A Plenária do Segundo Encontro Nacional recebeu o primeiro manifesto das Mulheres Espíritas pelo Direito de Decidir.
O tema do aborto começou a ser discutido entre um grupo de mulheres do Coletivo Espíritas à Esquerda após a repercussão do artigo “Desprezado Patriarcado, até quando”, na coluna Feminismos. A discussão ensejou outra publicação, “Ouvindo as Mulheres: aborto e movimento espírita”. Em seguida, um grupo de mulheres do núcleo regional do Distrito Federal organizou um debate on line “Diálogos sobre o aborto – sob o enfoque Espírita”, em 30 de junho de 2022 (infelizmente, não ficou gravado). O evento on line contou com a participação de representantes dos diversos núcleos estaduais e teve, como encaminhamento, a criação do Coletivo Mulheres Espíritas pelo Direito de Decidir. O Coletivo das mulheres elaborou um manifesto, apresentado e aprovado na plenária do Segundo Encontro Nacional da Esquerda Espírita. A seguir, apresenta-se a íntegra do Manifesto. O tema aborto é criminalizado na sociedade e no movimento espírita tradicional, a partir de premissas que atendem a uma perspectiva de controle do corpo da mulher, fato já amplamente descrito em estudos científicos validados. O espírito que, em dada existência, toma um corpo feminino, estabelece com este uma relação na qual irá construir conhecimentos específicos, a partir de condições socialmente determinadas, sendo, uma das mais determinantes, a condição de gênero. Este espírito está encarnado para intervir na realidade do mundo material, em conformidade com suas escolhas. Por vivermos em uma sociedade que estabelece padrões de comportamento e delimita espaços às mulheres, existir nessa condição é um constante desafio à alma. Há papéis sociais estabelecidos às mulheres como zelar pela moralidade, guardar recato, resignar-se, acolher de forma incondicional, cuidar de todos e produzir filhos. Embora seja lugar comum a ideia de que ter filhos seja destino de todos os espíritos encarnados como mulheres, a fatalidade não é uma premissa da Doutrina Espírita, conforme se vê nas obras da Codificação, como o Livro dos Espíritos (LE). Ser mãe, em princípio, é uma condição biológica e não um dever. O Espírito, ora encarnado em corpo feminino, tem livre arbítrio para escolher – ser ou não ser mãe – a partir de motivações próprias, não cabendo a ninguém – Estado, Igreja ou Centro Espírita – determinar essa decisão. É necessário falar, abertamente, acerca do aborto, no ambiente espírita, relembrando que a alma é livre para decidir acerca de seus caminhos durante a existência física.843: “Pois que tem a liberdade de pensar, tem a de agir. Sem o livre-arbítrio o homem seria uma máquina”. (LE).
Também é urgente reviver a prática explicitada no Evangelho Segundo o Espiritismo, acerca da indulgência para com todos e todas.ESSE – Cap. 10 – A Indulgência – (…) A indulgência jamais se preocupa com os maus atos alheios, a menos que seja para prestar um serviço, mas ainda assim com o cuidado de os atenuar tanto quanto possível. Não faz observações chocantes, nem traz censuras nos lábios, mas apenas conselhos, quase sempre velados. Quando criticais, que dedução se deve tirar das vossas palavras? A de que vós, que censurais, não praticastes o que condenais, e valeis mais do que o culpado. Oh, homens! Quando passareis a julgar os vossos próprios corações, os vossos próprios pensamentos e os vossos próprios atos, sem vos ocupardes do que fazem os vossos irmãos? Quando fitareis os vossos olhos severos somente sobre vós mesmos?
Acolher hoje, acolher amanhã, acolher sempre: eis o que se espera dos espíritas. A Caridade, pilar da Doutrina, chama atenção para as irmãs que chegam às casas espíritas suplicando auxílio e conforto, seja da ordem material ou espiritual.886. Qual o verdadeiro sentido da palavra caridade, como a entendia Jesus?
“Benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas.”
