
– Porque ficou tarde e lá é mais seguro e tem mais ônibus.
– Mas a culpa foi minha, dona Márcia, eu que me enrolei.
– Ketlin… você conhece a palavra sororidade?
Agora a branca tava calma e sorridente de novo.
– Solidariedade?
– Não. So-ro-ri-da-de.
Ketlin tenta repetir, mas não acerta.
– Mas solidariedade, você sabe o que é, né?
– Sim, é quando as pessoa ajuda as outra.
– Então. Sororidade é um tipo de solidariedade que uma mulher presta a outra pelo fato de ambas serem mulheres.
– Tipo me levar na Rodoviária?
Agora Ketlin está descontraída.
– Sim. Como eu também sou mulher, sei que é muito inseguro para todos ficar naquela parada a essa hora, mas é ainda mais inseguro para as mulheres.
– É perigoso mesmo, dona Márcia. Minha vizinha foi assaltada aqui perto, numa parada do Lago Sul. Perdeu o salário todinho mas graças a Deus que não aconteceu o pior. Mas Dona Márcia, a senhora não anda de ônibus, por que tem medo das paradas?
– Porque eu leio as notícias, eu também conheço as estatísticas e a subnotificação. Como eu também sou mulher, sei que esse “pior” acontece nas paradas de ônibus e em todo lugar, até dentro de casa. Então a gente tem que diminuir a probabilidade. Sororidade é isso: quando uma mulher ajuda outra porque sabe que tem alguns problemas, alguns “piores” que só acontecem com a gente porque a gente é mulher.
– Eu tô entendendo o que a senhora tá falando mas olha, é muita palavra difícil… estatística, “soloridade”… Ah, dona Márcia. Eu vi que o PIX já caiu, mas a senhora errou e transferiu a mais. Posso descontar na próxima diária? Na próxima a senhora deposita só metade, pode ser?
– Não, Ketlin, você não tem que devolver. Você trabalhou a mais e eu ajustei o valor.
– Há, há, há, não! Comigo é tudo certinho e a culpa foi minha. Mas eu gostei dessa “soloridade”!
– Não, Ketlin, pagar mais porque você trabalhou mais não é sororidade.
– E o que é?
– Capitalismo.
– Eita, dona Márcia. Vou tê que aprender muita palavra pra trabalhar com a senhora! Mas agora não vou mais perguntar porque se eu correr eu pego o das 7:30 e chego em casa na mesma hora que eu ia chegar se tivesse pego dois ônibus. Sábado que vem a senhora me explica o que é capitalismo. Tem a ver com comunismo, né?
– Bom… Agora sou eu quem vai ter de pensar sobre a associação que você fez. Mas no sábado eu te respondo.
Ketlin corre escada acima pra não perder o ônibus de sete e quinze: “gostei dessa dona.”
Qualquer semelhança com a realidade, não é coincidência. É estatística, probabilidade, análise de dados e, também, pontos fora da curva[2][3].