Além de acolher é necessário compreender os desafios das formas atuais de organização das famílias e do exercício da sexualidade, superando a visão medieval de sexo como “pecado” ou ato fisiológico destinado apenas à procriação. Sobre a sexualidade, também a ciência – instituição respeitada no âmbito da Doutrina Espírita –oferece resultados de pesquisa acerca de sua influência sobre a saúde física e emocional. Entender esse fenômeno e esclarecer as pessoas sobre o exercício de uma sexualidade responsável – bem como sobre abusos sexuais – é importante na prevenção de uma concepção indesejada. Se punir o aborto não o evita, tampouco execrar a se xualidade contribui para seu exercício saudável. Fora do ambiente da religiosidade, há as questões de saúde pública, abordadas nas áreas das Ciências da Saúde, notadamente nas áreas da Epidemiologia e Saúde Coletiva. Com a criminalização do aborto, as mulheres, especialmente as pretas e pobres, não têm acesso a cuidados no sistema público e, aquelas que conseguem atendimento privado, podem vir a sofrer discriminação, violência obstétrica ou ainda ter sua intimidade violada. Sem acesso aberto ao Sistema de Saúde, os abortos são subnotificados, prejudicando os registros epidemiológicos e impedindo a mensuração correta do fenômeno da interrupção de gravidez, suas associações causais, intercorrências e desfechos. Ou seja, não se conhece, com rigor científico, as razões que levam mulheres e meninas a abortarem ou o que falhou em seus planos reprodutivos. Podem ser mulheres que não têm acesso regular a métodos contraceptivos; que não saibam usá-los da forma correta; que estejam em situação crônica de violência sexual ou ainda convivendo com companheiros que recusam a contracepção. Tratar o aborto como questão de saúde pública, além de proteger a vida das mulheres, pode prevenir a ocorrência de mais abortos. A Organização Mundial de Saúde estabelece diretrizes sobre o aborto, na perspectiva de proteger a saúde de qualquer pessoa que possa engravidar. Segundo a OMS, cerca de 25 milhões de abortos inseguros são realizados anualmente, o que resulta em altos percentuais de complicações pós-operatórias, hospitalizações e mortes. No Brasil o aborto é considerado crime, na maioria das situações e, por isso, muitas mulheres interrompem a gravidez usando métodos inadequados e perigosos. Além disso, evitam procurar ajuda médica até que as complicações se tornem muito graves. Estima-se que metade dos abortos, no País, resulta em internação posterior e que quase todas essas internações poderiam ser evitadas. A Organização Mundial da Saúde calcula que apenas 2% a 5% das mulheres fazem aborto com medicamentos confiáveis, sem necessidade de intervenção posterior. Criminalizar o aborto traz intercorrências evitáveis nas condições de saúde dos indivíduos, risco de vida e ônus para o Sistema. A maternidade somente será de livre decisão para as mulheres se, além das condições materiais e sociais, elas puderem ter acesso a meios de planejamento reprodutivo e também ao aborto legal, seguro e gratuito, livres do controle de natalidade exercido pelo Estado e por instituições religiosas. Pelos motivos expostos neste Manifesto, entendemos a necessidade de parar de tratar o aborto sob a ótica do moralismo religioso. Ele deve ser visto como parte de uma ampla Política de Saúde, entendendo-se saúde como bem estar físico, moral, social e espiritual. Nós, mulheres espíritas progressistas, entendemos que a vida deve ser preservada em primeiro lugar, principalmente, a vida das mulheres. Reconhecemos a existência de mulheres que, por inúmeras razões, decidem abortar. Elas são nossas irmãs ou somos nós mesmas, em diferentes momentos de nossas vidas. Nessa situação, as mulheres necessitam de acolhimento e não de dedos apontados ou anátemas. Em um estado laico, o aborto é competência da área da Saúde Pública e somos a favor da sua descriminalização. Aos espíritas compete não julgar e sim, acolher, a mulher que os procura em busca de alívio para suas dores. Também não cabe, aos espíritas, definir para que local irá a alma da mulher que aborta, após o encerramento de sua vida física e sim esclarecer que novas oportunidades de servir surgirão e que ela terá apoio social, emocional e espiritual para que esteja pronta para assumir os encargos de sua jornada. Assim, a proposta das Mulheres Espíritas pelo Direito de Decidir, a esta plenária, é:- Discutir sexualidade, contracepção, saúde das mulheres e aborto, sem anatematização ou tabus, no âmbito das casas espíritas,
- Acolher e esclarecer todas as mulheres que nos procurarem num momento em que estejam atormentadas pela dor de uma gravidez indesejada, sem julgá-las e sem ter a arrogância de querer influenciar nas suas decisões, reconhecendo seu livre arbítrio.



Uma das questões que acirrou o debate do grupo do DF, foi o fato de os homens participarem na condição de ouvintes e, uma das contribuições apresentadas veio de Marcos Costa, que destacou a abordagem do assunto com base na codificação kardequiana e reafirmou a disposição de, neste assunto, ser ouvinte.
Coerente com o que defende, Marcos aceitou que seu texto fosse publicado, desde que sua fala fosse mediada por uma mulher. Assim, apresento o relato do companheiro, no qual trabalhamos em conjunto no que tange à forma porque, na essência, não houve ressalva.
O relato de um homem que se dispõe a ouvir as mulheres e caminhar junto traz esperança e perspectiva de concretude: juntos, humanos de todos os sexos e gêneros, podemos implantar o reino de justiça que Jesus anunciou para todos, todas e todes.
Não havendo o que acrescentar, segue o relato de um homem que ouve as mulheres.
“A experiência do corpo feminino não faz parte da minha encarnação atual, portanto para saber das dores e das alegrias de ser mulher somente escutando uma mulher.
Preliminarmente, é importante destacar que movimento espírita, doutrina espírita e espiritismo são grandezas diferentes que, embora à primeira vista tratem de espiritismo, significam coisas distintas. Movimento espírita é o conjunto social de espíritas, que agem de forma não uníssona, mas com certas semelhanças por se definirem espíritas, e abrange pessoas de todas as identidades. Doutrina espírita é o texto compilado e explicitado desde Kardec, havendo concordância e discordância entre pontos, especialmente no que tange às explicações naturais e aos costumes, ainda mais assumindo-se que, com o tempo, a ciência e a sociedade evoluem. Espiritismo é a essência das ideias, que fluem no convívio entre os espíritas, no desvelar do plano espiritual, no trato com a existência carnal e espiritual, na práxis dos princípios morais e éticos, esses últimos, imutáveis.
Fui muito a reboque do conceito pronto acerca do aborto dentro do movimento espírita. Desde criancinha escutava que aborto é errado e me parece que esse assunto foi levado ao patamar de ‘pecado capital’ dentro do espiritismo.
Frequentei várias casas espíritas, venho de uma família espírita e era conceito absoluto: aborto é crime, compreende-se até que há atenuantes, mas a ideia geral é de que a mulher deve levar a gravidez até o fim, como forma de ‘demonstrar renúncia e abnegação’. É compreensível apenas o aborto espontâneo.
Na leitura da literatura de Kardec, entretanto, o aborto é considerado como a interrupção de uma possibilidade de vida (questão 353 e 359 do LE), não de uma vida formada, e quem o faz, assumirá as consequências dos seus atos pela interrupção de uma possibilidade de vida (q. 358 do LE). Além disso, fica claro que há atenuantes (q. 359 do LE) e que o espírito que não reencarnou terá outras oportunidades (q. 357 do LE).
Faço um parêntese e passo a tratar de outro ponto que também é considerado como capital para a doutrina espírita, mas que não tem o mesmo tratamento rígido, o suicídio.
Em O livro dos espíritos o suicídio é tratado com muito mais rigor (questões 943 a 957), como um crime, sendo que se compreende os atenuantes, sejam culturais, falta de conhecimento, ausência de discernimento (doença mental). Mais ainda, entende-se que o suicídio provocado por situações de penúria é um ato reprovável, porém, será mais culpado aquele que provocou a penúria.
Volto ao assunto e faço um balanço entre os dois atos mais reprováveis dentro da doutrina espírita, o aborto e o suicídio. Se há o entendimento dos espíritos de que o suicídio é ato bem mais reprovável, contudo, conforme os atenuantes já explicitados demonstram, há a presença não somente da misericórdia divina, mas da inteligência do plano espiritual ao lidar com o assunto, por que o movimento espírita não apresenta compreensão idêntica quanto ao aborto?
Ressalto aqui os atenuantes citados: falta de conhecimento, penúria, fatores culturais e problemas de discernimento.
A quem interessa reprovar mais o aborto que o suicídio?
Eu tenho a resposta: é de interesse do patriarcado. O controle dos corpos femininos que se apresenta nas prescrições religiosas, que são em si instituições políticas, como é o movimento espírita, é universalmente exercido pelo homem.
Sempre escutei: ‘ora’ (dirão alguns dentro do movimento espírita), ‘a dor educa!’ A mulher que escolhe progredir na gravidez, com todos os percalços, como resultado de sua renúncia e abnegação, será uma pessoa mais evoluída. Palavras usadas de modo dúbio, como vou demonstrar.
Veja, no começo do texto expliquei que vendo e ouvindo aprendo muito sobre o que não posso vivenciar. Minha percepção acerca do aborto não foi modificada pelos homens, mas pelas mulheres. Conversando e convivendo com quem interrompeu uma gravidez não escutei uma só história que não fosse de muita dor, de muita angústia. Por que essa mulher que sofre com a angústia e a dor de ter de suprimir a gravidez também não teria como resultado um aprendizado, uma evolução?
É controle sobre os corpos, é controle social! O querido Engels explicitou que o modo de produção familiar foi o primeiro que existiu, com a exploração do trabalho do mais forte sobre o mais fraco, do homem sobre a mulher, ou seja, a luta de classes começou com o patriarcado.
Isso fica também muito evidente quando se identifica o tratamento diferenciado, especialmente entre as mulheres pobres e as ricas, quando o assunto é aborto.
Para quem pode pagar, há inúmeras clínicas, esteticamente perfeitas, estéreis e mantidas sob uma fachada impecável. Os cuidados permitem a diminuição das possíveis sequelas a níveis aceitáveis do ponto de vista sanitário.
Para as mulheres pobres há a opção de perfuração de placenta, chás e medicamentos abortivos, ou mesmo remoção por choque mecânico. O resultado é um trauma físico e nem sempre há um médico para atendê-las, causa de inúmeras sequelas e mortes.
Historicamente o homem limitou ou extinguiu os direitos das mulheres, fato incontroverso. E, ao lembrarmos que hoje podem votar, trabalhar e escolher companheires, não podemos esquecer que nós homens não as permitimos escolher a gravidez, não permitimos os corpos femininos expostos, não permitimos as ideias femininas.
Mas, na cabeça do homem médio, parece que o aborto é uma visita ao supermercado, onde se recolhe na prateleira um produto e se paga no caixa. Ledo engano, lembro sempre que é resultado de muita dor e desespero.
As experiências de países, cito em especial os extremamente católicos, como Portugal e Uruguai (têm outros, mas vou ficar nesses exemplos), demonstram que, ao legalizarem o aborto, houve uma diminuição dessa incidência.
Parece paradoxal, mas não é. Como o estado regulamentou uma situação que era tratada nos porões, as mulheres puderam ter auxílio e orientação profissionais.
Quando manifestam a intenção de interromper a gravidez, há um período necessário de reflexão em que as mulheres são atendidas por profissionais capacitados, caso persista o interesse em prosseguir com o aborto, são informadas dos riscos à sua saúde resultantes e do apoio do estado à gravidez e à maternidade. Caso a mulher persista na decisão, são encaminhadas a uma clínica segura. Isso possibilitou a diminuição da morte materna para índices irrisórios.
No Brasil, entre 1996 e 2018, ocorreram 38.919 óbitos maternos resultantes de causas obstétricas diretas, ou seja, complicações obstétricas durante gravidez, parto ou puerpério devido a intervenções desnecessárias, omissões, tratamento incorreto ou a uma cadeia de eventos resultantes de qualquer dessas causas. A principal causa de morte foi a hipertensão (8.186 óbitos), seguida por hemorragias (5.160 óbitos), infecção puerperal (2.624 óbitos) e, em quarto lugar, o aborto (1.896 óbitos). Ainda de acordo com essa sinistra estatística, a cada quatro dias morre uma mulher em decorrência de um aborto sem condições seguras. Na maioria dos casos de morte, trata-se de uma mulher pobre, que não teve acesso a uma clínica segura (1). [
Pela tarde, no II ENEE, haverá reunião plenária com o tema “Organização e projetos: construindo um coletivo popular”, com a presença de todos os participantes do encontro para pensar, discutir e deliberar sobre os rumos do movimento e do coletivo da esquerda espírita.
O II ENEE ocorrerá na sede do Sindicato dos Bancários de SP, bem no centro da cidade, Rua São Bento, 413, Edf. Martinelli, próximo ao metrô São Bento. O Sindicato dos Bancários de SP receberá a esquerda espírita de coração e braços abertos.
O Espíritas à Esquerda organizou o I ENEE em 2019, em Salvador, encontro que marcou o movimento espírita progressista. Foi organizado ainda o II ENEE no Rio, em 2020, mas a pandemia impediu a sua realização. Agora, o Espíritas à Esquerda retoma seus encontros nacionais presenciais com esse evento que certamente também marcará os rumos do movimento espírita progressista.